“País do futuro” vê os 50 anos da bossa nova
Entre a utopia de um país em que o futuro parecia um agora e um agora no qual resta uma quase total negação de qualquer projeto – e, portanto, de qualquer futuro, já se passaram 50 anos. Do ponto de vista histórico, é uma caminhada até a esquina, embor
Publicado 15/03/2008 13:26
Dito assim, sem mediação, pareceria tratar-se de qualquer país que tenha experimentado um processo de intensa modernização findo o qual o mergulho no presente escancare o fracasso daquele projeto – e nisso poderíamos incluir uma lista razoável de nações. Mas tratamos do Brasil especificamente, e aqui essas mesmas questões parecem ganhar um relevo bastante peculiar por conta de nosso processo de formação histórico-social, sem que isso seja necessariamente vantajoso – embora o seja, se tomarmos uma perspectiva dialética.
Por um breve momento, pareceu que o país finalmente sairia da letargia arcaizante a que Nelson Rodrigues chamara – ainda que no contexto futebolístico – de “complexo de vira-latas”. Ainda sob o rescaldo de dois desastres históricos, a derrota para o Uruguai na Copa de 1950 e o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, a retomada do projeto desenvolvimentista por Juscelino Kubitschek, que culminou na inauguração de Brasília, pôs o país no rumo da tão almejada modernidade (ou, ao menos, assim foi a leitura dos contemporâneos, que não tinham como prever as conseqüências das decisões então tomadas). Os fatos conferiam lastro à idéia de que finalmente o Brasil entrara nos eixos: as conquistas de duas Copas do Mundo de Futebol, a inauguração da fábrica da Volkswagen, o Concretismo, a Bossa Nova, tudo concorria para a imagem de progresso material, tecnológico e social – modernidade, enfim – de que dependíamos para a ilusão do ingresso no rol das chamadas grandes nações. Até que veio 1964 e, daquele ponto em diante, quase tudo (com exceção da Economia, e por pouco tempo) pareceu desandar irremediavelmente.
O quadro atual – e por “atual” entenda-se 2007 e este início de 2008 –, diferentemente daquele do final dos anos 1950, parece mais caótico, desarticulado – como se vivêssemos um tempo de indefinições (para quem é otimista) ou de barbárie (para que não o é). Mais do que isso, contudo, poderíamos dizer que a época é de acirramento de tensões acumuladas, o que se reflete no adensamento das disputas locais e regionais em quase todo o planeta, no recrudescimento dos fundamentalismos de todas as ordens (religiosas e políticas), na ausência de qualquer nuance no pensamento e nas análises a respeito do presente. A História não acabou, como previu erroneamente Fukuyama; ao contrário, expõe-se mais e mais como fraturas – de que não estamos, aqui no Brasil, livres. A condição de país periférico, nesse caso, nos coloca no olho do furacão, revelando os impasses de que somos vítimas e partícipes.
Esses comentários iniciais vêm a propósito da leitura de dois textos aparentemente desconectados (ou cuja conexão se dá apenas em função de um assunto geral, a música popular brasileira), mas que perfazem, no conjunto, um referencial interessante para se pensar na trajetória histórica do Brasil neste último meio século. O primeiro é de autoria de Lorenzo Mammi (“João Gilberto e o projeto utópico da Bossa Nova”, publicado na revista Novos Estudos Cebrap número 34); o segundo, de Walter Garcia (“Ouvindo Racionais MC's”, publicado na revista Teresa número 4/5). Separados também pela distância temporal – o artigo de Mammi é de 1992, o de Garcia é de 2004 –, cada qual a seu modo, os ensaístas discorrem a respeito de figuras e obras tidas como emblemáticas em seus respectivos momentos históricos: João Gilberto e Racionais MC's. Sem forçar o argumento, pode-se dizer que ambos buscam vincular seus objetos de estudo a questões de cunho sócio-histórico, a partir das quais a forma (na acepção materialista-dialética) responde, de modo mais explícito ou não, aos referidos impasses e às contradições de nossa história. Bastante breve, mas nem por isso menos profundo, o ensaio de Mammi elege a contribuição radical de João Gilberto para a Bossa Nova como centro de sua discussão. Para isso, mapeia a origem do movimento, vinculada desde sempre à classe média carioca e às “influências internacionais” jazzísticas, cujo resultado culminaria na realização artística de uma “vida sofisticada sem ser aristocrática, de um conforto que não se identifica com o poder”, forma de utopia de um país sem conflitos – o que parecia quase uma verdade naqueles tempos. Analisando o papel de Tom Jobim, o ensaísta aponta para a percepção do compositor em equilibrar o aspecto amadorístico da Bossa Nova com a necessidade do apuro profissional que o gênero, por sua origem, parecia exigir. Em seguida, voltando-se a João Gilberto, Mammi vê na trajetória do intérprete um caminho oposto ao de Jobim: um diletantismo que vai muito além das exigências do mercado (e, por extensão, do já citado profissionalismo), e que por ser de caráter pessoal, reforça seu amadorismo – sem perda, entretanto, daquilo que, nele e em sua produção, seja encarado como profissionalismo extremado.
