Belluzzo: Pessimistas, otimistas e demagogos

“Otimistas e pessimistas se engalfinham nos prognósticos sobre o desfecho da crise nos mercados de imóveis dos Estados Unidos. O certo é que uma crise sistêmica só ocorrerá se as instituições financeiras, sobretudos os bancos, sofrerem perdas suficientes

Frutos da reestruturação capitalista do anos 70, a desregulamentação financeira, a crescente integração produtiva e comercial das economias fomentaram a abertura generalizada das contas de capital. Após o colapso do sistema de taxas de câmbio fixas e a crise do keynesianismo nos anos 70, essas tranformações avançaram rapidamente, mas só produziram integralmente seus efeitos na segunda metade dos anos 90.



Naqueles anos, o professor Luciano Coutinho e este escriba arriscaram algumas linhas sobre o tema na revista Economia e Sociedade. Dizíamos, então, que a composição da riqueza social sofreu uma importante mutação nos países desenvolvidos, sobretudo nos EUA. A securitização promoveu o crescimento da participação dos haveres financeiros na composição da riqueza privada. Nos países desenvolvidos, as classes médias tambem passaram a deter – diretamente ou através de fundos de investimento ou de fundos de pensão e de companhias de seguro – importantes carteiras de títulos e ações. O patrimônio típico das famílias de renda média e alta passou a incluir ativos financeiros em proporção crescente, além dos imóveis e bens duráveis.



Este processo não ficou confinado às famílias e às fronteiras nacionais: a globalização financeira caminhou de mãos dadas com a internacionalização produtiva. As empresas transnacionais passaram a incitar a concorrência global adotando estratégias hoje identificadas: 1) a deslocalização “multimercados”; 2) gestão eficiente dos portafólios, o que inclui a recompra de ações, a maximização do fluxo de caixa líquido e o movimento de fusões e aquisições; 3) a prevenção dos riscos e o aproveitamento das ” oportunidades ” oferecidas pelas expectativas de variação entre as taxas de juro e de câmbio.



O desenvolvimento de inovações financeiras (técnicas de hedge através de derivativos, técnicas de alavancagem, modelos e algoritmos matemáticos para “gestão de riscos”), associado às intervenções de última instância dos bancos centrais, permitiu a formação de um ” consenso altista ” e a importância cada vez maior do “efeito-riqueza” nos gastos de consumo das famílias e nas decisões de investimento das empresas.



Naquela ocasião, chamavamos a atenção para as situações divergentes entre os países desenvolvidos. O Japão, por exemplo, fixava em zero as taxas de juros básicas, com o propósito de impedir o avanço das forças deflacionárias que ameaçaram sua economia ao longo da longa estagnação dos anos 90 e início do terceiro milênio. Isto explica a concomitância entre a ampliação do deficit em conta corrente dos EUA e a valorização do dólar no ciclo de expansão da segunda metade da década de 90.



A partir da recuperação das economias asiáticas em 99, entraram em cena os elevados superavits comerciais e a célere acumulação de reservas dos tigres e dragões, frutos da busca de proteção contra o risco de novos e indesejáveis solavancos financeiros e da sistemática defesa das taxas de câmbio competitivas.



A crise sistêmica só virá se as instituições financeiras sofrerem perdas suficientes para induzir uma forte contração do crédito 



Entre 2001 e 2004, os bancos centrais dos emergentes passaram a finananciar o deficit em transações correntes dos Estados Unidos. A forte redução de taxas de juros promovida pelo Federal Reserve tornou suave a recessão americana e, de quebra, deflagrou o “inchaço” da bolha imobiliária, alem de reabilitar a febre de fusões e aquisições.



A conjugação entre taxas de juro reduzidas nos Estados Unidos e no Japão reforçou o apetite dos investidores – sobretudo os fundos de hedge – pelas operações de carry trade: tomar recursos baratos em uma determinada moeda (no caso, dólar ou yen) e aplicá-los em outras moedas (como, por exemplo, o real) com rendimentos mais elevados.



A partir de 2004, consolidada a expansão da economia, o FED reiniciou a subida dos juros de curto prazo. Mas a taxa formada nas transações com os títulos de dez anos – o “benchmark” do mercado secundário – se manteve mais bem comportada do que imaginavam os pessimistas. Deu-se a inversão da “curva de rendimentos”, fenômeno que, em outros tempos, anunciava a iminência de recessão.



Os bancos e demais intermediários financeiros, no mesmo passo em que as projeções otimistas se confirmavam, lançaram-se à cata de novos clientes. Passaram a inchar suas carteiras de ativos com dívidas de clientes duvidosos, como é o caso dos empréstimos “subprime” no mercado de hipotecas.



Hoje, o mercado imobiliário americano dá marcha a ré nos preços e nas quantidades. Com o encolhimento, inicia-se a temporada de inadimplências entre os devedores de maior risco. Dizem os pessimistas que os ” canistas ” do crédito “subprime” vão assustar os bancos, contaminar os empréstimos de boa qualidade e deflagrar um contração geral do crédito.



Nas esquinas de Wall Street, a despeito das celebrações das bolsas de valores, correm rumores de crise sistêmica. Não é fácil definir com precisão o que é uma crise sistêmica, mas é possível reconhecer o fenômeno quando está ocorrendo. Numa pesquisa exaustiva, os economistas De Bandt e Hartmann afirmam que uma crise sistêmica ocorre quando “um número considerável de instituições financeiras ou mercados afetam o bom funcionamento do sistema de crédito, ou seja, afetam negativamente a eficiência da transformação da poupança em investimento produtivo”. Os dois economistas estão falando de um contração do crédito, um “credit crunch”, que pode se esparramar por toda a economia e disparar uma crise no setor dito “real”, sobretudo no consumo das famílias, no investimento produtivo e no emprego.



Indagado, certa vez, sobre o futuro da Alemanha, Max Weber respondeu que a cátedra não é lugar para demagogos. Otimistas e pessimistas se engalfinham nos prognósticos sobre o desfecho da crise nos mercados de imóveis dos Estados Unidos. O certo é que uma crise sistêmica só ocorrerá, como já advertiu o economista Charles Kindleberger, se as instituições financeiras, sobretudos os bancos, sofrerem perdas suficientes para induzir uma forte contração do crédito, com efeitos danosos para a economia “real”.



* Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp; fonte: Valor Econômico