Índia: balanço de 30 anos de um governo estadual comunista

Bengala Ocidental, com uma população igual à da Alemanha (80 milhões de habitantes) num território equivalente ao de Portugal (88 mil km2), acaba de completar 30 anos ininterruptos de governo dirigido pelo Partido Comunista (Marxista) [PCI(M)]. O líder hi

“A instalação do governo da Frente de Esquerda em bengala Ocidental, em 21 de junho de 1977, deu início a uma nova era na política indiana e na vida do povo da Índia. Sabemos que não podemos mudar tudo dentro da atual estrutura social e das limitações constitucionais vigentes; por isso prometemos apenas dar algum alívio ao homem comum. Mas agora, 30 anos depois, penso que o que fomos capazes de fazer pelo povo é mais do que um simples alívio. Em defesa dos interesses do povo simples, implementamos uma concepção alternativa de desenvolvimento, que agora está dando alguns frutos”, afirma Jyoti Basu, veterano dirigente comunista e membro do Birô Político do PCI(M).



Na véspera do 30º aniversário do governo da Frente de Esquerda em Bengala Ocidental, o veterano líder comunista falou aos correspondentes dos órgãos de imprensa do partido, expressando suas opiniões sobre as experiências destas três décadas. Ele pôs em relevo a torrente de lutas que culminou no governo da Frente, e as imensas realizações que se seguiram. Ao mesmo tempo, Basu também indagou-se sobre por que outros estados indianos – afora os governados pela esquerda, em Bengala Ocidental, Tripura e Kerala, apesar das severas restrições constitucionais – não puderam implementar políticas pró-povo.



Jyoti Basu governou Bengala Ocidental entre 1977 e 2000 e a história o registra como o mais longevo chefe de governo estadual na Índia. Nascido em Calcutá, ele completará 94 anos no próximo domingo (8). Veja trechos da entrevista.



Pergunta: O governo da Frente de Esquerda, liderado pelo PCI(M), completa 30 anos de vida. É um fato sem paralelo histórico, numa estrutura democrática. Como foi possível chegar a isso?



Jyoti Basu: Vou lhe dizer que houve um tempo em que pensávamos que não se permitiria que nenhum governo de esquerda se estendesse por um longo período, para não falar 30 anos, já que os reais poderes em nosso tipo de democracia parlamentar permanecem no governo central, onde mandam os partidos burguês-latifundiários. Em 1957, o primeiro governo comunista surgiu, em Kerala ( 32 milhões de habitantes, atualmente), e o falecido camarada E. M. S. Namboodiripad o chefiou. Mas ele foi dissolvido dois anos e meio depois.



Também tivemos uma experiência semelhante em nosso estado. No fim dos anos 60 e início dos 70, uma enxurrada de lutas sob a liderança do PCI(M) varreu Bengala Ocidental. O movimento por comida, o movimento estudantil, o movimento dos refugiados, o movimento operário, o dos professores – essas batalhas sucessivas criaram um novo cenário em Bengala Ocidental. Foi quando o primeiro governo da Frente Unida se instalou, em 1967. Mas só lhe permitiram nove meses de vida.



O segundo governo da Frente Unida chegou ao poder em 1969 e foi-lhe permitido permanecer por apenas 13 meses. Em ambas as ocasiões, o povo de Bengala Ocidental viu o papel do nosso partido, quando, para quebrar o monopólio de poder do Partido do Congresso, no interesse do avanço democrático, deixamos a chefia do governo estadual para o Bangla Congress (sigla estadual ligada ao Partido do Congresso), embora fôssemos o maior partido na assembléia estadual. Ficamos ainda mais fortes em 1971, mas não nos deixaram formar governo.



Então, em 1972, montou-se uma farsa com o nome de eleição, com as urnas flagrantemente fraudadas. Foi um período sinistro para a democracia parlamentar no país. O Partido do Congresso formou governo através desse estratagema, enquanto nós decidimos boicotar a assembléia e assim fizemos por cinco anos a fio, para marcar nosso protesto.



A partir de 1972, a luta por direitos democráticos e liberdade para o povo teve de enfrentar uma situação difícil: o governo do Congresso implantou no estado um regime de terror semifascista. Mais de 1.100 de nossos quadros foram mortos pela polícia, centenas de sedes nossas foram ocupadas a força e as famílias de mais de 20 mil apoiadores do PCI(M) tiveram que deixar suas casas e mudar, na maioria para fora do estado. Nossa luta por direitos democráticos naquela contingência permanecerá para sempre nos anais de Bengala Ocidental.



Aquilo que defrontamos desde março de 1972, o povo de todo o país teve de viver três anos mais tarde. As liberdades e direitos assegurados aos simples cidadãos foram arrebatados pelo Estado de Emergência imposto em 26 de junho de 1975.



