Peça de teatro fala sobre Helenira Resende
''Lágrimas no Papel'', de Cacá Araújo, é um monólogo baseado na história de Helenira Rezende, militante do PCdoB, ex-vice-presidente da UNE, que morreu lutando na Guerrilha do Araguaia. Segundo o autor trata-se de “uma contribuição ao deb
Publicado 01/04/2008 16:11 | Editado 04/03/2020 16:36
Para Cacá Araújo “a Guerrilha do Araguaia, organizada pelo PCdoB, é uma das mais belas e heróicas páginas da história do país. Jovens ousaram se insurgir contra a ditadura militar, regime de submissão ao imperialismo norte-americano e de opressão violenta contra o povo, tolhendo-lhe a liberdade e os direitos fundamentais”.
A esquete está em processo de montagem e terá sua estréia no dia 14 de abril de 2008, durante evento do 5º Semestre do Curso de Serviço Social da Faculdade Leão Sampaio, em Juazeiro do Norte-CE.
Leia a seguir a íntegra do texto:
LÁGRIMAS NO PAPEL
Drama de Cacá Araújo
Baseado na história de Helenira Rezende, líder estudantil, comunista, guerrilheira, assassinada pela repressão militar na Guerrilha do Araguaia, Pará, em 1972.
ATO ÚNICO
Brasil, anos 70.
CENA 1
NASCE UMA GUERRILHEIRA
Sentada numa cadeira, a Mãe, uma senhora de aproximadamente 60 anos de idade, folheia um álbum de fotografias. Sua expressão varia gradativamente, num crescendo: saudade com alegria, carinho, tristeza, dor.
(Olhar fixo na fotografia) Helena era tão pequenininha…
(Aspira como que sentindo no ar o cheiro do bebê) Magrinha…
(Sorrindo docemente) Deu um trabalho pra nascer!
(Lembrando) Foi de parto normal, em 11 de janeiro de 1944…
Levanta-se e, como se o álbum fosse um bebê, acalenta-o, cantando uma música de ninar.
(Pára e olha o “bebê”. Carinhosamente) Dormiu.
Beija-“o” e “o” coloca sobre a cadeira, como se esta fosse um berço. Contempla o “bebê” com olhar terno, depois evolui para a realidade em profunda angústia, depois medo, depois dor e dúvida.
(Pausadamente) Minha Helena…
(Chorando, com brandura e dor) Onde você está, minha filhinha?
Pega lentamente o álbum e volta a folheá-lo, olhando as fotos com ternura materna. Pára quando vê uma foto da filha na escola secundária.
(Orgulhosa) Era muito estudiosa.
(Lembrando) Entrou para o grêmio estudantil… Quase foi presa por ter participado de uma passeata contra o governo em 64, depois do famigerado golpe militar que derrubou João Goulart.
(Num rompante de sinceridade) Puxou ao pai, com a vontade de querer que todo mundo seja igual.
(Explicando) Ele era marxista.
Volta-se para o álbum. Passa a folha. Compenetrada nas lembranças. Tosse fracamente. Passa outra folha. Pára. Vê. Fecha os olhos em lembrança profunda.
(Murmurando) Ela queria ser crítica de arte…
Abre os olhos, emocionada.
(Com brandura) Helena queria ser crítica de arte.
Passa a folha.
(Orgulhosa, para o público) Entrou para o partido comunista. Valente, a minha Helena…
(Tosse fraca e cansada) Foi presa algumas vezes…
Fecha o álbum repentinamente.
(Revoltada) Aqueles desalmados prenderam minha filha em 68 e colocaram em sua ficha: “fanática em subversão e filha de um ativo comunista”.
(Reprovativa e enfática) Minha Helena não é fanática! Os militares é que são terroristas!
(Lenta e terna) Ela é comunista sim. Dizem que até Cristo foi comunista…
(Para o público) Foi presa novamente no 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes. Era vice-presidente.
(Inconsolável) Ficou no Carandiru durante dois longos e terríveis meses…
(Suspirando) Saiu e foi viver na clandestinidade…
A Mãe volta a folhear o álbum.
(Desconsolada) Onde você está, Helena?!
Passa as folhas do álbum com violência.
