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Russell Baker: Será hora de dar adeus aos jornais? (parte 1)

A imprensa norte-americana está triste. Inúmeras autoridades já garantiram que está com os dias contados, inúmeros bons jornais estão em ruínas. Ela perdeu muito do respeito por parte do público. A justiça, que antes a tratava como um tigre adormecido,

Sua publicidade e circulação vêm sendo sugadas pela internet, e seus patrões parecem atingidos por uma falta de imaginação empresarial necessária para prosperar na era eletrônica. Pesquisas mostram que um número cada vez maior de jovens obtém informação pela televisão – e os computadores produzem a melancólica sensação de que a imprensa é coisa do passado, uma charrete puxada por cavalo numa via expressa de oito pistas.


 


Depois, há o lado atrapalhado: a desonestidade de pessoas como Jayson Blair ou Stephen Glass torna o jornalismo uma farsa. A elite dos jornalistas de Washington teve um papel decepcionante, ajudando um grupo de neoconservadores a criar a guerra do Iraque. Onde estão os heróis? Nos tempos de Watergate, os jornalistas se reuniam, ao jantar, para contar as peripécias de Bob Woodward e Carl Bernstein; ou de David Halberstam, Neil Sheehan e Malcolm Browne no Vietnã; ou de “Punch” Sulzberger e Kay Graham, arriscando tudo com a publicação de Pentagon Papers. Em vez de a conversa ser sobre heróis, o bate-papo de hoje é sobre fraudes jornalísticas e a debilidade da imprensa de Washington.


 


É evidente que Rupert Murdoch sempre espalhou tristeza pelas redações mundo afora, mas foi a notícia, divulgada em maio, de que a família Bancroft, que controla o Wall Street Journal, estaria disposta a vender o jornal por US$ 5 bilhões que calou mais fundo na alma do jornalismo. A venda de mais um jornal é assunto corriqueiro nos dias de hoje, mas o Wall Street Journal não é “mais um jornal”. Assim como o New York Times e o Washington Post, vem sendo controlado, há gerações, pelos descendentes de um patriarca fundador.


 


O controle familiar protegeu esses três jornais das exigências mais insistentes de Wall Street, permitindo-lhes fazer um jornalismo de boa qualidade – e alto custo. Dizia-se, e acreditava-se, que as famílias que os controlavam eram movidas por um senso irrepreensível de que seus jornais eram instituições quase-públicas. É claro que o lucro era essencial à sua sobrevivência, mas não era o objetivo essencial de sua existência.


 


Quando uma dessas famílias pode vir a aceitar o dinheiro e sair do prédio, surge o medo de que, afinal, nenhum jornal é tão valioso para a República que não se possa submeter ao mercado por um preço razoável. A presença de Murdoch no Journal significa um mau presságio para os jornalistas de todo o mundo. Quando a placa, à entrada, diz “Tudo à venda”, é freqüente acrescentarem: “Estamos fechando”.


 


O valor do jornal


 


Existe uma literatura crescente sobre a quantidade dos problemas do jornalismo, mas em sua maior parte trata do lado editorial, possivelmente porque a maioria das pessoas competentes para escrever sobre jornalismo não se sente à vontade para escrever sobre finanças. Entretanto, é nas questões de propriedade e gerenciamento que existem os problemas mais graves.


 


A melhor discussão sobre as preocupações dos proprietários e dos gerentes administrativos pode ser encontrada nas próprias páginas dos jornais, na editoria de finanças, escritas por jornalistas especializados em gerenciamento. Um documento muito divulgado entre jornalistas é um discurso pronunciado por John S. Carroll, ex-editor do Los Angeles Times, na American Society of Newspapers Editors.


 


Trata-se de uma abordagem eloqüente do desconforto que sentem muitos repórteres e editores em relação ao futuro. Carroll deu a seu discurso o título “O que acontecerá com os jornais?” e, tal como o título sugere, seu prognóstico não é alentador.


 


Ele ficara particularmente preocupado com a ausência de compreensão entre os proprietários e os jornalistas empregados e com a perda de objetivos comuns que anteriormente os unia. Isso ocorrera, segundo ele, porque as funções que antes tinham pertencido ao domínio dos grandes publishers haviam sido preenchidas pelos gerentes financeiros de Wall Street.


