Acervos particulares guardam memória do Ceará
Quando somente o baú da memória não é mais suficiente para guardar o passado, os relicários guardam as lembranças de tempos distantes de pessoas tão próximas. Centenas de famílias que constituíram núcleo populacional das cidades do Interior deixaram marca
Publicado 20/07/2008 11:31 | Editado 04/03/2020 16:36
Uma herança colonial, a ocupação do Ceará por alguns brasões familiares, de relacionamentos conjugais de parentescos beirando o limite da responsabilidade – ao contrário de hoje, o casamento entre primos, por exemplo, era ato reprovável, a menos que houvesse concessão do padre – confunde-se com a própria história política, econômica e social do Ceará. A oficialidade das relíquias nos prédios públicos funde-se com a intimidade da vida doméstica dos cidadãos comuns, de seus casarões e de suas memórias.
Por isso, não é difícil encontrar museus e instituições culturais no interior, criados a partir de residências de famílias tradicionais, que guardam em seus acervos verdadeiros tesouros da memória histórica de comunidades locais.
Variedade
São móveis centenários, publicações raras, antigas máquinas em desuso, entre outros, preservados pela dedicação de entidades sem fins lucrativos que se empenham na manutenção desses patrimônios. Um universo histórico rico em diversidade que se mantém graças a persistência em cultivar a memória dos antepassados.
No Vale do Jaguaribe é possível encontrar uma relíquia tão grande e óbvia como o “Casarão dos Freitas”, em Limoeiro do Norte. Com a diferença de que não havia senzalas, o lugar é, em sentido literal-arquitetônico, uma verdadeira casa grande. Lá viveu, trabalhou e fez história João Maria de Freitas. Homem distinto e de negócios que viveu na Limoeiro do Norte entre os séculos XIX e XX. Familiares é o que nem hoje faltam. Até as contas deste ano são nada menos que 846 descendentes: 22 filhos, 167 netos, 364 bisnetos, 274 trinetos e 19 tetranetos. Pelo mesmo motivo, não falta quem guarde e preserve os objetos-lembranças do tempo que não volta mais.
Destaque
No Casarão dos Freitas, uma das maiores e mais pesadas relíquias é uma máquina de madeira para prensar cera de carnaúba – havia uma fábrica. A “Tia Isaura” (Isaura Maia de Freitas, 92 anos) ainda guarda na casa essas engenhocas e outros acessórios do trabalho do pai.
Seu sobrinho, José Verdi Freitas Silva, 72, guiou a reportagem na visita ao verdadeiro museu particular. “Tinha muita coisa espalhada na casa dos parentes, aí fomos procurando tudo, porque juntando é mais fácil de guardar e preservar”, explicou José.
Máquina de costura, de tear algodão, chaleira, cangalha, moedor de carne comprado em Mossoró no ano de 1920, a espada de seu Luís Francisco de Araújo Ferreira (pai de dona Maria Idalina, esposa de João Maria, fundador do casarão), os objetos antigos dividem espaço com fotos de todas as gerações da família pelas paredes da casa. A família se reúne todos os anos no período das festas juninas.
Os espaços do alpendre são ocupados para as conversas do tipo “e a família, como vai?” e dos festejos de São João. Os álbuns de cada reencontro todos os anos é numerado na parede. “Ta faltando de 2008”, lembra seu José Verdi.
Brasão
“Freitas -Tem por Armas em campo vermelho ‘sinco’ estrellas de ouro de seis pontas cada huma. Tymbre: dous braços de Leão de ouro em aspa (…) Procedem de Diogo Gonçalves que morreo na batalha de Ourique, filho de Gonçalo Oveques, o que fundou o Mosteiro de Cete, e de sua mulher Dona Urraca Mendes, irmã de D.Fernão Mendes de Bragança, cunhado del Rey D.Affonso Henriques da qual houve a D. João de Freitas, que foy o primeiro que tomou esse appellido, do Julgado de Freitas, junto a Guimarães, solar desta Família”.
Assim está escrito sobre a família que nasceu muito mais cedo que os que criaram o casarão, remonta ao tempo do primeiro rei de Portugal. O excerto acima consta na página 259 da “Documentação sobre Brazonarios” do Anuário Genealógico Brasileiro ano VI de 1944. O brasão da família, descrito acima, fica logo na parede da sala, ao lado da cadeira onde “Tia Isaura” assiste a TV.
Entrar no Casarão dos Freitas, de 105 anos, é aceitar um convite para o túnel do tempo. Até da época em que João Maria de Freitas chamava os empregados com um búzio de quase um quilograma.
Em outra sala pode ser encontrado o seu arquivo de madeira, fabricado em meados do século passado. Neste local, ficavam guardados os documentos comerciários.
Pioneirismo
O Freitas pioneiro na região jaguaribana também foi o fundador da Paga de Santo Antônio, em Limoeiro do Norte. Há muitas décadas e “toda terça-feira que Deus dá”, o alimento de trigo é distribuído aos carentes no Dispensário do Pão, logo atrás da Igreja de Santo Antônio, no Centro da cidade.
Os Freitas decidiram preservar todos os objetos que ainda foi possível encontrar. O patrimônio é familiar, mas também público, já que vez por outra aparecem curiosos e pesquisadores para ver as relíquias do Casarão. A família, que só aumenta, encontra na guarda dos objetos antigos o pretexto melhor para se reunir sempre. E preservar a memória.
Fonte: Diário do Nordeste