Sandra Helena de Souza – Fazendo a ronda

Autorizar abuso de autoridade contra “bandidos” pobres das favelas é autorizar abuso de autoridade contra qualquer um.

Não obstante todos os impasses e enormes desafios, passei a crer no conceito do programa Ronda do Quarteirão, na vontade política do governo, encarnada, sobretudo no Secretário de Segurança Pública e Defesa Social, Roberto Monteiro, de imprimir uma nova política de segurança pública para nosso Estado. Além da eficácia esperada, que se poderá depois facilmente medir em estatísticas, para mim trata-se, com talvez maior importância, de uma disputa simbólica entre o arbítrio e a lei, entre a barbárie e a civilidade. Noutras palavras, trata-se de conquistar a adesão de vastos setores da população, em todas as classes, à compreensão de que o Estado não pode ser ele também um infrator, igualando-se aos delinqüentes no crime.


 


Pois bem, podemos estar perdendo essa batalha. Dois rapazes, ambos da favela do Gengibre, no Papicu, assaltaram com extrema violência um casal que entrava de carro em seu prédio. A vítima que dirigia o carro os atropelou logo depois e eles tombaram num lugar nobre do bairro, a mercê, portanto, da compreensível fúria da população. Logo chegou uma viatura do Ronda. Para meu espanto, os policiais não apenas espancaram os infratores, já capturados e feridos, como permitiram que populares também o fizessem. Tudo isso em plena luz do meio-dia e sob os aplausos daqueles de minha classe social, os “cidadãos”, que diante de minha indignação disseram que “tem mais é que bater mesmo”. Dirigi-me a um dos policiais e perguntei se aquela era a nova polícia, se aquela prática era legal. Não me respondeu.


 


Ok, eu também já fui assaltada, com revólver, com faca, tive o carro atingido por pedras que estilhaçaram os vidros sobre mim, ao volante. Tive familiares vítimas de violência urbana, e em todas as ocasiões, tive ódio, ganas de matar, um sentimento terrível de humilhação e impotência. Tenho sangue quente correndo nas veias: sou um animal como todos os outros. Compreendo que, por vezes, exposta à violência sem fim, a população queira fazer a tal da “justiça” pelas próprias mãos. Mas não concebo de modo algum que o Estado aja da mesma forma. Quando jovens policiais do novo programa, com formação diferenciada, agem dessa maneira, todos perdemos. Autorizar abuso de autoridade contra “bandidos” pobres das favelas é autorizar abuso de autoridade contra qualquer um. Isso é contra a lei, não tem nenhuma eficácia e depois, como os fatos confirmam, não tem freios. A menos que autorizemos o mesmo tratamento aos infratores, criminosos e suspeitos das classes A e B, isso não pode ser permitido.


 


Embrutecimento a galope. Ao invés de contaminar a polícia convencional é o Ronda que se contamina e infecciona. O velho sufoca o novo. Mas continuo acreditando. Assim como a corajosa mãe que denunciou a violência contra seu filho, protocolei essa denúncia na Corregedoria e aguardo. Direitos civis, não são meus ou seus: são direitos. Ponto.


 


 


Sandra Helena de Souza – Professora de Filosofia e Ética da Unifor