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Filme americano sobre Jimmy Carter faz oposição a Bush

“Imagine o que é crescer em um país supostamente democrático, no qual o presidente chegou à Casa Branca com menos votos de que o seu opositor mais forte, e perceber o que ele fez e faz com o poder que ele tem? É uma completa traição aos ideais americanos

É quase um clichê dizer que os filmes realizados pelo diretor americano Jonathan Demme, mesmo os de ficção, são uma mistura de arte e realidade. No documentário Jimmy Carter: Man from Plains, sobre o ex-presidente americano que ganhou o Novel da Paz por suas atividades humanitárias, não é diferente.


 


Encomendado ao diretor de O Silêncio dos Inocentes (1991) pela Participant Productions, que fomenta longas-metragens de fundo político e social, o filme acompanha Carter durante a excursão de lançamento de seu mais recente livro, o polêmico Palestina: Paz e não Apartheid (Simon & Schuster, 288 páginas, US$ 27), que rendeu novos inimigos ao ex-estadista americano.


 


Mais do que contextualizar o debate sobre a posição de Carter acerca do confronto entre a Palestina e Israel, o filme serve para explorar uma visão de mundo diretamente oposta a de George W. Bush. “Vivemos em um país governado por um homem obcecado por guerras. Carter é um homem obcecado pela paz”, diz Demme.


 


Leia abaixo os principais trechos da entrevista.


 


Suas impressões sobre Jimmy Carter mudaram depois do filme?


 


Jonathan Demme: Jimmy Carter sempre me despertou bons sentimentos. Gostava dele como presidente e, desde então, quando eu o via fazendo um discurso, sentia que compartilhávamos da mesma visão de mundo. Fazer um filme sobre ele só confirmou a imagem positiva que eu tinha dele. Foi extraordinário estar perto de alguém como Carter, uma pessoa que, por causa de sua posição como ex-presidente, ainda tem uma certa bagagem de poder, que ele usa em cada momento do dia em favor da humanidade. Trata-se de um grande e incansável humanitário, que doa muito de seu tempo para ajudar a melhorar as condições de vida das pessoas no país e no mundo inteiro.


 


Qual a relevância dos valores agregados por Carter para os EUA de hoje?


 


Demme: Nós, americanos, vivemos hoje em um país que tem como presidente um homem obcecado por guerras e em formas de destruir os inimigos. Desde que se tornou presidente, nos anos 70, Jimmy Carter tem deixado claro que é um homem obcecado pela paz. Quando tive a chance de fazer um filme-retrato sobre ele, minha intenção foi tentar entender o que faz esse sujeito funcionar dessa forma. Tentei encontrar respostas para essa questão durante o processo de feitura do filme. É interessante, pelo menos para mim, um homem que cresceu em um país segregado, descobrir que Carter teve um extraordinário relacionamento com uma negra, Rachel Clark, a mulher do caseiro da fazenda dos pais do ex-presidente, que praticamente ajudou a criá-lo. Podemos dizer que a idéia de qualquer tipo de superioridade racial foi destruída para ele em tenra idade. Carter cresceu pensando que todas as pessoas são iguais e deveriam ser tratadas como tal. Como ele diz no filme, Rachel Clark incutiu-lhe valores humanitários que o acompanham até hoje. Você tem esse jovem não-racista crescendo em uma sociedade racista e segregadora. Além disso, a família de Jimmy Carter é toda de fazendeiros. Por isso, ele cresceu nutrindo um amor muito grande pela terra, sabe o valor que ela tem para quem trabalha nela. Também fica claro que foi criado como um cristão devoto, que interpreta o cristianismo como um religião de paz, amor, perdão e reconciliação. Torna-se evidente, portanto, entender o interesse de Carter pelo Oriente Médio.


 


Por que a cobertura da mídia americana sobre a questão palestina parece ser tão unilateral, pró-Israel?


