Na Guatemala, as mulheres são as principais vítimas da violência
Doña Paula não consegue mais conter as lágrimas. “Nos últimos oito dias, estou vivendo no inferno. Eu não consigo mais dormir”, suspira, na casa refúgio onde ela está escondida. Apenas os responsáveis da Mulheres Sobreviventes da Guatemala, uma associa
Publicado 07/09/2007 19:46
A maior das adolescentes foi ameaçada de morte por uma “mara”, uma gangue de jovens violentos. Ela foi testemunha do assassinato do seu irmão e do seu namorado. A mais nova não possui nenhum documento de identidade. “Este provavelmente foi furtado quando ela era criança”, acredita Silvia, que administra o refúgio. O único espaço ao ar livre, o terraço, é dissimulado dos olhares por uma paliçada de chapa de ferro sobre a qual fica uma cerca de arame farpado eletrificada, que é acionada ao anoitecer.
Na pequena sala de estar mobiliada com mesas cobertas por toalhas de linóleo, Paula Berganza, que já é quatro vezes avó aos 43 anos, conta o seu pesadelo com uma voz monocórdia. É uma história que resume o clima de terror que paira sobre a Guatemala, onde a violência gerada pela aproximação das eleições gerais de 9 de setembro atingiu as regiões rurais. Segundo os números oficiais, 565 mulheres foram assassinadas em 2006, em muitos casos após terem sido estupradas e torturadas. “Os nossos números são mais elevados. Desde o início do ano, nós já tivemos 322 assassinatos de mulheres”, precisa Norma Cruz, a diretora da Mulheres Sobreviventes da Guatemala. “80% dos casos podem ser atribuídos ao crime organizado, e principalmente aos conflitos entre maras”, acrescenta.
Uma antiga guerrilheira, Norma Cruz fundou a associação depois que a sua filha do primeiro casamento foi vítima, quando ainda era uma criança, de abusos sexuais por parte do seu companheiro, um ex-jesuíta e dirigente da guerrilha, que havia participado da comissão de aplicação dos acordos de paz assinados em 1996. Há algumas semanas, Norma vem recebendo ameaças de morte por ter denunciado uma rede de roubo de bebês destinados à adoção nos Estados Unidos.
Paula não desgruda os olhos do seu telefone celular. Nesta última semana, ela acrescentou “los malos” (os malvados) na sua lista de contatos. Tudo começou com uma chamada anônima, em que uma pessoa exigiu o pagamento de 50.000 quetzales (cerca de R$ 12.780). “Isso não é uma brincadeira. Caso você não pagar esta quantia, nós começaremos matando o seu filho Davicito, depois a sua filha, e então o seu marido”, ameaçou o anônimo. “Anteontem, eles me contataram 17 vezes”, comenta Paula, que acrescenta: “De nada adiantou explicar que eu não tenho dinheiro, que a única coisa que eu posso dar é a minha vida”.
Nos últimos 25 anos, Paula residia com a sua família em Ciudad Quetzal, um subúrbio pobre situado a 25 km do centro da capital. “Eu estudei o catecismo, e então não demorei a me orientar rumo às atividades de assistência social”, prossegue. Ela organizou uma cooperativa, a El Esfuerzo, que mobiliza os voluntários do bairro para realizar pequenos projetos, como a instalação de uma canalização de água.
“Os vizinhos se cotizaram para comprar os canos e uma bomba. Mas este material foi furtado. Então, foi preciso comprar outra bomba, que foi enterrada num lugar cuja localização é conhecida por duas pessoas apenas”, acrescenta Paula, que contou com o apoio da UNIS, uma ONG espanhola. No final de julho, Paula hospedou vários membros desta ONG em sua casa. “Segundo um vizinho, esta foi a causa da minha desgraça. Os “malos” pensam que os espanhóis vieram para me dar dinheiro”. O trabalho comunitário de Paula lhe valeu alguns inimigos e provocou a inveja de muitos. Entre estes está o proprietário do caminhão que vendia a água a um preço proibitivo, ou ainda o prefeito, invejoso das suas realizações. Mas Paula está convencida de que o chefe dos “malos” é um jovem do bairro que está preso por assassinatos. “Eu já trabalhei com ele, e por isso reconheci a sua voz. A polícia confirmou que as ligações vinham de um celular, e que elas foram feitas a partir da prisão”, diz, com tristeza.
Depois da primeira chamada, ela refugiou-se com a sua família dentro de uma creche construída pela cooperativa para as mulheres que trabalham nas “maquilas”, as usinas de assemblage. Mas, logo no dia seguinte, os “malos” informaram a Paula de que eles sabiam onde ela se encontrava. “Então, eu tomei a decisão de buscar refúgio junto à Mulheres Sobreviventes da Guatemala, da qual uma amiga me havia falado. O meu marido, meus filhos e netos amontoaram os móveis numa caminhonete e todos foram embora. Eles estão longe agora. No dia seguinte, tiros foram disparados contra a nossa casa e um depósito da cooperativa foi saqueado”.
Todo dia, centenas de guatemaltecos, vítimas de extorsão e ameaçados de morte, são obrigados a fugir, tendo que abandonar a sua casa e o seu emprego. Trata-se de um êxodo equivalente àquele do tempo da guerra civil, que provocou a morte de 200.000 pessoas entre 1960 e 1996. “Nós não temos os números, porque as pessoas têm medo de falar. A presença de maras, de assassinos profissionais e de policiais corruptos instaurou uma espécie de estado de sítio em inúmeros bairros”, confirma Anders Kompass, um representante do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os direitos humanos.
“No meu bairro, o padeiro e a vendedora de tortillas foram embora. Os 'malos' seqüestraram a filha do atacadista de legumes e exigiram um resgate de 250.000 quetzales (cerca de R$ 64.000). As Igrejas evangélicas vêm sendo alvejadas. Todo mundo quer fugir”, conta Paula. Existem seis policiais apenas para 90.000 habitantes. “O 'malo' me disse que não era preciso alertar a polícia, porque ela está com eles. Com todo o sofrimento do meu coração, eu acho que não poderei retornar à minha casa nem à minha Igreja, que eu vou ser forçada a abandonar os projetos aos quais eu dediquei a minha vida inteira. Então, chego à conclusão de que se eles mataram Deus porque ele queria instaurar a justiça, então eles vão me matar também”, acrescenta Paula.
Fonte: Le Monde
Tradução: Jean-Yves de Neufville