A dor da sobrevivência no canavial
Priscila Lobregatte,
enviada a Guariba, São Paulo
João e José são dois jovens cortadores de cana, de 20 e 23 anos. Seus nomes são fictícios porque ambos temem sofrer represálias onde trabalham, em usinas da região de Ribeirão Preto. Os d
Publicado 07/08/2007 15:13
O número vem crescendo, apesar da alta mecanização. “As usinas costumam colher com máquinas de 30% a 60% da cana e a expansão do plantio na região aumentou tudo o que podia aumentar. Então, a mecanização cresceu, mas como também aumentou a área de plantio, a mão-de-obra dos cortadores ainda é muito procurada”, diz irmã Inês Facioli, da Pastoral do Migrante, que há 23 anos atua na região de Ribeirão Preto. Os dois amigos, assim como a maioria dos canavieiros, vivem em condições precárias. Dividem uma pequena, velha e escura casa, de quatro cômodos, com duas pessoas. Nos fundos, vivem outros três trabalhadores do campo. A sala, simples, tem apenas uma televisão antiga, uma cadeira velha e uma rede, suspensa para não atrapalhar o caminho durante o dia. Para conversar, João e José sentam-se no chão ou nos garrafões térmicos que usam para levar sua própria água para o canavial. “A gente acorda bem cedo, por volta das 3h30 da manhã. Comemos alguma coisa, preparamos a marmita e nosso garrafão de água e saímos para esperar o ônibus”, diz João. “Apenas por volta de meio-dia é que vem o caminhão-pipa abastecer as nossas garrafas. Algumas vezes, o caminhão não vem”, completa José. A roupa, que fica sob a responsabilidade dos trabalhadores, deve ser lavada por eles mesmos, diariamente. “Não há condições de usar a roupa no dia seguinte sem lavar porque ela fica muito suja e até dura por causa do suco que a cana solta”, explica João. Como só têm um jogo de roupas para usar, o jeito é lavar logo que chegam. “E tem que secar, não tem jeito”, brinca. As usinas fornecem as botinas, as joelheiras de proteção, o “boné-árabe”, os óculos, um casaco protetor e o facão. “A gente precisa afiar o podão. Cada um deles dura umas duas ou três semanas”, explica José. Muito suor por nada Cada um deles ganha em média R$ 600 por mês e cortam o que acreditam ser entre 8 e 10 toneladas de cana. É difícil ter certeza sobre a tonelagem porque o material colhido não é pesado. “O fiscal olha e avalia quanto deve ter de cana num pedaço de terra. E diz ‘aqui tem tantas toneladas’. Nós mesmos não temos certeza de que ganhamos o que cortamos”, conta José. Eles explicam que cortam o equivalente a 80 metros por dia. Cada 10 metros, segundo os canavieiros, correspondem a uma tonelada. João denuncia: “eles convertem o metro em tonelada, mas isso não vem expresso em nosso holerite”. O preço da cana também varia. “Cada metro fica entre R$ 0,17 e R$ 0, 24. Isso varia de acordo com o tipo de cana – se tem ou não tem mais sacarose – , ou se está caída, que é mais cara porque dá mais trabalho para cortar”, diz José. No entanto, irmã Inês adverte: “hoje, muitos trabalhadores aceitam trabalhar por até R$ 0,11 o metro cortado de cana.Eles são uma mão-de-obra muito barata porque as usinas não precisam assumir nenhum tipo de responsabilidade com moradia, alimentação ou convênios de saúde. As usinas, portanto, devem lucrar bastante”. Além disso, explica irmã Inês, os usineiros preferem usar as máquinas a partir do terceiro e quarto cortes, “porque no primeiro e no segundo, elas ainda são muito duras e estragam as máquinas”. Estudo feito recentemente pelo professor Francisco Alves, do Departamento de Engenharia de São Carlos, esclarece que “muitas vezes, os trabalhadores sabem que cortaram uma quantidade de metros elevada, mas como a cana pode ser de pouco peso, eles acabam tendo um ganho pequeno. Desta forma, fica claro que o pagamento por produção, além de ser uma forma de pagamento arcaica, é perversa e desgastante. No caso da cana é mais perverso ainda, pois o ganho não depende apenas dos trabalhadores, mas de uma conversão feita pelo departamento técnico das usinas”. Do total que tiram no