Aquilo não era uma novidade para as gerações mais velhas, que tinham sofrido uma quantidade de repressões no passado. Nosso partido foi declarado ilegal durante o domínio britânico, até meados de 1942, e novamente depois da independência, em 1948. A maioria dos nossos líderes fora parar atrás das grades em 1948, e só obtivemos a legalidade às vésperas das primeiras eleições gerais, em 1952.



Mas o povo viu que nunca nos rendemos ao inimigo de classe, mesmo diante de tamanha repressão. Enfrentamos a tortura, a prisão, mas nunca nos comprometemos com as classes dominantes. Eis o nosso legado. Aí está por que o povo de Bengala Ocidental nos respeita e confia em nós.



Assim, na última eleição, 29 anos depois do primeiro governo da Frente de Esquerda, o partido obteve uma maioria de três quartos. Ocasionalmente, já correram toda sorte de rumores e denúncias caluniosas contra nós. Até a Comissão Eleitoral foi arrastada pela campanha de calúnias segundo as quais teríamos fraudado as cinco eleições precedentes. Mas o povo de Bengala Ocidental encarou isso como um insulto à sua consciência e deu aos caluniadores a merecida resposta.


P: Muitos governos pró-povo surgiram desde o primeiro governo da Frente de Esquerda, em 1977. Quais foram as suas maiores prioridades e realizações?


Basu: Depois que chegamos ao Executivo, preocupamo-nos seriamente em implementar nossos compromissos, assumidos no programa de 36 pontos de 1977. Naquele ano, quando vencemos as eleições, uma enorme multidão se reuniu diante do Writers Building (nome do palácio de governo) para nos cumprimentar.Eu disse a eles que não ficaríamos confinados no Writers Building; pelo contrário, permaneceríamos com os operários, assalariados e camponeses, com todos os segmentos do povo simples.



Nós demos ênfase a um programa radical de reforma agrária, e mais de 500 mil hectares de terra foram distribuídos entre os pobres e os sem-terra. Em nosso estado, 83% da terra de lavoura está nas mãos dos camponeses pobres e marginalizados. Este programa continua atá hoje. O sétimo governo da Frente de Esquerda também distribuiu terras aos pobres, embora alguns problemas tenham ido parar na Justiça.



Também demos ênfase ao desenvolvimento agrícola, à descentralização de poder, através do sistema de Panchayati (comunidades de aldeia) e municípios, e baixamos a idade mínima do eleitor para 18 anos nas eleições municipais e locais. A produção agrícola cresceu. Também demos prioridade às micro e pequenas indústrias. Os interesses da gente pobre, dos trabalhadores da terra e dos meeiros são fortemente defendidos aqui.



Por que permanecemos? Porque a Frente de Esquerda chegou ao governo por meio de uma série de lutas de massas. Ela não é apenas uma frente eleitoral. O povo tem visto o nosso papel na defesa dos seus interesses. Fizemos história, para uma democracia parlamentar.



Acredito, de coração, que cumprimos em grande medida o que nos comprometemos a fazer quando da instalação do primeiro governo da Frente de Esquerda, em 1977. Cumprimos cerca de 90% do nosso programa, embora eu não negue que alguns pontos débeis permanecem. Temos um compromisso de levar luz elétrica a todas as aldeias e ele ainda não se completou, embora eu tenha sido informado de que ele estará cumprido até 2012, quan do se conclui o sétimo governo da Frente de Esquerda.



Esta é a nossa marca distintiva: nunca escondemos nada do povo, mesmo nossos pontos negativos. Pedimos aos companheiros de partido que escutem as críticas que nos fazem. Se há algo de positivo que pode ser feito, então tem que ser feito. Caso contrário, então é preciso dizer ao povo, diretamente.



Este é o nosso jeito de funcionar. Assim é, apesar do fato de que em muitos casos o governo central (de Nova Delhi) é o responsável pelos lapsos. Freqüentemente ele cria obstáculos aos nossos programas de desenvolvimento, para prejudicar nossa imagem.


P: Dizem que Bengala Ocidental enfrenta discriminações. Esclareça este ponto por favor.


Basu: Vejam, desde muito cedo temos enfrentado variadas conspirações e discriminações. Temos um bocado de experiência nisso.



Eu recordo perfeitamente dois ou três destes incidentes. Em dado momento havia um programa eletrônico para a área de Salt Lake, e a então primeira ministra Indira Gandhi prometeu que nos ajudaria. No entanto, depois de me deixar um ano esperando,ela disse que os seus funcionários, que estavam no comitê formado para examinar a matéria, tinham opinado por unanimidade que o projeto não devia seguir adiante. A idéia deles era que não se devia investir em Bengala Ocidental porque era um estado fronteiriço. Ridículo! Eu perguntei qual era o problema. Se era um problema ligado à segurança, então haveria de ser mais grave no nordeste (onde o Estado faz fronteira com três países vizinhos), mas ela (Indira Gandhi) disse que não podia fazer nada, pois os seus funcionários não se dispunham a dar a permissão.



