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Lei da Anistia, 28 anos: por que devemos revisar a história

Por Alipio Freire* (para o Brasil de Fato)
No dia 28 de agosto de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Anistia, que seria assinada, pelo último general-presidente, João Baptista de Figueiredo. Não era o projeto de Anistia Ampla, Geral e Irrestri

Os comitês inauguraram seu Primeiro Congresso em São Paulo, na noite de 2 de novembro de 1978, realizando um segundo em Salvador (BA), no ano seguinte, além de um terceiro, em Roma (Itália), organizado pelos CBAs dos exilados brasileiros e entidades de Defesa dos Direitos Humanos da Europa.


 


Apesar da derrota (por cerca de meia dúzia de votos) do seu projeto de lei no Congresso Nacional, a campanha obteve importantes vitórias: os presos políticos foram libertados, os exilados puderam regressar ao país, os militantes na clandestinidade puderam voltar à legalidade, e todos puderam reassumir seus direitos políticos, apesar das marchas e contramarchas a esse respeito.


 


O problema central, até hoje, reside na interpretação do texto da lei que, para os interessados na impunidade, implica uma anistia “recíproca”, concedida não apenas àqueles que lutaram contra o arbítrio e a iniqüidade, mas igualmente aos responsáveis pela repressão e seus crimes.


 


Esse entendimento e expediente, que impera até o presente, bem como sua contestação por diversos juristas e movimentos, impediu que os responsáveis pelos crimes fossem levados às barras dos tribunais competentes, julgados e punidos nos termos da lei.


 


Hoje, com o lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através de seu ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e do presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Barbosa, dá um importante passo no sentido de rever e reverter essa situação.


 


Para além do livro (ao qual ainda não tivemos acesso) não se pode subestimar o fato do seu lançamento ocorrer no Palácio do Planalto, com a presença do presidente da República. Saudamos o gesto. Desde a aprovação da Lei de Anistia, este é o primeiro governo que se manifesta oficial e afirmativamente sobre a questão – o que não é pouco.


 


Disto poderá depender não apenas o direito das famílias e dos amigos (bem como de todo o povo brasileiro e da comunidade internacional) de saberem do destino dos seus “desaparecidos” e até reaverem seus corpos – o que, por si só diz dos direitos dos cidadãos, como também implica o direito à memória e à história individuais e coletivas. É inconcebível um projeto de consolidação democrática e republicana para o país, se fechamos os olhos para este assunto.


 


Projetos em jogo


 


No entanto, se visamos à consolidação de uma democracia que atenda e corresponda de fato aos interesses da maioria povo brasileiro, é fundamental que passemos a entender que os militantes e outros cidadãos perseguidos e atingidos pelo regime civil-militar do pós-64, o foram por serem sujeitos de outros projetos políticos, de matriz popular (socialistas ou nacionalistas).


 


Projetos que se opunham frontalmente àquele de desenvolvimento baseado na concentração de riquezas e subordinação aos interesses do grande capital internacional, especialmente de Washington, defendido e implantado através das armas pelas classes dominantes – ou seja, uma ditadura de classe.


 


O que divide os brasileiros (o que sempre dividiu e continuará a fazê-lo enquanto perdure o atual sistema) não é o corte que propõe militares de um lado, e civis do outro. Prova disto são os milhares de militares punidos pela ditadura, e o engajamento de muitos outros nas organizações (inclusive clandestinas) que combateram aquele regime. Do mesmo modo, aquela ditadura não se concretizaria sem suas bases sociais (civis) e os políticos e quadros civis que participaram da conspiração, do golpe e da implantação e desenvolvimento do regime (inclusive nos chamados “porões”).


 


O que divide os brasileiros e os aglutina em dois grandes campos principais é, de um lado, os que são proprietários dos meios de produção e, do outro, aqueles que vendem sua força de trabalho no mercado, e a adesão a projetos que defendam os interesses reais de um ou outro desses campos. Os perseguidos e punidos pela ditadura, em sua esmagadora maioria, tinham clareza disto. O que lhes retira da condição de “vítimas inocentes”, como querem fazer crer alguns, por desconhecimento do assunto, ou de caso pensado, visando tirar o caráter político daquelas lutas e desqualificar seus sujeitos.


 


Outras tolices que, de tanto repetidas, acabaram por se tornar “verdades”, e que têm as mesmas matrizes apontadas no equívoco anterior (e usadas ora num tom “piedoso”, ora em tom de “ironia” – mais, ou menos velada) é a condição de “jovem” e/ou “estudante” atribuída a todos ou à maioria daqueles militantes.


 


Lembramos que “jovens” eram também a maioria dos que compunham as Forças Armadas e todos os aparelhos repressivos do regime: os torturadores, em sua grande maioria, eram tão jovens quanto os torturados. E eram também estudantes – não são esses atributos que os desqualificam ou condenam.


 


“Revisão historiográfica”


 


Por fim, a derradeira falácia que necessita ser combatida, em nome do direito à verdade: em sendo aqueles militantes “estudantes”, seriam todos parte da “pequena-burguesia”. Se bem entendemos (e entendemos bem), o pequeno burguês é o pequeno proprietário de meios de produção (ou negócios), o que não era a condição da maioria esmagadora daqueles militantes que ainda estudavam, nem de suas famílias – desafiamos quem prove o contrário sem lançar mão, por ignorância ou má fé, de tomar “pequeno-burguês” como sinônimo perfeito da categoria “classe média”.


 


A maioria daqueles que ainda estavam nas universidades (ou em qualquer outro tipo de estabelecimento de ensino) trabalhava (trabalho assalariado) e tinha origem em famílias de assalariados, ou de profissionais liberais. Qualquer pesquisa séria a partir das “grades” (listas com a relação diária dos presos alocados em um presídio, delegacia etc.) dos presídios políticos deixa claro o que afirmamos, e mais: os presos que ainda estudavam eram minoria absoluta nos cárceres.


 


O direito à verdade implica, portanto, também numa revisão historiográfica.


 


* Alipio Freire é jornalista e escritor. Militante político desde os anos 1960, esteve preso no período 1969-1974