mês, João e José conseguem guardar apenas cerca de R$ 200 cada um. No final de seis meses de trabalho, a economia resulta em algo em torno de R$ 1.200. “Pagamos tudo, da moradia à comida. É tudo racionado pra sobrar um pouquinho pra gente levar pro Maranhão. A gente só procura se alimentar bem”, contabilizou José. Desilusão no canavial Lado a lado com o crescimento no número de cortadores de cana no país – a safra 2006/2007 conta com cerca de 1 milhão de canavieiros, aumento de 43% em relação à safra anterior, que contou com 700 mil – caminha também o aumento da desilusão de muitos migrantes que deixam seus estados fugindo do desemprego e não conseguem ser absorvidos pelo mercado sucroalcooleiro. “Neste ano, a migração se intensificou. E os cortadores chegaram, inclusive, mais cedo para conseguir moradia porque são inflacionadas na região de Ribeirão Preto. Só que tem gente que desde que veio, em março, não conseguiu emprego e acaba tendo que viver de pequenos bicos”. O caso de João e José não é muito diferente. Embora tenham vindo para Guariba nos últimos dois anos e tenham conseguido trabalhar no corte de cana, os amigos maranhenses se dizem cansados da vida que levam. José diz que “é duro ser cortador de cana porque o seu serviço nunca está bom. Às vezes, você trabalha um dia todinho pensando ‘acho que hoje estou fazendo o serviço certo’. Aí, o feitor vira e fala ‘tem que melhorar’. Para os dois, no entanto, o que mais dói são, como disse João, o salário baixo e a desvalorização do trabalhador. “Não temos valor pra eles”, lamentou. José completa: “eles tiram o couro da gente. Trabalhamos pesado e eles descontam tudo. Se faltar, descontam mais ou menos R$ 100 e ainda perdemos a folga”. Mesmo sendo o Maranhão um dos estados mais pobres e menos industrializados do país, José pensa em voltar para a casa e tentar a sorte por lá. “É difícil achar emprego por lá, ainda mais para os jovens, mas temos menos contas para pagar e temos nossas famílias. Aqui, só trabalhamos, não ganhamos bem e ainda por cima não temos sequer um pouquinho de lazer. E chegamos tão cansados em casa que não temos condição para nada”, reclama João. O professor Francisco, em seu estudo, mostra do que resulta o cansaço e as mortes por estafa dos cortadores de cana. “Um trabalhador que corte 12 toneladas de cana por dia de trabalho realiza as seguintes atividades: caminha 8.800 metros; despende 133.332 golpes de podão; carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 kg, em média, portanto, faz 800 trajetos e 800 flexões, levando 15 kg nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros. Faz aproximadamente 36.630 flexões e entorses torácicos para golpear a cana. Perde, em média, 8 litros de água por dia, por realizar toda esta atividade sob sol forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada, trajando uma indumentária que o protege da cana, mas aumenta sua temperatura corporal”. Mais adiante, conclui: “fica fácil entender porque morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em São Paulo: por causa do excesso de trabalho”. Ele lembrou ainda que “muitos vêm e voltam desiludidos porque ninguém conta para eles as dificuldades que a gente passa aqui, sem ter onde morar e o que comer. Só contam o lado bom, de ganhar dinheiro. Acham que vão conseguir comprar carro, moto, ficar bem de vida. E José completa: “conheço gente que cortou cana por 20, 30 anos e não tem nada. Só os usineiros enriquecem”. Irmã Inês vai além ao falar do sofrimento dos canavieiros. “Eles deixam seus filhos em seus estados, às vezes trazem apenas alguns. Vão perdendo seus vínculos, choram ao lembrar de sua família. É a dor da sobrevivência. O que vemos aqui, trabalhando com essas pessoas é que quando a lógica é a produção e o dinheiro, o ser humano sempre sai humilhado”.
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* Matéria originalmente publicada na versão eletrônica do jornal A Classe Operária, em fase de teste. Para ler a última edição do jornal, clique aqui.