Sem categoria

Caso Richarlyson: Gol contra do preconceito

“A lei é uma forma mais ou menos hábil de burlar a Justiça.” Nesse pensamento de Millôr Fernandes, a ética para, “data venia”, argüir a sentença de um juiz de direito na queixa-crime apresentada na Justiça por Richarlyson, jogador do São Paulo, contra

Diga-se logo que uma sentença deve observar pelo menos dois princípios fundamentais: legalidade e impessoalidade, bases para construir a Justiça. A legalidade não foi respeitada, já que a decisão que arquivou o caso de Richarlyson fere a Constituição –como (quase) todo mundo sabe, ela proíbe a discriminação. Além disso, a sentença foi absolutamente pessoal, homofóbica e intolerante.



No “tira-teima”, vemos que o árbitro – ou melhor, o juiz de direito – disse que, “se fosse homossexual”, bem, “nessa hipótese”, para o jogador, “melhor seria que abandonasse os gramados”. Uma peça rasa, de mau gosto e pobre de argumentos.



Outro lance: “Trazer o episódio à Justiça outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol”. Isso sem falar na linguagem convocada: “Cada um na sua área, cada macaco em seu galho, cada galo em seu terreno, cada rei em seu baralho”.



Atenção: a torcida sabe vaiar… As regras do futebol supervisionadas pela International Board são 17.



Nenhuma permite a discriminação por opção sexual. Aliás, uma das dimensões mais importantes do futebol, fator que ajuda a explicar sua planetária popularidade, é exatamente esta: qualquer pessoa pode jogar – e jogar bem – futebol, independentemente de classe, cor, tipo físico, opção sexual ou gênero.



O nosso futebol feminino acaba de provar isso, com a brilhante conquista do ouro no Pan, o mesmo torneio em que os rapazes pagaram o maior vexame. Países como Alemanha, Suécia e Estados Unidos já provaram a “igualdade” do futebol.



Um dos maiores escritores da atualidade, Vargas Llosa, diz que o futebol pode ser um exemplo, pois, nele, a avaliação, em geral, obedece ao critério do mérito, e não a outro qualquer.



É uma lição que todos que têm a responsabilidade de tomar decisões deveriam preservar. E cartão vermelho para quem não fizer o dever de casa.



Na Alemanha, pouco antes da Copa, autoridades da alta magistratura do país se reuniram para afirmar que o futebol deveria ser uma prioridade, um veículo de reeducação e assimilação de novos valores.



Na prática, foram mapeadas e controladas pela polícia e pela Justiça 142 associações neonazistas, racistas e xenófobas, as quais, entre outras práticas de violência, defendiam a agressão aos homossexuais.



Ao avaliar o resultado do mundial, os alemães cantaram e dançaram no Portão de Brandemburgo sob o lema: “A Itália ganhou uma Copa; a Alemanha, uma alma”. E essa “alma”, diziam, é a de um país civilizado, tolerante, livre de preconceitos.



No Brasil, estima-se que existam mais de mil grupos organizados que defendem o direito dos homossexuais. Isso não é por acaso. A exclusão é grande, sem dúvida. Mas a Justiça não pode reproduzir o que há de mais atrasado na sociedade. A luta desses grupos têm impacto em toda a vida social, já que a liberdade de uns ajuda na liberdade de todos. O respeito é um dos fundamentos da civilização.



O filósofo e escritor Camus, que foi goleiro, afirmou que o melhor que havia aprendido sobre ética e bons costumes devia ao futebol. Este, mais do que um esporte, é uma analogia da vida – e, assim, é um grande tema para as ciências humanas, inclusive para o direito. O futebol é uma via de acesso a temas de alto valor, como a inclusão social e a igualdade de oportunidades.



Desconhecer isso é grave para uma ocupação tão relevante quanto a de um juiz; conhecer e não observar é muito pior e condenável.



Rui Barbosa, expoente de nossa cultura jurídica, era um entusiasta do caráter educacional dos esportes. Considerava-os o lugar do mérito e dos ideais de igualdade. Por isso, os jovens precisavam de esporte, para que, no futuro, melhorassem a sociedade.



Assim, poderíamos reduzir a nossa lamentável impunidade, fazer justiça com letras maiúsculas e, quem sabe, eliminar da vida brasileira uma de suas angústias: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos corruptos, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.



* Maurício Murad, sociólogo, doutor em sociologia do esporte, é professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e do mestrado da Universo. É autor, entre outras obras, de “A Violência e o Futebol, dos Estudos Clássicos aos Dias de Hoje”.


Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (5) da Folha de S.Paulo


Leia também: Juiz homofóbico será processado por Richarlyson