 


A ruptura começara há cerca de 40 anos, quando proprietários locais começaram a vender seus jornais para grandes conglomerados. Com a mudança da natureza de mercados, o poder das empresas passou a ser exercido por fundos de investimento, os quais ganham dinheiro investindo o dinheiro de outras pessoas, multiplicando-o.


 


Tornou-se difícil saber quem ou o que era proprietário de um jornal. Os donos deixaram de ser “seres humanos identificáveis”, como disse Carroll. Às vezes, o dono, que havia tido um nome – Otis Chandler, do Los Angeles Times, John Knight, do grupo de jornais Knight Ridder, ou Barry Bingham, do Courier-Journal, de Louisville – tornava-se uma entidade abstrata.


 


Às vezes, a sala da diretoria parecia ser um espaço ocupado por pesquisadores de mercado fuçando pelo mundo afora, por meio de computadores, em busca de oportunidades de investimento lucrativas. Às vezes, era um gerente de fundos sem experiência ou interesse algum por jornalismo.


 


Nessa “fase de propriedade pós-corporações”, disse Carroll, o objetivo do jornal se torna mais estreito aos olhos do dono. No tempo dos antigos patrões locais, a capacidade de um jornal dar dinheiro era apenas uma parte de seu valor. Atualmente, é tudo. Foi-se a idéia de que um jornal deve ter liderança, de que tem uma obrigação para com sua comunidade, de que tem um dever para com o público…


 


Espaço diminuído


 


O que pretendem os atuais donos de seus jornais? A resposta não podia ser mais simples: dinheiro. É isso. Carroll é uma autoridade no assunto. Enquanto editor do Los Angeles Times, o dono a quem ele tinha que se dirigir era a Tribune Company, um conglomerado que brotou do Chicago Tribune, do coronel Robert McCormick.


 


Antes que alguém pudesse adivinhar que o boom do mercado de capitais do final do século passado era uma bolha que surgia, a Tribune Company já tinha comprado jornais famosos por todo lado. Entre eles, o Los Angeles Times, então amplamente respeitado e tido como um dos melhores diários dos Estados Unidos.


 


Sua reputação fora construída, uma geração antes da chegada de Carroll, por Otis Chandler, um publisher dinâmico, disposto a gastar – às vezes, de maneiras extravagantes – para competir com o melhor jornalismo. Tinha como fazê-lo porque pertencia à família proprietária do jornal: os descendentes de Harry Chandler (1864-1944), um magnata do mercado imobiliário da Califórnia que preparara reservas monetárias para seus filhos durantes os anos da depressão.


 


A família multiplicou-se rapidamente e, pelas últimas contas, acreditava-se que a herança dos fundos de Chandler seria a principal fonte de renda de cerca de 170 descendentes de Harry. Na época de Otis, o número era menor, obviamente, e embora muita gente reclamasse de seu estilo autoritário e de sua indiferença quanto à tradicional linha editorial direitista do jornal, ele conseguia se dar bem com o Times, desde que o dinheiro dos outros Chandler não fosse posto em risco.


 


Passou-se o tempo, e Otis junto com ele, e os herdeiros Chandler – que nunca haviam sido entusiastas por jornalismo – foram cortejados pela Tribune Company. O negócio se consumou no ano 2000, com a Tribune Company comprando o Times e o grupo Times-Mirror Company por 8 bilhões de dólares em ações e três lugares na diretoria da Tribune.


 


A própria Times-Mirror Company comprara jornais (o Newsday, em Long Island, o Baltimore Sun e o Hartford Courant, entre outros) e todos eles acabaram despejados na cesta da Tribune, em Chicago. É evidente que a Tribune era uma organização financeira colossal e, portanto, extremamente vulnerável quando a bolha do mercado de capitais estourou e as ações, em especial de jornais, começaram a cair.


 


O jornalismo estava sendo talhado por uma teoria de Wall Street segundo a qual os lucros podem ser maximizados minimizando o produto. Jornais do mundo inteiro recebiam exigências constantes de melhorar o desempenho na Bolsa. A política que resultou dessa dissecação de cortes nos custos deixou uma paisagem entulhada de jornais debilitados, empobrecidos e gravemente feridos, que se tornaram cada vez mais inúteis para qualquer leitor que queira saber o que acontece no mundo, sobre o país ou a comunidade local.


 


A política de cortes reduziu o número de correspondentes estrangeiros, minimizou ou fechou agências de notícias em Washington e mutilou as equipes de reportagem locais que ficavam de olho nos governadores, prefeitos, deputados estaduais, malandros de cidadezinhas, bandidos e corruptores de magistrados. Também diminuiu o tamanho da típica página de jornal, cortando os custos de impressão através de cortes no conteúdo do noticiário.


