Seminário da Função Social da Propriedade aprova Carta de Porto Alegre
O 1º Seminário Estadual Sobre a Função Social da Propriedade do Solo Urbano, realizado no dia 6 de junho, no Auditório do Ministério Público de Porto Alegre, terminou com a aprovação da Carta de Porto Alegre.
Publicado 12/06/2008 15:34 | Editado 04/03/2020 17:11
O evento direcionado a operadores do direito, representantes dos poderes Executivo, Legislativo e lideranças dos movimentos sociais. O evento foi organizado pelo Fórum Permanente de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, coordenado pelo deputado estadual Raul Carrion (PCdoB).
Na abertura do evento, o deputado Raul Carrion lembrou a importância de realmente colocar em prática leis como o Estatuto das Cidades e a própria Constituição, que prevê a função social da propriedade. O presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, Sebastião Melo, ressaltou a parceria entre os legislativos estaduais e municipais para superar os desafios urbanos, entre eles a regularização fundiária. “É preciso mudar o quadro onde a população tem direito mas não têm acesso a ele”, alertou o vereador.
A deputada federal Manuela d’Ávila lembrou a revolução proporcionada pelo Estatuto das Cidades e a relevância de colocá-lo em prática. A arquiteta e relatora de moradia urbada adequada da ONU, Raquel Rolnik, lembrou em o desenho das cidades depende de como os governantes trabalham a equação da moradia. “É preciso que se discuta que cidade estamos produzindo”, alertou Raquel. Ela lembrou que a Inglaterra mantém 40% dos empreendimentos habitacionais como de habitação de interesse social, o que poderia servir de exemplo para o Brasil, onde mais de 50% das moradias podem ser consideradas em situação precária.
O senador comunista Inácio Arruda, relator de mérito do Estatuto da Cidade, convocou a sociedade a mobilizar-se para interferir no processo legislativo e fazer valer os direitos à moradia. “Apenas em 1988 que pode-se considerar o acontecimento de avanços no tratamento de questão urbana”, lembrou. “Tornar a função social da propriedade uma cláusula pétrea da Constituição foi algo de fundamental para a sociedade brasileira”.
Mas, segundo Arruda, a responsabilidade agora é de colocar na prática esse conjunto de leis e ela depende da política. “Os movimentos sociais precisam quebrar o poder que controla as cidades, é preciso ampliar a força política do movimento social”. Arruda lembrou que até 2010 estarão disponíveis mais de R$ 14 milhões em recursos para a habitação. “Precisamos estar atentos a como esses recursos irão servir ao interesse social da sociedade”, alertou.
Participaram ainda como palestrantes o presidente da Ajuris, desembargador Carlos Cini Marchionatti, do presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Lauro Wagner Magnago, além de procuradores, defensores públicos, além de defensores públicos, advogados e especialistas na área.
Os debates tiveram três eixos temáticos: A Problemática Habitacional e a Função Social da Propriedade; A Propriedade Urbana na Constituição, No Estatuto da Cidade e nos Demais Instrumentos Legais; Os Desafios na Aplicação dos Instrumentos Legais sobre a Função Social da Propriedade.
Fórum Permanente
O Fórum Permanente de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos foi proposto pelo deputado Raul Carrion, na Assembléia Legislativa, e tem funcionamento periódico com foco na prevenção, elaboração de projetos e políticas públicas. Participam do Fórum representações da OAB/RS, Defensoria Pública do RS, Caixa Econômica Federal, Sehadur, Ajuris, Ministério Público Estadual, Secretaria de Planejamento de Porto Alegre, Conam, Uampa e Câmara de Porto Alegre.
Confira a íntegra da Carta:
CARTA DE PORTO ALEGRE
Hoje, 82% dos brasileiros se concentram em solo urbano. É correto utilizar o termo “concentram”, pois grande parte destas pessoas não reside de forma digna, nem possui segurança na posse do imóvel em que abriga sua família. Segundo critérios do Banco Mundial, é fundamental, para medir o grau de desenvolvimento de um país, o saneamento disponibilizado à sua população e o grau de segurança da posse dos imóveis em que seus cidadãos residem. O que nos permite afirmar que a efetivação da função social do solo urbano é essencial para o desenvolvimento do país, trazendo benefícios diretos aos que hoje não residem de forma digna – notadamente a população de baixa renda – bem como àqueles que, embora possuam habitação regular, dependem do crescimento da nação para também garantir o seu crescimento pessoal e seu sustento.