Mais tarde coinstruimos o complexo eletrônico, sem ajuda do governo federal, ocupando 1,2 milhão de metros quadrados. Hoje, entre 25 mil e 30 mil jovens trabalham ali.



Ou tomemos o caso do complexo petroquímico de Haldia, um projeto de mais de 500 mil rúpias, que teve de esperar durante 11 longos anos pela permissão do governo central. Agora, mais de 70 mil pessoas estão empregadas nas indústrias derivadas dele.


P: Qual a sua visão sobre o papel da oposição, no que se refere aos programas de desenvolvimento em Bengala Ocidental?



Basu: Eu já disse muitas vezes que o papel da oposição, seja ele maior ou menor, é muito importante n uma democracia parlamentar, mas que deve ser uma oposição responsável. Os partidos de oposição têm o direito de criticar os programas do governo, caso julguem que estão errados, mas de maneira responsável. Porém quando implementamos um programa a favoir do povo, por que não podem cooperar conosco?



Bengala Ocidental é hoje o maior produtor de arroz e o segundo maior produtor de batatas do país. Através do programa de reforma agrária, distribuimos a terra entre o povo pobre. Este programa continua.



Agora, nosso governo se concentra em medidas de industrialização, em benefício dos jovens desempregados. Isso ee uma necessidade do nosso estado. Já houve um tempo em que Bengala Ocidental ocupava um lugar de honra no que se refere a indústrias. Mas devido a um programa de licenças politicamente motivado e à política de equalização dos fretes seguida pelos sucessivos governos centrais do Partido do Congresso, o estado passou a sofrer uma aguda estagnação industrial. Agora, com a remoção dessas regulações e o fim da discriminação, eu diria que precisamos também de investimentos estrangeiros para a indústria crescer. Mas digo também que este deve se basear no benefício mútuo, protegendo os legítimos interesses di nosso povo trabalhador.



Entretanto, a oposição em nossso estado está longe de provocar o caos sobre os programas de desenvolvimento da Frente de Esquerda. Mesmo quando eu era governador, fizemos apelos à oposição para que esta cooperasse com os programas de desenvolvimento em nosso estado. Eu também fui ao primeiro ministro, Rajiv Gandhi, com uma delegação de todo o partido, embora Mamata Banerjee e Ajit Panja na época não tenham vindo comigo. Mamata disse: Não podemos ir com vocë encontrar Rajiv Gandhi.



Embora nosso governo tenha iniciado um programa de desenvolvimento para o estado, eles criaram problemas. Poucos meses atrás, Os parlamentares de Trinamool saquearam a sede do Legislativo, destruiram mobílias de alto preço e bens do poder público. O que é isso? Será uma atitude responsável?



Estou tentando explicar que no passado também nós estivemos na oposição, mas desempenhamos um papel construtivo e responsável sempre que o que estava no centro era uma medida desenvolvimentista. O povo de Bengala Ocidental viu em nós uma oposição responsável. Nunca criamos problemas para os projetos de desenvolvimento em nosso estado, ou em questões de interesse do nosso povo. Quando o governador Biudhan Chandra, do Partido do Congresso, tomou a iniciativa da usina siderúrgica de Durgapur, ou a do estaleiro de Kalyani, nós apoiamos.



P: Em 21 de junho o governo da Frente de Esquerda comemora 30 anos. Como líder veterano do movimento comunista indiano, qual seria a sua mensagem?



Basu: Estou extremamente satisfeito em ver nosso governo entrar agora em seu 31º ano. Isso é histórico, numa democracia parlamentar. Agora precisamos de uma campanha em nível nacional, para difundir o que fizemos em Bengala Ocidental, Tripura e Kerala neste prolongado período. O povo pelo país afora deve saber que tipos de programas alternativos foram aplicados nestes estados. Também fazemos a pergunta: por que outros estados não poderiam fazer o que fizemos, fizemos sofrendo severas limitações constitucionais e em uma estrutura sócio-política desfavorável?



Embora sejamos muitos fortes nos três estados que citei, e tenhamos alguma influência também em uns tantos outros estados, o nosso partido ainda não é forte na Índia como um todo. Por isso temos que fortalecer, não só o partido, mas também as nossas organizações de massas. Sem reforço das organizações de massas, não podemos construir um partido possante em todo o país.



Acredito que, dentro da atual estrutura burguesa-latifundiária, temos que agarrar qualquer pequena oportunidade que se ofereça. Nosso objetivo é construir uma sociedade sem classes, sem exploração, e devemos continuar o combate por esta meta, embora eu não saiba quanto tempo isso vai levar.



Fonte: http://pd.cpim.org