Publicado 02/07/2007 11:51 | Editado 04/03/2020 17:19
O cidadão que não participa muito da vida política talvez não saiba direito para que serve um plano diretor e fica meio perplexo quando a imprensa começa a entrevistar governantes e especialistas sobre o assunto, entendendo pouco os termos técnicos e não sabendo muito bem o que aquele monte de siglas, que acompanham as reportagens significam e o que aquilo tudo tem a ver com seu cotidiano.
Ao contrário dos que estão no dia a dia lutando para sobreviver, percorrendo grandes distâncias, enfrentando congestionamentos, a poluição do ar, a falta de água, o desmatamento e a destruição do seu bairro, alguns setores de empresários acompanham, se preparam e interferem nesse debate com grande habilidade e grande poder de influir nos rumos das nossas cidades.
Esses empresários são aqueles ligados á especulação imobiliária, e construção civil.
Do outro lado estão os cidadãos comuns que querem apenas ter qualidade de vida para cuidar da sua família.
A Constituição de 1988 garantiu um novo patamar para o desenvolvimento urbano no Brasil introduzindo este tema nos seus capítulos, fruto de muita luta dos movimentos populares que buscavam moradia digna no meio urbano e dos setores progressistas da sociedade, incluindo arquitetos e urbanistas, engenheiros e outros profissionais ligados ao planejamento urbano que se posicionavam em favor da construção de uma sociedade urbana mas com qualidade de vida. A urbanização da sociedade brasileira já se consolidava na década de 80 mas com um grande acúmulo de problemas fruto da falta de planejamento.
Assim, em 2001, foi aprovado pelo Congresso nacional, a lei do Estatuto da Cidade, cujo conteúdo vem sendo elaborado desde 1963, quando o primeiro projeto de lei sobre o assunto foi apresentado. Portanto, pode se afirmar com tranqüilidade que não foi uma lei prematura, sem debate pela sociedade civil. Quatro conquistas se destacam no conteúdo da lei.
A primeira que obriga que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes são obrigadas a elaborar seu plano diretor, a segunda é que este plano tem que ser elaborado com participação da sociedade como um todo, a terceira é que o plano diretor vai definir se as propriedades urbanas estão cumprindo sua função social ou estão ociosas não servindo a nenhuma função urbana, morar, trabalhar, estudar, etc. E a quarta trata da regularização de áreas já ocupadas por populações de baixa renda e garantir seu direito à moradia através da ZEIS, zonas especiais de interesse social.
O Plano Diretor Estratégico, lei 13430, em vigor em São Paulo foi aprovado em 2002, depois de mais de três décadas do plano anterior. Dois anos depois foram aprovadas mais duas leis, a lei dos planos regionais e a lei de uso e ocupação do solo. Portanto, um espaço de tempo muito pequeno para a confirmação de que os instrumentos aprovados na lei deram certo e se verificar se a qualidade de vida da cidade melhorou ou não, e ainda dar maior publicidade à lei que está em vigor e envolver mais a sociedade na sua aplicação. Nos planos regionais foram definidos os limites de todas as zonas da cidade, incluindo as ZEIS e a zonas mistas ou de uso exclusivamente residenciais.
A Prefeitura de São Paulo iniciou este ano um processo de revisão do Plano Diretor Estratégico que já estava prevista, mas a surpresa de todos foi grande quando se incluiu no mesmo processo a revisão dos planos regionais que mal foram divulgados para a população.
Claro, a lei está na Internet, mas é preciso um certo conhecimento técnico não só para dominar a linguagem dos computadores mas também dos mapas e quadros técnicos cheios de índices e siglas que o cidadão comum pouca chance terá de compreender. Portanto o mais adequado seria que a Prefeitura elaborasse uma cartilha popular que trouxessem as informações traduzidas de maneira simples e clara e comparasse com as mudanças propostas. E que tal ter uma comunicação visual indicando a zona de uso do bairro para que as pessoas comecem a se familiarizar com os conceitos da lei e possa ajudar a fiscalizar as irregularidades urbanísticas praticadas por aqueles que atuam sob o lema “construo depois legalizo”, tão comum na cidade.
Sem informação é difícil opinar sobre qualquer tema e este talvez não seja fácil de se entender e muitos pensem que é um assunto dos urbanistas, mas este assunto nos interessa a todos que vivemos nas cidades.
Simplificando e desmistificando os assuntos que um plano diretor trata podemos dizer que o plano serve para organizar a cidade.
Assim como organizamos os espaços na nossa casa, cada coisa em seu lugar, com segurança, com economia de energia, sem amontoamento, com luz e ar, com lugares para que se possa realizar cada uma das tarefas, circulação com conforto, estudo, limpeza, lazer, alimentação, descanso e abrigar com dignidade todos os membros da família, com suas memórias, suas lembranças e suas referências de paisagem e vizinhança. Onde todos são bem aceitos, e se promove o entrosamento das gerações e se respeitam as diferenças.
A cidade também deveria cumprir este papel, acrescentado a atividade do trabalho e cultura que é muito importante para o bem estar dos cidadãos.
Então, parece fácil não?
