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Para Mangabeira, prosperidade do país é frágil e superficial

Trabalhando a toque de caixa num “projeto de desenvolvimento” para o país, o filósofo Roberto Mangabeira Unger diz que a atual prosperidade brasileira, decantada em prosa e verso por seu chefe, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é “aparente”, “superf

“Essa prosperidade superficial e frágil não nos deve enganar a respeito da situação em que estamos. Ainda não encontramos o caminho necessário da reconstrução industrial”, sustenta o ministro, que embarcou há oito meses no governo sob o olhar desconfiado do próprio presidente da República, que o nomeou num gesto de deferência ao vice-presidente José Alencar, colega de partido de Mangabeira – o PRB.



Mangabeira teria conquistado Lula durante reunião, realizada no início do ano, em que fez uma apresentação do esboço do seu projeto de desenvolvimento, baseado em cinco pilares – oportunidade econômica, educação, qualidade da gestão pública, Amazônia e defesa.



“A pessoa mais interessada e entusiasmada com o meu trabalho é o presidente. Ainda bem! Ele sabe que não estamos tratando apenas do futuro do país, mas do legado institucional de seu governo”, diz o ministro.



Críticas à política econômica



Adversário ferrenho da atual política econômica, Mangabeira evita falar de macroeconomia. “Não vou mentir aqui e dizer que mudei de idéia. Não mudei, mas não estou tratando disso.” Suas críticas, no entanto, vão além. Ele sustenta que o coração do sistema industrial brasileiro é refém de um “fordismo tardio”. “Alcança padrões de excelência fabril, mas é relativamente retrógrado no seu cerne organizativo e tecnológico. Ele se mantém competitivo à base de uma restrição dos setores ao fator trabalho”, critica.



Na avaliação do ministro, o Brasil cresce tradicionalmente por meio de alguns setores avançados e internacionalizados, que geram riqueza. Parte dessa riqueza é apropriada pelo governo para financiar programas sociais, como o Bolsa-Família. É muito pouco, diz ele. “Agora, a nação e o governo querem mais. Querem transformar a ampliação de oportunidades econômicas e educativas no próprio motor do crescimento. Para isso, é preciso inovar nas instituições, inclusive naquelas que definem a economia de mercado, e essa é uma prática a que nós nunca nos acostumamos”, explica.



Como tem restrições ao atual modelo industrial, amparado na concessão de incentivos fiscais e crédito subsidiado a grandes empresas, Mangabeira informa que seu projeto cria uma política industrial “paralela”, voltada para pequenas empresas. “Culturalmente, somos caracterizados por um pendor para o improviso, a anarquia criadora e construtiva. Por todas as razões, deveríamos instrumentalizar essa multidão de empreendimentos emergentes com acesso a crédito, tecnologia e conhecimento”, defende.



Para atingir esse objetivo, são necessárias, diz o ministro, três medidas: formar práticas e quadros; ampliar o crédito ao produtor; e promover o que chama de “extensionismo tecnológico”. No primeiro caso, ele acha que o país avançou com o Sebrae. Quanto ao segundo, conta que está trabalhando com os bancos públicos para “compreender” os obstáculos que impedem a ampliação do crédito.



Nesse ponto, o professor critica formulação bastante disseminada no governo Lula: a de que o país passou a enriquecer à base da ampliação do crédito ao consumidor e da massificação do mercado de consumo, sem antes ter democratizado o acesso ao trabalho e à produção. “Como se olhássemos para a experiência dos EUA e da Europa nas últimas décadas do século XX, sem perceber que aquela massificação do consumo foi antecedida por gerações de luta a respeito da democratização dos acessos aos instrumentos de trabalho e da produção”, pondera.



Mudanças no trabalho


 


A transição do “fordismo” já teria começado a acontecer, segundo o ministro, no centro industrial do país, onde há formas de produção mais flexíveis, densas em conhecimento e sobretudo vocacionadas para a inovação permanente. O desafio, diz ele, é fazer a travessia, “na vasta periferia econômica do país”, do pré-fordismo para o pós-fordismo, sem ter que passar pela etapa intermediária. “O país não tem que primeiro virar a São Paulo de meados do século XX para, depois, virar outra coisa”, observa.



O projeto de Mangabeira prevê também mudanças profundas no sistema de trabalho, fundado no período Vargas. Seu diagnóstico é pessimista. Segundo ele, a economia brasileira está ameaçada de ficar imprensada entre as economias de trabalho barato e as de produtividade alta. A situação teria se complicado mais ainda porque países de trabalho barato, como a China, estão se tornando também economias de produtividade elevada.



