“Chegamos ao governo mas ainda não temos o poder”, diz Evo
O presidente da Bolívia, Evo Morales, declarou, em entrevista à Amauta, que ainda está em construção o processo de mudanças que dará, de fato, o poder na Bolívia ao povo. “É preciso sempre lembrar que o poder não é do governo do MAS nem de Evo Morales”, a
Publicado 10/03/2008 15:01
Em plena efervescência política, o coletivo Amauta, da Argentina, foi convidado para ir à Bolívia e inaugurar várias cátedras Che Guevara e Escolas de Formação Política. Duas delas foram organizadas por militantes do MAS (incluindo desde deputados e equipes de governo até militantes de base) e a outra pela organização Pátria Insurgente. No decorrer desse processo, Néstor Kohan e Itai Hagman realizaram a referida entrevista com Evo. Veja abaixo seus principais trechos:
Na luta atual dos povos do mundo, incluído o povo boliviano, a luta contra o imperialismo e a defesa dos recursos naturais é fundamental. Qual é a relação do atual governo de Bolívia com as empresas petroleiras multinacionais?
O que nós dissemos durante a campanha eleitoral: sobre nossos recursos naturais queremos sócios… não patrões! No primeiro ano, quando nacionalizamos durante 2006, houve muita susceptibilidade. Em 2007 consolidamos os novos contratos e agora passamos ao tema do investimento. Há relações que nem sempre são confiáveis com algumas empresas.
Existe alguma perspectiva de nacionalizá-las?
A nacionalização consiste em que o Estado assuma o controle efetivo de seus recursos de gás e hidrocarburos. Houve recordes de investimento. Em 1998 foram 600 milhões de dólares de investimento, no marco da privatização, mal chamada de “capitalização”. Agora, em compensação, entre o Estado e as empresas temos 2,3 bilhões de dólares de investimento para o setor de hidrocarburos.
Há alguma possibilidade de nacionalizar as empresas privadas na área dos hidrocarburos?
Uma coisa é que os hidrocarburos e o gás passem a ser propriedade dos bolivianos e outra coisa é o investimento privado, por exemplo em oleodutos. Se existe investimento, respeitamos esse investimento. Qualquer investidor tem todo o direito de investir, de recuperar seu investimento e tem direito aos lucros. Nisso somos respeitosos, mas no tema do gás e no tema do petróleo, o povo boliviano tem a maior propriedade. Isso é o que nós nacionalizamos. O que nós mudamos é que antes 18% ficava para o povo boliviano e 82% era levado pelas grandes empresas. Nós invertemos essa relação. Agora o povo boliviano fica com 82% e às empresas corresponde 18%. Quanto a este tema, no ano 2005 quanto entrava para o tesouro do Estado? Pois 300 milhões de dólares por hidrocarburos. No ano passado chegamos a 1,9 bilhões de dólares. Com o que o Brasil nos deve, no ano passado recebemos 2,3 bilhões de dólares pelos hidrocarburos. Essa é a nacionalização! Desses recursos e dessa renda nacionalizada destinamos uma parte importante para um bônus popular, o bônus Juancito Pinto, destinado à infância. Isso significou uma revolução social.
Quais são os principais problemas que enfrenta o governo?
Um dos nossos problemas está na fiscalização. Aí eu tenho um problema. No marco da austeridade eu diminuí meu salário de 40.000 bolivianos para 15.000 bolivianos. Há alguns “especialistas” no tema de hidrocarburos que não estão dispostos a ganhar menos que o presidente. Como ganham mais de 50.000 bolivianos vão trabalhar nas multinacionais. Eu sinto que nossas universidades públicas não formam patriotas. Formam profissionais pelo dinheiro e não pela pátria. Por essas razões temos nossa fraqueza. Estamos debatendo. Precisamos definir políticas, projetos e programas para a industrialização. O próximo ano deve ser o ano da industrialização. Já estamos assentando algumas bases nesse sentido. Estamos procurando sócios, como Estado, basicamente entre outras empresas do Estado.
