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Obras-primas dos malditos Baudelaire e Flaubert fazem 150 anos

Por Eliane Robert Moraes
Quando Charles Baudelaire enviou um artigo sobre Madame Bovary para o jornal literário L'Artiste, publicado em outubro de 1857, ele pretendia bem mais que comentar o livro. Além de tornar manifesta sua opiniã

Num intervalo de apenas seis meses, os dois escritores tinham sido convocados pela justiça francesa para defender os respectivos livros das acusações de imoralidade imputadas pelo promotor imperial, o todo-poderoso Ernest Pinard. No final do processo, Flaubert foi absolvido, mas o autor de As Flores do Mal acabou sendo condenado a uma multa de 300 francos e a suprimir seis poemas do volume que acabara de lançar, fruto de mais de 15 anos de trabalho.


 


Menos que uma apreciação interna de Madame Bovary, a resenha de Baudelaire é uma resposta irônica aos juízes que o condenaram. Com linguagem elegante, mas sem esconder o desprezo pelos guardiães da moralidade pública e religiosa, sua argumentação se concentra no fato de que o polêmico romance dispensa 'o personagem proverbial e lendário, encarregado de explicar a fábula e de dirigir a inteligência do leitor'. Isso porque, completa o poeta, 'uma obra de arte não precisa de requisitório. A lógica da obra basta a todas postulações da moral, e cabe ao leitor tirar as conclusões da conclusão'.


 


Proferidas no calor da hora, essas palavras traduziam uma nova disposição de espírito que, a partir de então, viria transformar de forma decisiva a relação entre a literatura e seu público. Ao sustentar que a obra de Flaubert representava 'a negação do belo e do bem', os censores oitocentistas repisavam a tradicional visão de que cabia aos artistas a tarefa de transmitir valores edificantes para a sociedade. Mas era precisamente essa associação entre o Belo e o Bem que o poeta rejeitava, para desmentir a idéia de um pacto entre a arte e a ordem social, minando a crença oficial de que ambas deveriam partilhar os mesmos ideais. Baudelaire sabia que tal pacto, se difícil até em outras épocas, tornara-se impraticável depois de 1848.


 


De fato, a paisagem sensível se encontrava então sob fortes ameaças. De um lado, os discursos conservadores e as práticas autoritárias que davam o tom do segundo Império; de outro, a corrida pela acumulação de capital e a conseqüente valorização da vida prosaica, que avançavam a largos passos no mundo burguês do Oitocentos. Aos artistas desejosos de conhecer o coração dos homens, só restava uma opção: a de se tornarem testemunhas de seu tempo por meio de um olhar oblíquo, capaz de desvendar os anseios secretos de seus contemporâneos. Para tanto, era preciso ultrapassar as falaciosas apologias do Bem e se lançar a uma exploração obstinada de tudo aquilo que a ordem vigente reconhecia como Mal. Foi o que fizerem, com notável maestria, Flaubert e Baudelaire.


 


O “épico do comum”


 


Num mundo que silenciava os sentimentos em função dos interesses, a aposta na banalidade se revelava tão prudente quanto estratégica. O ócio e a fantasia – fontes essenciais da arte, do erotismo e das paixões -, eram considerados perigosos, pois comprometiam os desígnios de uma sociedade que parecia só obedecer ao imperativo do trabalho. Assim, canalizada a energia vital para as forças produtivas, o que sobrava era o cotidiano sem graça, a rotina enfadonha, o fastio por vezes insuportável. Mais que qualquer outro escritor da época, o autor de Madame Bovary soube vasculhar as ambigüidades deste mundo, deixando a descoberto não só sua mesquinhez como também sua crueldade.


 


Entende-se por que Henry James definiu o romance de Flaubert como um “épico do comum”, apontando a notável tensão entre o alcance trágico da história e a mediocridade dos 'costumes de província' que se impõem no subtítulo. Com efeito, a saga da personagem gira em torno de um drama banal, mas levado às últimas conseqüências: oscilando entre o ideal de ter uma vida extraordinária e o fato de ser uma mulher como outra qualquer, Emma Bovary acaba por encontrar a dor e a morte. Tragédia do cotidiano, portanto, já que o destino inescapável de toda jovem provinciana era tornar-se esposa e mãe, posição social que representava uma condenação ao tédio. Tragédia burguesa, privada e, por excelência, feminina.