Por outras palavras, podemos dizer que, na ótica do ensaísta, João Gilberto realiza artisticamente aquilo que, mesmo em seu próprio tempo, afigurava-se como a plena utopia: uma dialética entre a ordem e a desordem (para usar a fórmula magistral de Antonio Candido em sua leitura de Memórias de um sargento de milícias), na qual Primeiro e Terceiro Mundos se encontrassem e, sem deixar de ser o que eram, rearranjassem-se numa outra ordem, em que um fosse o mesmo e o outro. O espantoso é que a Bossa Nova certamente representou isso mesmo, o que talvez explicasse em parte as restrições que José Ramos Tinhorão sempre manifestou a respeito do movimento, tido por ele como um “samba abastardado” ou, em outra definição, um “samba jazzístico”. Na via oposta à avaliação do crítico, Lorenzo Mammi aposta num desenho no qual a contradição formativa da Bossa Nova configura sua potência e seus limites, mas que João Gilberto parece elevar – sem que a contradição de desfaça, pelo contrário – às alturas do virtuose. Dito de outro modo, no movimento do final dos anos 1950, o Brasil parece ter se encontrado consigo próprio, ainda que mais uma vez à custa do vai-e-vem das contradições, o modo próprio com que tentamos resolver todos os nossos conflitos históricos.
Já no texto de Walter Garcia sobre a obra dos Racionais MC's, encontramos, a partir de procedimentos analíticos semelhantes aos de Mammi, resultados bem diversos em relação aos apontados na Bossa Nova. Se nesta as contradições da modernização à brasileira configuram-se na referida construção de um universo utópico no qual “a felicidade até existe”, a produção dos Racionais – na ótica de Garcia – corre por outras vias. Tendo como ponto de partida um trabalho minucioso de esmiuçamento dos elementos formais daquela produção, o crítico entende que uma das qualidades dos raps do grupo reside justamente em sua adesão quase absoluta à realidade de violência urbana do país – que não é exclusividade das periferias, ressalva Garcia, no que está pleno de razão. Dessa perspectiva, a visada estética é outra: pondo de lado a práxis conciliatória, os Racionais investem no enfrentamento como mote artístico (e político), de que sua obra está repleta, bem como sua própria prática comercial, por assim dizer, já que persiste a recusa, da parte do grupo, de participar do esquema das grandes gravadoras e das estratégias de marketing corporativas. O problema reside, no entanto, em que o crítico talvez tenha se deixado levar por certo fascínio em relação do objeto de estudo, o que sempre é um risco. Salvo erro, seria o caso de indagar o grau de cálculo que há na atitude de rejeitar o assédio das grandes corporações. Ou, por outra: como não encarar como estratégia de marketing, ela própria, a opção por esquemas ditos alternativos de divulgação do trabalho? Sem descartar a sinceridade dos membros do grupo, há decerto um misto de ingenuidade, no mínimo (ou de cinismo, em outro extremo), que caberia investigar.
Isso não invalida, evidentemente, o trabalho de Garcia, que realiza uma síntese eficaz dos caminhos da música popular brasileira neste início de século 21. Com efeito, a percepção de que, agora, é o escancaramento da “fratura social” que determina parcela significativa da produção musical (e artística, de um modo geral) no e do Brasil não chega a ser novidade. Mas poucos foram os que se debruçaram efetivamente sobre essas realizações para apontar de modo concreto como e por que maneiras ela se formaliza. Não chega a ser um alento, já que as conclusões apontam para uma arte que mais e mais parece decalcar a “realidade” naquilo que esta tem de mais crua, o que pode ser, no limite, exatamente isso: um limite. Por outro lado, é um sintoma – mais que isso, é uma forma – de que alguma coisa se modificou entre os tempos felizes da Bossa Nova e a pouca sutileza do rap nosso de cada dia. Se isso é bom ou ruim, necessariamente, não cabe a nós, por prematura a tarefa, julgar.
* Ricardo Miyake é professor de Teoria Literária
Fonte: Revista Cult