O plano diretor trata do espaço urbano, sua organização, sua paisagem, sua história, a circulação, os transportes, do meio ambiente, da localização da moradia, do trabalho, da escola, do teatro, do hospital, do metrô, dos parques, da largura das vias, do tamanho dos lotes, da distância que o vizinho deve construir, da altura dos prédios para não incomodar a vizinhança, do uso do solo, se uma fábrica deve ficar perto de uma escola ou não, da urbanização de favelas para garantir moradia digna para a população que não consegue renda para adquirir no mercado, da proteção dos prédios e bairros históricos que fazem parte da memória da cidade, das áreas verdes que merecem proteção e principalmente regulamenta onde e porque e como a cidade pode ou deve crescer.
Curitiba sempre é lembrada pelos urbanistas e por aqueles que a conhecem como uma cidade com grande qualidade de vida. O planejamento é a principal ferramenta que garante esta qualidade há muitas gestões municipais.
São Paulo precisa conquistar este patamar e certamente esta é a vontade da maioria da população, cansada do dia a dia estafante nos congestionamentos, da paisagem de prédios e viadutos, da violência urbana e da poluição. A criação da ZEIS em áreas ocupadas já consolidadas te como objetivo, além de garantir o direito à moradia, economizar os poucos recursos públicos para a realização de obras de infra-estrutura em áreas longínquas do centro principal da cidade. Defender as ZEIS em áreas centrais também será um elemento importante para a preservação da história dos bairros de São Paulo.
Há quanto tempo já deixamos de ver os limites da paisagem natural da cidade, como a Serra da Cantareira, perceber a geografia do “Espigão” da Paulista e da várzea dos três mais importantes rios da cidade, o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí, que nos remetem à fundação da cidade e tantas histórias de grandeza guardam escondidas, dos viajantes que daqui saíram ou passaram para ampliar a ocupação do território nacional?
Recentemente a imprensa noticiou o tombamento do bairro do Ipiranga e o processo de tombamento de parte do bairro da Mooca e grande foi a chiadeira do SECOVI, sindicato dos empresários do setor imobiliário, dizendo que o instrumento do tombamento estava se sobrepondo sobre a lei de uso e ocupação do solo, que só o plano diretor pode mexer.
Para o SECOVI a história da cidade não tem importância, apenas os seus negócios, e se São Paulo continuar perdendo sua memória ainda preservada e seus cidadãos sua identidade com a construção desenfreada de prédios altos sem nenhuma relação com a paisagem na qual se inserem, aumentando as ilhas de calor na cidade, a sobrecarga na infra-estrutura urbana e expulsando setores consideráveis da população para áreas periféricas pela valorização mercantil do solo urbano isso, a sociedade e a Prefeitura que arquem com as perdas pelos resultados de uma urbanização sem humanização.
Já é hora de o planejamento urbano incluir nos seus critérios técnicos e urbanísticos o conceito de memória, paisagem e valorização dos bens culturais inseridos no cotidiano da população. Nos países ricos, tão admirados pela beleza de sua arquitetura preservada, existem regras claras quanto à altura das edificações, padrão arquitetônico e até cor de suas fachadas para preservar sua ambientação. São Paulo que está buscando através da lei Cidade Limpa valorizar a paisagem construída, encontra-se num bom momento para introduzir estes conceitos no processo de planejamento.
Há um movimento em curso das diversas entidades que lidam com a moradia e a qualidade de vida urbana no sentido de garantir uma revisão do plano com caráter realmente participativo, é preciso fortalecer essa idéia e participar desse processo que já conquistou com liminar a paralisação do processo que a prefeitura já vinha desenvolvendo, é o Fórum Popular em Defesa do Plano Diretor e que deseja uma cidade “democrática, pacífica, includente e sustentável” e é “contra o aprofundamento da barbárie social em São Paulo contra o atual processo de revisão do plano diretor.”
O pedaço da vila ameaçado.
O bairro da Vila Mariana conquistou no plano regional um certo controle sobre o crescimento desordenado que vinha descaracterizando o bairro com a excessiva verticalização em áreas antigas que deram origem ao bairro e que guardavam um ambiente agradável de vizinhança, tendo como referência edifícios históricos como o Instituto Biológico, o antigo Matadouro (hoje Cinemateca) a Casa Modernista, e o casario e vias que mantém vivas a história do bairro e de um pedaço de São Paulo em direção à zona sul e que possui grande vocação cultural.
Foi com este conteúdo e muita luta, com abaixo assinados, o tombamento do Instituto Biológico, festas, debates e conversas com vereadores que a população junto com as entidades do bairro conseguiram sensibilizar os vereadores da necessidade de não se destruir nossas referências históricas cotidianas e preservar as características principais e mais antigas do bairro particularmente próximo aos bens históricos.
A primeira versão apresentada retirou dos mapas e quadros o controle de gabarito das áreas do entorno do Biológico e manteve a alta densidade sob uma zona de preservação, o que no mínimo é contraditório, pois há um processo de tombamento do bairro em andamento, por vontade dos atuais moradores.
Felizmente em função da mobilização do movimento social, o prazo para elaboração da nova versão do Plano Diretor Estratégico foi adiado pela lei 14457 publicada no dia 29 de junho de 2007 e estabelece a data de 2/10/2007 como prazo para a revisão. Parece bastante tempo mas é pouco e a população deverá estar mobilizada e atenta para participar dos debates e das audiências públicas obrigatórios pela lei e garantidos pelo Estatuto da Cidade.
Rosana Miranda é arquiteta e urbanista, doutora pela USP, com tese sobre o bairro da Mooca, especialista em renovação de centros históricos pelo IHS, Rotterdam, Holanda.