Robert Fisk: crise e ranger de ossos mundiais; não no Líbano

Mustafa, proprietário da sala que alugo, está sentando em seu barzinho (só refrigerantes), no térreo, com o dedo na orelha. Trabalho no escritório do The Independent, janelas bem fechadas, o que não impede que uma fina camada de poeira entre pelas fres

Em toda Beirute é a mesma coisa, a paisagem sempre em transformação, todos os dias brota um novo prédio de escritórios ou de apartamentos. Sim senhor! No Líbano, país cujo nome ainda é sinônimo de guerra – e em mundo no qual o capitalismo enfrenta colapso de proporções bíblicas – os negócios vão de vento em popa.


 


Mas, atenção, leitores, não aconselho – não, não, de modo algum – não estou aconselhando ninguém a investir nesse para-Estado, de governo sectário e covas para sepultamentos em massa e campos de esquálidos refugiados palestinos. Não sou economista. No ginásio, não passei em Matemática em três tentativas, motivo pelo qual me ofereceram uma vaga na Liverpool University. Alguém, pois, terá de me explicar como esse paisinho do Oriente Médio dá-se tão bem e atravessa tão alegremente a temporada de ciclones que detona a economia mundial.


 


O Blombank de Beirute comemora aumento recorde de 34% nos lucros nos ¾ do ano já decorridos. O presidente do Banco Audi Saradar, o qual, coincidentemente, é também ministro da habitação do governo libanês, diz que se espera que o Líbano, em pouco tempo, alcance o mais alto índice de crescimento em muitos anos. Os preços das casas continuam a subir. E o país padece sob uma dívida pública de 45,5 bilhões de dólares. Assim sendo, entra em ação a cadernetinha Fisk de anotações, em capa de couro, para recolher as palavras da sabedoria libanesa (homens, na maioria; poucas mulheres) na qual se escondem os segredos do milagre financeiro local. OK.


 


O Banco Audi perdeu cerca de 20 milhões de dólares na quebra do Lehman Brothers, mas escapou por um triz do colapso do Wachovia Personal Finance and Business Financial Services, porque sua aplicação de 200 milhões de dólares venceu dia 3/10. Somados, os 58 bancos libaneses acumularam lucros de 750 milhões de dólares em 2008. E por que esse dinheiro parece tão bem salvo e preservado? Porque há três anos, o Banco Central do Líbano proibiu os bancos comerciais de operar com derivativos. Nenhum banco libanês investiu, nem um centavo, nas hipotecas subprime nos EUA. De fato, os bancos comerciais libaneses, todos eles, são proibidos de investir em imóveis fora do Líbano.


 


Não há, é claro, petróleo, no Líbano – ou há? Nos idos de 1976, quando Ghassan Tueni foi ministro do petróleo, quase todos os grandes conglomerados mundiais de petróleo mostraram interesse em prospectar em áreas da costa libanesa entre Batroun e Tripoli, ao norte. Mas no dia previsto para a abertura da concorrência, em Tripoli, estourou a guerra entre sírios e palestinos, que conflagrou a região a ser prospectada. Depois, em 1980, o economista libanês Marwan Iskander sugeriu ao então presidente Elias Sarkis que seria hora de voltar a pensar na concorrência para prospectar petróleo. Iskander ofereceu-me magnífico charuto cubano, enquanto me contava a história de Sarkis. Por alguma insondável razão, todos os libaneses fumam charutos quando discorrem sobre a loucura financeira.


 


“Quando apresentei minha sugestão, Sarkis virou-se para mim e disse: 'Escute aqui, Marwan, os libaneses já somos doidos, sem petróleo. Se acharmos petróleo, enlouqueceremos completamente! Além do mais, mesmo que encontremos petróleo, os sírios não permitirão a exportação.'” Hoje, os sírios já voltaram – politicamente – ao Líbano, e o governo de Siniora não tem pressa para descobrir reservas de petróleo sob as águas do Mediterrâneo.


 


Mas os libaneses talvez contem com uma commodity tão valiosa quanto o petróleo: o Líbano é o único país do mundo que tem 35-40% da população empregada em terra estrangeira; e esses libaneses mandam para casa, anualmente, cerca de 7,5 bilhões de dólares. Além disso, o Líbano já recebeu 1,3 bilhão, dos 7,6 bilhões a que faz jus, nos termos da Declaração de Paris, da OCDE, de 2005; o que falta virá, com as reformas que o governo prometeu fazer. Isso, sem falar, aliás, do quase 1 bilhão de dólares que o Hezbolá recebe anualmente do Irã. Indício da eficácia com que os EUA “estancaram o fluxo de dinheiro para organizações terroristas”.


 


Quanto à dívida pública, situação sob controle. Pelo menos 24 bilhões, dos 45,4 bilhões devidos são dívida em moeda estrangeira; 21 bilhões, em dinheiro libanês. Mas 80% da dívida externa é dívida de bancos ou de empresas libanesas, que jamais terão interesse em quebrar o país; todos pagam pontualmente os juros que devem pagar. E no que tenha a ver com a dívida interna, Siniora pode imprimir mais dinheiro, sendo necessário.


 


Uau! Foi a primeira vez que me meti nos assuntos de lucros e perdas desse estranho país. No hell-disaster  (esse “desastre dos infernos”, como disse Churchill) que é o Oriente Médio, é quase engraçado constatar que o Líbano – em termos políticos, é um Rolls-Royce sem leme – sabe fazer contas e o balanço 'fecha'. O mundo terá o que aprender, do Líbano? No nosso próximo encontro – pedi a Iskander na 5ª-feira passada –, sugira-me um ‘derivativo’. “Nada disso”, respondeu ele. “Se você já tiver entendido, explique p’ra mim!”


 


Como os libaneses conseguem fazer o que fazem? Sendo otimistas. Surpreendentemente, raros libaneses conhecem a sombria advertência que T.S.Eliot dirigiu aos ancestrais dos libaneses, os fenícios. Em “Death by Water”**, Eliot escreveu: “Flebas, o Fenício, morto há quinze dias, / Esqueceu o grito das gaivotas e o marulho das vagas / E os lucros e perdas. / Uma corrente submarina / Roeu-lhe os ossos em surdina. (…) / Gentio ou judeu, / Ó tu que o leme giras e avistas onde o vento se origina, / Considera Flebas, que foi um dia alto e belo como tu.”


 


Mas quem, em Beirute pensa em Flebas, sepultado no Mediterrâneo? Pois pode acontecer de, um dia, os libaneses encontrarem tesouros mais ricos, mas escuros, por baixo daqueles ossos.


 


*ROBERT FISK, 25/10/2008, ” Financial doom and gloom is everywhere – except Lebanon” © 2008 The Independent, UK. Na Internet em http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisks-world-financial-doom-and-gloom-is-everywhere-ndash-except-lebanon-972797.html.



Tradução de trabalho, de Caia Fittipaldi, para finalidades didáticas, sem valor comercial.


 


**“Death by Water” [Morto pela água] é o quarto dos cinco poemas de T.S. Eliot que formam The Waste Land, de 1922. A tradução que aí vai é de Ivan Junqueira, em  T.S. Eliot, Poesia, editora Nova Fronteira, 1981.


 


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