O príncipe de Liechtenstein e a crise financeira mundial
Hans-Adam II von Liechtenstein, soberano do diminuto principado de Liechtenstein, e os serviços secretos da vizinha Alemanha estão envolvidos num bate-boca multibilionário (de euros). No pano de fundo, o papel dos paraísos fiscais na crise financeira em c
Publicado 27/02/2008 19:45
O príncipe Hans-Adam II von Liechtenstein é o último monarca europeu que não só reina mas também governa. Além de soberano e autoridade executiva do país cujo nome lhe serve de sobrenome, tem poder de veto sobre as decisões parlamentares. Apesar dessa concentração de poderes tão pouco democrática, o príncipe, que divide o poder com o Partido dos Cidadãos Progressistas, admitiu em 1984 que as mulheres votem nas eleições nacionais, embora não nas locais (são 11 as comunas do país). Partilha o dia-a-dia da condução política com seu herdeiro, Alois von Liechtenstein.
A cúpula germano-liechtensteinense
Como o principado, encravado nas montanhas entre a Suíça e a Áustria, carece de aeroporto e tem apenas 30 mil habitantes, as peripécias de sua política não aparecem amiúde na imprensa internacional. No entanto, a visita do seu primeiro ministro, Otmar Hasler, à chanceler alemã Angela Merkel, dia 20 em Berlim, está chamada a constituir um capítulo na história da globalização financeira.
A cúpula germano-liechtensteinense foi precedida por duras acusações do príncipe Alois contra o governo Angela Merkel, responsabilizado por ataques à soberania do país alpino, e a polícia alemã, que estaria violando os direitos de seus súditos e agindo fora da lei. Por sua vez, o líder social-democrata e sócio na coalizão governista alemã, Kurt Beck, qualificou a família real alpina de “assaltantes com título de nobreza”.
Vanuz, 5 mil habitantes, mil bancários
Ocorre que Liechtenstein não alcançou uma das maiores rendas per capita do mundo (US$ 100 mil anuais, cinco vezes maior que a dos Estados Unidos) graças à exportação de dentes postiços e selos postais, principais bens materiais que produz, mas devido aos serviços bancários. Embora a capital, Vaduz, tenha 5 mil habitantes, seu maior banco, o Liechtenstein Global Trust (LGT), que por coincidência pertence à família real, tem mais de mil empregados. E os 15 maiores bancos locais administravam em fins de 2006 ativos de clientes da ordem de mais de US$ 150 bilhões.
São muitos bancos para tão pouca gente. Faz tempo que se suspeita que por trás dessas firmas bancárias – das quais a maioria não tem um edifício-sede e sequer um escritório, pois nem caberiam em tão diminuto território – oculta operações de lavagem de dinheiro e evasão de impostos.
Mas nada se pôde provar até agora. A lei do principado protege o sigilo das contas; sua divulgação é punida como um dos mais graves delitos pela legislação local.
O caso do DVD de 5 milhões
A “conexão Vaduz” entrou em evidência no último dia 13, quando os serviços secretos alemães detiveram Klaus Zumwinkel, diretor do Deutsche Post (correios, logística), acusado de usar o sigilo bancário de Liechtenstein para sonegar impostos. Numa impressionante ação coordenada em Frankfurt, Hamburgo, Munique, Stuttgart e outras cidades, oito fiscais, dezenas de inspetores da fazenda e centenas de policiais deram buscas nos escritórios de centenas (talvez mais de mil) milionários alemães que tinham burlado o governo em mais de 4 bilhões de euros de impostos, enviando seus lucros para misteriosas “fundações” em Vaduz.
A polícia alemã disse ter comprado um DVD com os dados das contas secretas de um informante, não identificado, por 5 milhões de euros. Um bom investimento, caso se comprove as somas evadidas.
As ações dos bancos de Liechtenstein começaram a cair na Bolsa de Zurique. E o príncipe Alois, assessorado por estudos legais alemães, começou a falar de “ataques” germânicos contra a soberania de seu país – em termos cuidadosamente escolhidos para evocar mais a imagem de divisões panzer que a de pesquisas em computadores.
O primeiro ministro Hazler disse que a polícia alemã estaria “ajudando e estimulando atividades criminosas, já que o roubo de dados é certamente um crime, e usando grandes somas de fundos públicos para comprar bens roubados, de um ladrão”. O “bem roubado” seria o disco com dados das contas secretas e os investigadores alemães até o momento se limitaram a lembrar, sorrindo, que “ladrão que rouba ladrão”…
Opção: “baixar as calças ou cadeia”
A mídia especula inclusive se o DVD realmente existe ou é apenas um pretexto para o BND (o órgão federal alemão de inteligência) não dar detalhes sobre anos de investigação de seus agentes secretos. Segundo o líder social-democrata no Parlamento, Dieter Wiefelsuetz, “o que Liechtenstein diz é que colhemos o fruto proibido, e isso é ilegal. É uma acusação irrelevante. O que a Alemanha fará é confrontar cada suspeito de evasão com a alternativa, entre baixar as calças e cooperar ou ir para a cadeia”.
Zumwinkel já confessou ter evadido 1 milhão de euros de impostos. Outras buscas e prisões são esperadas para os próximos dias.
A cadeia informativa Bloomberg sustenta que o ministro alemão das Finanças, Peer Steinbrueck, teria pronto um pacote de medidas para impedir que Liechtenstein continue a ser usado como “paraíso fiscal” para evasão de impostos. Agrega que o plano teria sido entregue a Hazler em Berlim, durante a cúpula do dia 20.
Elo-chave da globalização financeira
É aqui que a cúpula entre o maior e o menor dos países germanófonos deixa de ser uma história de ópera bufa, ou um enredo policial com milionários e discos roubados, para se transformar num elo-chave da globalização financeira. Liechtenstein aceitará as novas regras do jogo? Devolverá o dinheiro roubado do fisco alemão por seus clientes? Se o fizer, estará criando um precedente da maior importância, num ano em que a crise dos mercados financeiros reavivou a discussão sobre como regular os fluxos transfronteiriços do capital.
Não se trata apenas de que Berlim mande para a cadeia alguns milionários infratores (e, diga-se de passagem, a medida ajude Angela Merkel a vencer as próximas eleições municipais), pois caso Liechtenstein deixe de ser o paraíso predileto dos alemães, nada impede que eles evadam impostos dia Jersey, ou Ilhas Cayman. Ocorre que o escândalo de Vaduz fez com que as tramóias dos bancos offshore saltassem das discussões de especialistas para as primeiras páginas da grande imprensa, mostrando como a liberalização financeira é a grande ferramenta criminal dos poderosos para abrigar suas fortunas enquanto os contribuintes pedestres pagam impostos.
Poderia ser o começo do fim de um modelo de globalização. O príncipe Hans-Adam (Adão, em alemão) devia recordar o personagem que o seu nome homenageia: nada continua como antes depois que se come o fruto proibido.
* Jornalista uruguaio, diretor executivo da Rede do Terceiro Mundo e coordenador do Social Watch; fonte: http://www.rebelion.org; intertítulos do Vermelho