Fidel: o sonho e o saldo

Quando o mundo inteiro fica perplexo com a renúncia de Fidel, lembro da Ilha que conheço: um povo digno, culto, sem crianças nas ruas e sem trabalho infantil.


 


Por Homero Mafra*

Mas eu devo estar enganado. Não é isso que leio, a propaganda que vejo: agora que Fidel renunciou, Cuba vai ter seus problemas de prostituição resolvidos (mas é Cuba o paraíso do turismo sexual?); Cuba vai se tornar uma economia de mercado (oba, o povo cubano agora vai ter a mesma riqueza do Haiti, o mesmo nível de saúde e escolaridade da maioria dos povos latino americanos); agora que Fidel renunciou, Cuba não vai ter mais presos de consciência e nem pena de morte (será que agora vão libertar os presos de Guantánamo, cujo número e nome ninguém sabe – e os EUA vão renunciar a aplicar a pena de morte)?


 


Agora que Fidel renunciou, Cuba vai se abrir para o mundo. E eu, ignorante que sou, que pensava que Cuba é que sofria um bloqueio criminoso?


 


Confesso que é difícil ler o que leio sem descambar para a ironia. Sei,  como Eduardo Galeano, que Cuba não é nem o paraíso que seus amigos pintam, nem o inferno que seus inimigos descrevem. Mas é inegável que poucas nações no mundo podem ostentar os índices sociais cubanos: escolaridade, mortalidade infantil, expectativa de vida.


 


Sonhou um sonho impossível e fez dele realidade: traçou seu próprio destino numa América Latina em que era impossível descobrir novas rotas; venceu o inimigo invencível, enfrentando toda a série de atentados contra a sua economia e seus bens (a Cuba não se pode imputar um ato de terrorismo; no entanto, os que explodiram um avião da Cubana de Aviação e outros tantos que lançaram bombas contra hotéis e instalações turísticas, como Posada Carriles, permanecem livres, sem pagarem pelos crimes contra a humanidade que praticaram); quando era mais fácil ceder, quando a queda do bloco socialista jogou a economia cubana no chão, soube resistir e vencer e recomeçar. Richard Gott, em “Cuba, uma nova história”, reconhece: “ Ao longo de um período de 40 anos, a Revolução de Castro pôs Cuba no mapa e registrou a ilha como uma presença permanente no cenário mundial. Engendrou no povo cubano um sentimento intangível, mas real, de orgulho pela sua nação. Foi uma revolução que não acabou em lutas fratricidas, mas produziu sem cessar novas gerações de cidadãos bem-educados, motivados pela afeição ao governo e ao governante, e que possuem um sentido agudo de patriotismo, orgulhosos de longa história do seu país e das realizações do seu povo.”


 


Não sonhei a revolução cubana – quando ela triunfou, não tinha idade para isso. Sonhei a revolução dos cravos – e dela guardo na memória um pôster que acabei não recebendo (as mãos das três armas segurando um fuzil de onde brotava um cravo), presente que vou guardar sempre comigo na minha memória afetiva – e o sonho do Chile de Allende, massacrado por um terrível golpe militar.


 


Mas tive a honra e o privilégio de conhecer a Ilha. Não a Ilha de Fidel, mas a Ilha de Cuba, com seu povo maravilhoso, simples, digno, solidário, fraterno e igual. A Ilha de Cuba, pobre, altiva, soberana, que resiste quando tudo dizia que iria perecer.


 


Acho engraçado que aqueles mesmos que criticam o governo cubano, criticam a pobreza do povo e a falta de liberdade não enxergam o que se passa embaixo de seus narizes.


 


É obvio que Cuba precisa de mudanças. Mas essas mudanças não são, e não podem ser, aquelas que conduzirão seu povo ao estado de miséria absoluta de tantos e tantos países latino-americanos.


 


“Um mondo melhor é possível”, diz Fidel Castro, esse mito da humanidade, “ditador” amado por seu povo (estranho ditador esse que seu povo venera). Como será a transição? Não será, já foi. Como escreveu Richard Gott em 2004: “Enquanto pouca gente via, a mudança já ocorreu”.


 



 


Fidel se retira, para continuar na batalha das idéias. Agora, com Raúl, a vida segue, e seguirá seu curso, incomodando os que não admitem que possa haver um povo digno e honrado na América Latina, traçando e cumprindo seu próprio caminho.


 


Por isso, para mim mais que qualquer definição elaborada, os versos “Sonhar mais um sonho impossível / lutar quando é fácil ceder / vencer o inimigo invencível …” simbolizam o que é , o que foi e o que vai ser sempre Fidel Castro.


 


*Homero Junger Mafra é advogado criminal no ES e mantém na internet o sítio www.guiadehavana.com


 


 




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