O que acontece com o problema da terra, com os processos de reforma e revolução agrária?
Bom, há uma profunda diferença entre a reforma agrária e a revolução agrária. A reforma agrária de 1952 e 1953 foi feita com um levantamento permanente indígena, com fuzil no ombro, que obrigou os partidos e governos de plantão a realizarem uma reforma agrária. Mas essa reforma agrária de 1952 deixou minifúndios, o que nós chamamos de “surcofúndios” e latifúndios (principalmente no oriente boliviano)… Nós, agora, dentro de uma revolução agrária, nos propusemos a redistribuição da terra. Em dois anos chegamos a redistribuir mais de 10 milhões de hectares, a nível titular. Enquanto que os governos anteriores, ao longo de 10 anos chegaram a sanear 10 milhões. Nós fizemos em dois anos. Para eles cada hectare saneado custou dez dólares, para nós custou um dólar por hectare. Uma diferença tremenda!
A revolução agrária tem quatro componentes: a redistribuição, acabar com o latifúndio (improdutivo, especialmente), depois a mecanização (entregamos mais de mil tratores), os créditos e a aposta por produtos ecológicos. Também está o tema do comércio. Diante dos tratados de Livre Comércio (TLC), temos tentado promover um tratado de comércio justo entre os povos (TCP), que está nos custando um pouco implementar.
Que relação guarda esse tipo de tratado com a ALBA?
Fazem parte: a ALBA contra a ALCA, e o TCP contra o TLC. A ALBA e o TCP são duas juntas que trabalham na mesma direção.
Atualmente a Bolívia vive a reação das regiões conhecidas como a meia-lua, aquelas regiões autonômicas e separatistas governadas pela direita que não aceitam se subordinar ao governo central. Se estas regiões se sublevam e decidem declarar sua autonomia e independência, rompendo a unidade nacional do estado boliviano, ao estilo do Kosovo e sob influencia norte-americana, o governo central, o governo do MAS, tem força suficiente para se impor a essa desestabilização promovida pela direita?
É preciso lembrar que o poder é do povo, não do governo do MAS nem de Evo Morales. Chegamos ao governo mas ainda não temos o poder. Estamos em um processo em que é preciso pensar como construir o poder do povo… eu acredito nas forças sociais.
E essas forças sociais, como poderiam operar diante de um possível levantamento insurrecional da direita?
Vocês teria que perguntar para elas como iriam operar…
Que função cumpririam as Forças Armadas nesse conflito?
Até agora estão muito identificados. Eu fiquei impressionado, apesar de que todos os altos mandos militares são meus maiores, mais velhos do que eu… Na cultura andina, na cultura indígena, um menor não pode dirigir uma pessoa mais velha. Eu dou sugestões, não tenho esse caráter de dar instruções. Apesar de que como capitão general das Forças Armadas da nação eu poderia dar instruções. Por que eles respeitam? Eu fiz meu serviço militar obrigatório. Quase todos os presidentes nunca foram aos quartéis, não fizeram o serviço militar. Como presidentes eles mandavam e instruíam, utilizavam politicamente, não respeitavam a institucionalidade. Eu, Evo, como ex-soldado, respeito e me faço respeitar. Os militares respeitam, então, a institucionalidade.
Não há perigo de golpe de Estado?
Bom, quem é que pode garantir isso? Mas até agora não tenho nada do que me queixar das Forças Armadas, uma vez que respeitam a institucionalidade. Mas o importante que é preciso destacar é que o nosso governo respeita e defende as autonomias, mas se opõe ao separatismo, bandeira das direitas oligárquicas e racistas. Essas direitas, principalmente as de Santa Cruz de la Sierra, onde não todo o povo, mas pequenos grupos, me chamam de “mono”, “índio”, “macaco”… Quando as direitas separatistas me pediam um referendo revogatório eu respondi: “por que não nos submetemos todos a um referendo revogatório?” Eles ficaram assustados e não quiseram. O pessoal de Santa Cruz promovia de maneira ilegal um estatuto autonômico. Depois que perderam a “mamadeira” a nível nacional, agora querem continuar mamando a nível departamental para não perder a mamadeira por completo. Isso a nível econômico. A nível político o problema para eles é Evo Morales.