O solo urbano é valorizado em razão de toda infra-estrutura disponibilizada pelo Estado nas cidades, tais como vias de circulação, drenagem, esgotamento sanitário, abastecimento de água, recolhimento de resíduos sólidos, praças, hospitais, escolas, etc., além da concentração de serviços e comércio, que também se instalam nas cidades em virtude daquela. Assim, se o que valoriza o solo urbano são os aspectos decorrentes da vida em sociedade, organizada pelo Estado, naturalmente o imóvel urbano deve ser utilizado para o bem comum, cumprindo a propriedade sua função social.
A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe, no seu art. 1º, que, dentre outros, é fundamento da República Federativa do Brasil a “dignidade da pessoa humana”. Ao definir os objetivos fundamentais da República, no art. 3º consta: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. No inciso XXII do artigo 5º é garantido o direito de propriedade, e o inciso XXIII do mesmo artigo determina que a propriedade atenderá sua função social. Mais adiante, nos artigos 182 e 183, pertencentes ao capítulo relativo à “Política Urbana”, estabelece alguns mecanismos para fazer valer os mencionados direitos fundamentais.
O mandamento constitucional de que a propriedade deva cumprir sua função social surge a partir de 1988, como um verdadeiro limitador ao direito de propriedade, até então absoluto. A função social, portanto, afora constituir-se em um elemento do direito à propriedade, consubstancia-se em um requisito intrínseco necessário à própria existência daquele direito, ou seja, parte integrante da propriedade. Assim, em não havendo cumprimento da função social, a propriedade deixa de ser protegida juridicamente, perecendo o direito. Ou, como doutrina o constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA, “a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização”.
Infraconstitucionalmente, na Lei nº 10.257/01, denominada Estatuto da Cidade, são elencados os institutos que permitem que sejam cumpridos aqueles mandamentos constitucionais, tais como o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o IPTU progressivo no tempo; a desapropriação com Títulos da Dívida Pública; o usucapião especial de imóvel urbano; a Concessão de Direito Real de Uso; a concessão de uso especial para fins de moradia; a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social; a regularização fundiária; o direito de superfície, dentre outros.
Além desse diploma legal, são instrumentos jurídicos importantes para fazer valer o que determina a Carta Magna a Medida Provisória nº 2220/2001, que disciplina a concessão de uso especial para fins de moradia, e a Lei nº 11.481/07, que prevê medidas voltadas à regularização fundiária de interesse social em imóveis da União.
No Estado do Rio Grande do Sul, a Constituição Estadual contém capítulos próprios para tratar da Habitação e da Política Urbana, e, nestes, consta expressamente que “os Municípios definirão o planejamento e a ordenação de usos, atividades e funções de interesse local, visando a” “melhorar a qualidade de vida nas cidades” e “promover a definição e a realização da função social da propriedade urbana”, além de estabelecer, a exemplo do que determina o Estatuto da Cidade, a obrigatoriedade, para os municípios com mais de vinte mil habitantes, de elaboração de Planos Diretores, sendo que os demais deverão elaborar diretrizes gerais de ocupação do território, que garantam, através de lei, as funções sociais da cidade e da propriedade.
Ainda no âmbito estadual, a fim de facilitar a regularização fundiária em loteamentos irregulares e ocupações, foram editados pela Corregedoria-Geral da Justiça os Provimentos n.ºs. 39/95, 17/99 e 28/04, conhecidos como “More Legal I, II e III”.
Nota-se que não é a carência legislativa o motivo pelo qual ainda se contabiliza um déficit habitacional – quantitativo e qualitativo – de mais de vinte milhões de domicílios em nosso país, atingindo cerca de cem milhões de brasileiros (no Rio Grande do Sul, segundo dados oficiais do Plano Plurianual 2008/2011, a carência de unidades gira em torno de 650.000), nem é a falta de mandamentos legais que leva à absurda constatação de que dois terços dos imóveis no Brasil, em média, são irregulares.
O 1º Seminário Estadual sobre a Função Social da Propriedade do Solo Urbano, realizado em Porto Alegre, em 6 de junho de 2008, não teve a pretensão de esgotar o estudo e a discussão acerca da função social da propriedade do solo urbano, mas reuniu grandes nomes, de pessoas que pensam, divulgam e trabalham este importante tema, e visou chamar a atenção para a disparidade entre a realidade social e o que consta no ordenamento jurídico brasileiro.
O objetivo do Seminário foi exortar os Agentes Políticos, Administradores Públicos, Operadores do Direito, a Sociedade Organizada e os Movimentos Sociais a que façam valer na prática o que no mundo das leis está posto, buscando fomentar e desenvolver uma nova cultura jurídica e doutrinária acerca da Função Social da Propriedade, bem como o desenvolvimento de políticas públicas que garantam o seu cumprimento.
O que é jurídico, sem que tenha reflexo no mundo dos fatos, jamais será justo.
Porto Alegre, 06 de Junho de 2008