(Fora de si) Só vejo fotos… Fotos! Fotos! Fotos!
(Fechando o álbum, com delicadeza) Minha jovem Helena foi para o Araguaia, lutar contra a ditadura… Lá no sul do Pará… Queria ver o povo livre e feliz…
Abraça o álbum como se este fosse um pedaço da filha. Chora. Luz cai em resistência.
CENA 2
NOTÍCIAS
Tira lentamente um recorte de jornal de dentro do álbum. Demonstra não querer olhar nem ler. O conteúdo é desagradável às suas expectativas e esperanças de mãe. Na verdade ela já sabe o teor da notícia. É um objeto que provoca queimaduras na alma: ela quer a filha viva e o jornal oferece a dúvida; e isso é cruel.
(Trêmula) Os militares tinham poder de vida e morte sobre as vidas daquelas pessoas…
(Revoltada) E o presidente Médici comandava tudo com a mão do Diabo!
(Sofrendo) Mandou a polícia política se encarregar do trabalho de eliminar a vida de jovens que queriam um país livre… Democrático! Justo!
(Dor) Tortura… Violência… Estudantes… Jovens de 17, 18, 20, 30 anos sendo espancados… Assassinados! Moças sendo violentadas… O cheiro da morte invade os campos e as cidades…
(Perde-se em choro) Minha Helena… Onde estará minha Helena?
Pausa.
(Sóbria) Crueldade.
(Para o público, enfática, desafiadora) Cadê minha filha?!
Amassa o recorte de jornal e o joga no chão com força.
(Voz cortada) Estamos em 1979… E o presidente é o General Ernesto Geisel… A ditadura dos militares já executou muitas mortes…
(Insana, com firmeza) Mas minha filha não está morta!
Abre o álbum e procura uma foto que possa ilustrar sua afirmação.
(Enlouquecida) Eu vou provar… A foto está aqui… Helena estava no meu último aniversário, eu juro! Vou mostrar pra vocês…
Procura. Não acha. Descontrola-se e joga o álbum no chão.
(Balbuciando, choro contido) Não estou encontrando minha Helena…
(Num crescendo, olhando para os lados e para adiante) Helena! Helena! Helena!
(Quase inaudível, para o público) Helena…
Cai de joelhos, vencida pela dor e pela dúvida. Mãos erguidas como que para abraçar a filha que não está presente. Chora.
(Suplicante) Eu estou procurando a minha filha…
(Dor profunda, delírio) Alguém viu a minha filha? Por favor, alguém aqui viu a minha filha? Ela é alta, magra, bonita…
Chora soluçando. Luz cai em resistência.
CENA 3
HELENA
Inconsolável, a Mãe reage diante da (in)certeza da morte da filha. Arranca uma foto do álbum e, insanamente, passa a usá-la como prova de que a filha está viva, contrapondo-se a cada argumento por ela mesmo apresentado.
(Incrédula e fora de si, mas sutilmente) Disseram que minha filha foi assassinada…
(Mostrando a foto) Não pode ser… Ela está aqui, olhem…
(Doce) Minha filha…
Pausa. Passa a viver mais intensamente a dúvida em relação à vida da filha e o desejo de reencontrá-la viva. A foto cai de suas mãos. Pega a foto com carinho e aperta-a sobre o peito.
(Acelerando o fôlego, para a platéia) Dizem que foi em 72 que mataram minha Helena… Estamos em 79 e nunca ninguém achou seu corpo…
(Branda, convencendo-se) Ela vai voltar pra casa… Ela é esperta…
Anda para um lado e para outro, impaciente. Não se contém e fala o que já está no noticiário, mas sem dar crédito. É uma cena de esperança na possibilidade da mentira. Um transe maternal.
(Saindo de si, mas começando brandamente, depois crescendo) Falam que lutou valentemente… Resistiu atirando… Matou um, feriu outro… Depois teve suas pernas metralhadas… Mas não se entregou!
(Grave) Os militares, carrascos covardes, ficaram irritados com a bravura de Helena…
(Tenta voltar à normalidade) Ela vai chegar… Acho que depois de amanhã…
(Como se a alma estivesse sendo dilacerada, lentamente) Soube que, mesmo estando ferida, indefesa, eles a torturaram barbaramente com golpes de baioneta até a morte…
Descreve cenicamente. Fixa expressão de dor profunda, com que sendo real cada ação de tortura.