“Isso cria uma situação extremamente negativa para nós, cuja gravidade é disfarçada por essa prosperidade superficial que estamos vivendo”, adverte. “Um dos nossos interesses nacionais mais básicos é escapar dessa prensa pelo lado alto, de valorização do trabalho e de escalada da produtividade, e não pelo lado baixo, de aviltamento salarial, não tentar ser apenas uma China com menos gente. Para isso, precisamos reorganizar as relações entre capital e trabalho.”



Mangabeira informa que a discussão desse tópico está focada em três temas: informalidade, participação dos salários na renda nacional e regime sindical. No primeiro caso, o principal objetivo é promover uma desoneração “radical” da folha de pagamento das empresas. A contribuição para o Sistema S e o salário-educação sairiam da folha e os benefícios diretos, como as férias remuneradas, ficariam. O financiamento da previdência social, principal item de custo das empresas, sairia da folha e passaria a ser feito por outros tributos.



Quanto à participação dos salários na renda, Mangabeira lembra que ela vem caindo há quase meio século. Trata-se de uma tendência internacional, mas ele sugere que o problema seja enfrentado por meio de iniciativas institucionais e não apenas por políticas que influenciem o salário nominal, como vem fazendo o governo com o salário mínimo. Sua proposta é que o sistema tributário se torne neutro na base da hierarquia salarial, de forma a não castigar quem emprega e qualifica trabalhadores mais pobres. Para o topo da hierarquia, recomenda a generalização progressiva do princípio constitucional da participação nos lucros, o que, segundo ele, só funcionará se os sindicatos puderem ter acesso à contabilidade das empresas.



No caso do regime sindical, Mangabeira aplaude a legalização das centrais e diz que elas podem desempenhar papel importante na negociação de temas nacionais, como a vinculação de aumentos salariais à elevação da produtividade. “Os países onde é possível negociar esse tipo de vínculo são os que têm estruturas sindicais centralizadas, como os escandinavos. Esse é um papel que as centrais podem exercer no Brasil”, aposta. O ministro também se junta às centrais na defesa de que o setor empresarial reconheça o princípio de que, no local do trabalho, o sindicato preponderante represente todos os trabalhadores. “É um exemplo de convergência entre os defensores e os opositores do princípio da unicidade”, diz ele.


 


Profissionalização do setor público



No tema “qualidade da gestão pública”, o professor defende a profissionalização de todas as carreiras. Ele conta que se surpreendeu ao chegar a Brasília e descobrir que a maioria dos ministérios não possui funcionários de carreira. “São ministérios fantasmas. Temos ilhas de profissionalismo burocrático, como a Receita Federal e o Itamaraty, flutuando num oceano de discricionarismo político”, critica.



Mangabeira combate a idéia de que criar uma burocracia profissional e meritocrática é inchar o Estado. “Criou-se uma antipatia com a idéia de burocracia no Brasil. A direita é contra porque supostamente o mercado é sufocado pela burocracia. O mercado depende da burocracia. A esquerda é contra porque a burocracia é contra a democracia, a radicalização democrática. A radicalização da democracia exige a burocracia. Ambas estão equivocadas”, conclui.



Paralelamente à profissionalização, o ministro propõe a criação um órgão independente para avaliar os serviços prestados pelo setor público. Essa entidade não atuaria de forma punitiva, como o TCU, mas para auxiliar os vários órgãos a rever suas práticas.



Em seu modelo institucional, Mangabeira prega a redefinição das relações entre Estado e mercado, escapando dos dois modelos existentes – o americano, em que o Estado apenas regula o setor privado à distância; e o do Nordeste asiático, onde o Estado, por meio de um aparato burocrático, formula uma política industrial-comercial unitária e a impõe de cima para baixo.



O terceiro modelo, que ele deseja fundar no Brasil, prevê a “coordenação estratégica, descentralizada, pluralista, participativa e experimental entre Estado e empresas”. O velho conflito entre o Estado e o mercado, diz ele, está morrendo e sendo substituído por um novo que diz respeito às formas alternativas da economia de mercado e da democracia política.



O projeto de longo prazo de Mangabeira começa agora. Professor licenciado da Universidade de Harvard, ele diz que não deixou nos EUA sua família, seus livros e seu salário (cinco vezes maior do que o atual) para servir de “enfeite” em Brasília. Se por um lado faz críticas ao modelo econômico vigente, por outro diz que o momento atual é “mágico”. “(Seu projeto) é uma visão de país, mas ela tem que estar ancorada em coisas concretas que comecem já. Não acredito no contraste entre o curto e o longo prazo. O único longo prazo que é para valer é o que começa já. O que importa é o caminho, a direção.”



Fonte: Valor Econômico