Não aceitam que um índio governe a Bolívia. Há uma questão de cobiça, de inveja, de poder. Eles, a direita, utilizam o problema da autonomia e da capitalidade para manter suas parcelas de poder. Por isso, com todo o povo mobilizado, temos promovido que o Congresso aprove uma convocatória para um referendo, para que todo o povo se expresse sobre a nova constituição política do Estado boliviano. Esta constituição garante a autonomia mas rejeita o separatismo. O estatuto autonômico tem conseqüências como a seguinte: se um argentino chega em Santa Cruz e quer adquirir direitos políticos, tem que fazer isso como cruceño, não como boliviano. A mesma coisa no tema das terras, que segundo esses estatutos seriam de propriedade departamental e não de todos os bolivianos e bolivianas.
Então, a nova constituição garante autonomia e igualdade entre todos os departamentos, mas no marco da unidade nacional. Será garantida a autonomia: autonomia como comunidade, mas sem independência, separação nem desmembramento da Bolívia. A exigência separatista não pertence a toda Santa Cruz, mas a uma minoria. E a dinâmica das maiorias e das minorias é importada. Nas comunidades se funciona de outra maneira, ali é por consenso, não por maioria e minoria.
Os Estados Unidos estão desempenhando um papel muito ativo nesta demanda de autonomia separatista. Como você vê esse papel do imperialismo norte-americano na Bolívia?
A responsabilidade dos diplomatas é fazer diplomacia, comércio, etc., não fazer política. Mas o embaixador dos Estados Unidos na Bolívia faz política. Inclusive, o embaixador dos EUA está em Santa Cruz, não em La Paz. Suas operações são muito suspeitas, mas pouco a pouco estamos cortando suas asas. Tivemos muitos problemas com a embaixada dos EUA e com USAID. Esta instituição norte-americana convoca as ONGs e oferece dinheiro com a condição de que elas façam oposição a Evo Morales. Alguns dirigentes campesinos recebiam 2.500 ou 3.000 dólares por mês… e quando nós falávamos com esses companheiros eles nos diziam “temos que aproveitar a grana dos gringos”. Para algumas organizações eles deram até 20.000 dólares com a condição de que não aprovem Evo Morales. As ONGs acabam entrando para ter esse dinheiro. Também há muitos outros problemas, como a espionagem. A CIA também está metida. Mas, em resumo, o embaixador dos EUA, com todas as suas equipes, encabeça a conspiração contra o governo de Evo Morales. Nós temos o direito de garantir o respeito mútuo entre ambos os países.
Os norte-americanos têm bases militares na Bolívia, não é verdade?
Em alguns aeroportos da Bolívia eles têm hangares fechados…
Há possibilidade deles irem embora?
Estamos vendo isso, é todo um processo, mas não é mais como antes. Antes, a DEA operava, controlava nas delegacias, comandava nas Forças Armadas e na polícia, mas isso acabou. Estão por aí, em alguns aeroportos se escondem, filmam ou tiram fotografias… acham que eu não percebo, mas eu percebo! Algumas vezes nós dizemos para o oficial boliviano que eles parem de tirar fotografias. Eles fogem, se ocultam. Vamos continuar revisando convênios. Mas é um processo. Não podemos acreditar que todos os funcionários no Estado boliviano hoje são revolucionários. Temos que fazer as coisas com tempo. O importante é que nós temos pleno direito de nos fazer respeitar diante da ingerência dos Estados Unidos.
Fonte: Agência Carta Maior