(Sentindo) Nas pernas… Na barriga… No peito…
(Mostrando a foto, confusa) Ela está viva! Olhe! Não pode ter sido ela! Helena está viva… Viva… Viva… Helena…
(Para uma mulher da platéia) Por favor… Eu sou a mãe dela… Olhe esta foto. Será que a senhora não a viu?! Não me esconda… A senhora também deve ser mãe e entende a dor que sinto…
(Insistente) Diga que viu… Diga que viu… Diga que viu minha Helena! Ela está viva. Eu sei que ela está viva…
(Triste) Só não consigo encontrá-la!
(Fraquejando) Não consigo encontrar a minha filha…
(Para o nada, num sopro de delírio) Helena, a mamãe vai te encontrar… A mamãe vai te trazer de volta para casa…
(Baixo, segredando, olhando além) Não saia daí, senão eles vão te pegar… A mamãe está chegando, viu? Shhiiii… Não faça barulho…
Apanha lentamente o jornal amassado que jogara no chão. Desamassa-o e o recoloca dentro do álbum, como se assim estivesse prendendo o opressor. Luz cai em resistência.
CENA 4:
LÁGRIMAS NO PAPEL
A Mãe tira um pedaço de papel e uma caneta de sua bolsa. Sob forte emoção, escreve uma carta destinada a sua filha Helena. Vai lendo ao tempo em que está escrevendo.
(Trêmula) Minha querida Helena… Estou escrevendo esta carta porque já não tenho mais certeza de minha saúde… É só uma garantia para que você, quando voltar, saiba o quanto eu te amo e te procurei desesperadamente…
Abre o álbum e chora contida e dolorosamente.
(Sussurrando) Revi mais de mil vezes suas fotos… Bebê… Criança… Adolescente… Universitária e militante política…
(Soluçando) Seu pai faleceu no ano passado… Em suas últimas palavras disse que seu maior orgulho era você… Comunista! Guerrilheira! Ele acreditava, como você acredita, que o capitalismo só produz miséria e desgraça… Que o socialismo é o caminho a ser seguido pela humanidade…
(Enxugando as lágrimas) Você é igualzinha a ele…
Volta-se novamente para o álbum. Passa uma folha. Detém-se numa foto em especial.
(Saudosa) Agora mesmo estou vendo sua foto na seleção de basquete da cidade… Oh, minha Helena, como sinto saudades de você! Tão meiga… Tão doce…
(Fúria contida) Se eu pudesse, eu mesma esganaria o presidente e sua corja de assassinos!
(Terna) Lembra daquele dia em que você se engasgou com um bombom? Quatro anos você tinha. Faltou fôlego, foi um Deus nos acuda… Depois você pediu para eu não nunca sair de perto para o engasgo não voltar…
(Chorando e sorrindo) E a febre alta que você teve? Uma convulsão e você esmorecendo em meus braços, ficando roxinha… Gritei pelo seu pai… Eu pensei que você estava morrendo… Só um susto…
(Revoltada) Eles não podiam ter tirado você de mim…
Lágrimas caem sobre o papel. Ela tenta enxugar, manchando-o com o borrão da tinta.
(Assuando o nariz) O papel está borrado… Saiba que foram minhas lágrimas… Derramadas em rio, como o Araguaia, banhando a esperança de te ver viva, feliz, alegre…
(Chorando) Não consigo escrever mais nada, filha… Vou deixar esta carta debaixo do seu travesseiro, junto com nosso álbum de fotografias… É o testemunho de meu amor…
(Quase sem voz) Te amo, Helena…
(Inaudível) …Tua mãe.
Beija a carta, dobra-a lentamente e coloca-a dentro do álbum de fotografias. Em off a música “Caminhada”, de Geraldo Vandré. Ela chora intensamente de saudades. Luz cai em resistência.
FIM
Este texto é dedicado a todos e todas que lutaram e lutam em defesa da democracia, da justiça social, da emancipação humana, do socialismo.
Cacá Araújo, março do ano 2008, em Crato-CE.