 


Os jornais noticiam sua própria erosão em suas colunas de economia, exibindo teimosamente a diminuição, centímetro a centímetro, do tamanho das páginas e da cobertura noticiosa, mas as estatísticas não têm como transmitir, por si sós, a verdadeira perda para o país.


 


Além do Los Angeles Times, os jornais que deixam transparecer a devastação da política de cortes incluem alguns dos títulos que já estiveram entre os melhores do país: The Baltimore Sun, The Miami Herald, The Philadelphia Inquirer, The Des Moines Register, The Hartford Courant, o Courier-Journal, de Louisville, o San Jose Mercury News e o St. Louis Post-Dispatch, por exemplo.


 


Mundo do dinheiro


 


Os donos atuais, com esse novo estilo, ficam perplexos quando editores ou repórteres utilizam a tradicional argumento de que o jornalismo presta um serviço público fornecendo aos cidadãos a informação de que necessitam para que a democracia funcione. Os novos donos têm outra noção do dever. Segundo Carroll, “às vezes eles ficam sinceramente perplexos ao encontrarem pessoas, em seu meio, que não se sentem agradecidas, em primeiro lugar e antes de tudo, ao acionista”.


 


Em que confia essa gente?, perguntam-se. O trabalho de qualquer empregado, na opinião deles, é produzir um bom resultado financeiro, e não entregar-se a fazer o bem sonhadoramente às custas da empresa… Nossos superiores dos conglomerados vêem nossas crenças como estranhas, desperdiçadoras e cada vez mais cansativas.


 


O discurso de Carroll é precioso por traduzir a visão sinistra de um jornalista de como as práticas competitivas do mercado mudaram a profissão; mas Donald Graham pronunciou uma visão semelhante de sua cadeira de presidente da diretoria do Washington Post e seu comentário apareceu na página de opinião e editorial do Wall Street Journal em abril, quando o New York Times criticava Wall Street.


 


Carroll diz que o capitalismo de livre mercado não funciona quando o negócio é jornal e, se aplicado rigorosamente, tende a destruí-lo. Surpreendentemente – uma vez que é dono, afinal de contas – Graham parece concordar. Seu texto, de cerca de mil palavras, é particularmente irado ao advertir que a insistência unívoca de Wall Street em maximizar os lucros pode ser fatal ao jornalismo.


 


Seu depoimento foi provocado pelos esforços de um gerente do banco Morgan Stanley para quebrar a estrutura acionária que garante à família de Sulzberger o controle do New York Times. Esse mecanismo foi incorporado ao estatuto do Times quando a empresa entrou no mercado de capitais, em 1967.


 


Ele limita o controle da empresa às pessoas que detêm ações preferenciais – a maioria delas, descendente de Adolph S. Ochs, que fundou o Times em 1896. O atual publisher, Arthur O. Sulzberger Jr., é neto de Ochs.


 


O banco Morgan Stanley tentou deflagrar uma revolta entre os acionistas não-privilegiados na primavera passada, incitando-os a não votar nos candidatos que a Times Company nomeara para diretores. Graham admitiu que não era parte desinteressada, uma vez que o Washington Post também adotou a mesma estrutura acionária para garantir o controle familiar da empresa.


 


O Post ganhou sua forma moderna em 1933, quando Eugene Meyer (personalidade importante nos meios de Wall Street) o comprou num leilão de falências. Graham é neto de Meyer, mas se a fortuna de sua família tem raízes em Wall Street, ele não esconde sua insatisfação pela forma com que o mundo contemporâneo do dinheiro trata o jornalismo.


 


O apoio ao ataque realizado pelo banco Morgan Stanley à estrutura acionária, escreveu, “é correr riscos malucos” e pôr em xeque o futuro do New York Times. Eliminando essa estrutura, “uma fila de compradores, sequiosos para adquirir a empresa, se formaria em questão de minutos”, escreveu Graham. “O New York Times“, previu, seria “leiloado como um quarto de boi.”


 



– A segunda parte deste texto será publicada no Vermelho nesta quarta-feira (8)


 


– Artigo publicado originalmente na The New York Review Of Books (volume 54, nº 13), com o título “Goodbye to newspapers?”. Tradução de Jô Amado para o Observatório da Imprensa