 


Ora, essa tensão também se faz presente na poesia de Baudelaire, a começar pela escolha da figura feminina como encarnação dos dilemas da época. Ao explorar o avesso da vida burguesa, o poeta dá voz aos desejos inconfessáveis das mulheres de então, como que reconhecendo o fundo trágico do prosaico dilema da heroína de Flaubert. Daí que sua evocação às lascivas Mulheres Malditas termine com um apelo cheio de compaixão que caberia perfeitamente à Madame Bovary, tal como propõe a tradução de Ivo Barroso: “Pobres irmãs, eu vos renego e vos aceito, / Por vossa triste dor, vosso desejo eterno, / Pelas urnas de amor que inundam vosso peito!”.


 


Vale lembrar que a tônica de As Flores do Mal se concentra na oposição que nomeia sua parte inicial e mais densa: Spleen e Ideal. Nela, o autor reitera a aposta na dualidade sugerida no próprio título do livro para apresentar sua convicção de base: a condição humana é invariavelmente trágica, já que o homem sempre aspira ao ideal, mas vive sob o domínio do spleen, esse tédio devorador que 'num bocejo imenso engoliria o mundo'. A rigor, é esse 'monstro delicado' que detém a atenção de Baudelaire, como provam os quatro poemas intitulados Spleen, todos eles compondo um léxico no qual também imperam a dor e a morte.


 


Antítese dos 'costumes de província', a experiência urbana dos Quadros Parisienses que compõem a segunda parte do livro atenta com a fugaz promessa de escapar à reclusão solitária do tédio. Todavia, levada a fundo essa experiência, o poeta conclui que a cidade torna ainda mais cruel o isolamento, pois os encontros que ela promete não passam de miragens. Não há escapatória. Mais ainda: se o sofrimento é próprio da condição humana, por certo ele se intensifica nesse século 19 burguês que Baudelaire pinta como um inferno moderno.


 


Subversão ao sistema


 


Cada qual à sua maneira, Flaubert e Baudelaire realizaram o notável feito de desvelar os pontos nevrálgicos da sensibilidade oitocentista, lançando um olhar ácido e crítico aos valores mesquinhos daquela sociedade. Contudo, não foi apenas isso que rendeu a eles um processo criminal. A rigor, o grande 'crime' dos autores de Madame Bovary e de As Flores do Mal foi o de subverter o sistema literário de seu tempo, abrindo na paisagem sensível uma nova possibilidade de leitura.


 


Dito de outro modo: o escândalo desses livros se deveu sobretudo ao fato de seus criadores professarem uma ótica decididamente 'realista', mas rompendo com os limites do que era considerado desejável em termos de 'realismo'. Com evidente intenção irônica, ambos adotaram tal perspectiva para solapá-la por dentro, produzindo uma representação de choque que, aos olhos de seus censores, se confundia com a mais vil licenciosidade.


 


Para tanto, foi preciso inventar formas de escrita pautadas pelo distanciamento. No caso de Flaubert, tal intento fica evidente na fria neutralidade do romance, orientado por um ponto de vista narrativo que se assemelha a uma observação clínica. De fato, o texto se mantém completamente imparcial com relação aos atos de sua heroína, sem apelar a qualquer valor moral: não há compaixão, nem tampouco desprezo por parte de narrador, transferindo para o leitor a desconfortável tarefa do julgamento.


 


De modo semelhante, Baudelaire desiste de toda complacência para com o público, lançando mão do humor negro, do sarcasmo ferino e da 'voraz ironia' que transparece desde o título do livro, criando assim o mesmo efeito de distanciamento. Provocantes e provocadoras, as flores do mal forçam o leitor – esse 'semelhante', esse 'irmão' do poeta – a partilhar de sua lucidez impiedosa, consigo mesmo e com todos os homens, cedendo a ele a prerrogativa de 'tirar as conclusões da conclusão'.


 


Ao criticar convenções sociais e literárias a um só tempo, Flaubert e Baudelaire fundam um novo pacto entre a literatura e seu público. Não mais o pacto encarnado por Madame Bovary, que se perdia nos romances para compensar a banalidade da vida, mas aquele do 'leitor hipócrita', cúmplice das incertezas de seu próprio criador. Daí em diante, a leitura se torna um procedimento complexo e interminável, mobilizando forças inconscientes, no empenho de investigar as entrelinhas, os não ditos, os silêncios do texto. Nasciam, há 150 anos, as duas primeiras obras-primas do modernismo.