 


Demme: Nos Estados Unidos, existe um medo descomunal de ser acusado de anti-semitismo. Quando alguém se manifesta de maneira crítica sobre algum aspecto da responsabilidade israelense na situação no Oriente Médio, causa uma comoção muito profunda entre os americanos porque, para eles, o anti-semitismo é mais grave do que qualquer outro tipo de ódio de fundo racial ou religioso. É uma coisa muito, mas muito terrível. Na época do escândalo do Watergate, o mal uso do poder pelo então presidente [Richard] Nixon por alguma razão capturou a imaginação de certos elementos da nossa imprensa, que caçou aquela história, ajudando no impeachement dele. Foi um grande dia para a imprensa livre e para a democracia. Não acho que a imprensa hoje esteja funcionando daquele jeito. Perecebe-se que aqueles que detêm o controle da mídia estão mais inclinados a entreter seus leitores do que iluminá-los. É sabido que hoje em dia a gente lê muito mais notícias sobre os problemas das celebridades do que sobre a situação na Palestina. A grande ameaça ao mundo é o fracasso de uma solução para a crise no Oriente Médio, mas a mídia está mais interessada em fazer negócio, no lucro.


 


O longa-metragem deixa entrever um pouco da vida particular de Jimmy Carter. O senhor deixou muito material de fora nesse aspecto na edição final?


 


Demme: Estou muito contente com o nível de acesso que o filme teve ao cotidiano de Jimmy Carter. Acho que o documentário mostra bastante sobre Jimmy como pessoa. Até queria que houvesse mais sobre a vida pessoa dele no filme – e no DVD haverá mais, com certeza -, mas as filmagens aconteceram durante o período de turnê de lançamento do livro dele. Ainda assim é possível vê-lo em casa, com a mulher, e seu intenso trabalho no Centro Carter [sua fundação]. O fato é que, durante as filmagens, ele não estava tendo muito tempo para os assuntos pessoais. Ele estava viajando constantemente naquela época. Quando terminamos de acompanhá-lo, ele foi para o Sudão. Acho que o filme nos deixa ver que a vida particular dele é, na verdade, sua dedicação ao trabalho.


 


Carter teve poder de decisão sobre o que poderia ser mostrado ou não no documentário?


 


Demme: Desde o início, deixamos claro que estávamos ali como admiradores, mas era imperativo que Carter nos desse acesso completo ao cotidiano dele. Em suma, ele não poderia escolher quando deveríamos filmá-lo ou não. Carter teve que concordar em nos deixar filmar tudo o que acontecesse durante aquele período, seja no trabalho ou em casa. Ele, inclusive, teve que abdicar dos direitos de aprovação sobre o conteúdo da versão final do filme. Se Carter tivesse feito qualquer restrição à nossa proposta, eu não teria ficado no projeto e acredito que a produtora Participant, que o concebeu e me ofereceu o trabalho, também teria desistido. Fiquei muito empolgado quando Carter aceitou todas as nossas condições e nos permitiu entrar na vida dele daquele jeito. Mostra que ele pôs fé na gente.


 


Por que a opção de não confrontá-lo diretamente?


 


Demme: Preferimos não intervir, apenas acompanhá-lo onde ele estivesse. Foi uma opção pelo retrato, capturar o máximo possível do retratado. Tentamos, na medida do possível, ficar invisíveis e, basicamente, registrar o que acontecia em torno dele. Vez por outra, a gente pedia para ele fazer alguma coisa, do tipo, um mapa da Palestina e explicar para nós, da equipe, a situação da região, já que seria um assunto constante na excursão do livro.


 


É verdade que o senhor promoveu sessões-teste do documentário para platéia de jovens? Como eles reagiram?


 


Demme: Sim, fizemos algumas sessões privadas durante o período que buscávamos um corte final. Foi animador ver alguns jovens ficarem espantados com as coisas que um ex-presidente acreditava e pensava. Era uma reação compreensível, porque eles cresceram na era Bush. Imagine o que é crescer em um país supostamente democrático, no qual o presidente chegou à Casa Branca com menos votos de que o seu opositor mais forte, e perceber o que ele fez e faz com o poder que ele tem? É uma completa traição aos ideais americanos de justiça, paz e desenvolvimento humano.