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Estados Unidos: tragédias humanas em meio à crise financeira

No dia 4 de outubro de 2008, no setor Porter Ranch de Los Angeles, Karthik Rajaram, assediado por problemas financeiros, matou a tiro a mulher, a sogra e os três filhos, antes de apontar a arma contra si próprio. Numa das suas duas notas de suicídio, R

A seqüela da atual crise das hipotecas subprime e da economia que lhe sucedeu afundou vidas no caos, em todo o país. Nos últimos dias, a Associated Press, a ABC News e outros, começaram a encarar a crescente quantidade de vítimas, especialmente suicídios, atribuídas à crise financeira. (Note-se que, há meses, Barbara Ehrenreich apresentou o tema em The Nation.)



O suicídio é, no entanto, só um dos tipos de ato extremo que a catástrofe financeira parece ter catalisado. Desde princípios do ano, histórias de resistência a despejos, autodefesa armada, incêndios premeditados, ferimentos auto infligidos, assassinatos, bem como suicídios, especialmente em reação à crise das execuções hipotecárias, multiplicaram-se nas notícias locais, ainda que a maioria dos relatórios tenha passado despercebida em escala nacional – como sucedeu com todas as pautas relacionadas com estes eventos.



Embora seja impossível saber que fatores, incluindo os profundamente pessoais, contribuíram para tais atos extremos, violentos ou outros, muitos parecem estar inegavelmente vinculados à crise atual. Não é de estranhar! As taxas de stress, depressões e suicídio aumentam invariavelmente em tempos de confusão econômica. Como Kathleen Hach, fundadora e diretora executiva do Stress Institute em Atlanta, disse a Stephanie Armour, da USA Today: “Os suicídios têm muito a ver com a economia.”



Agora, quando as previsões de uma recessão longa e profunda são um lugar-comum, não é demasiado cedo para começar a procurar essas pautas nas tragédias humanas que já brotam no meio das ruínas das finanças. Há que esperar tendências inquietantes nos próximos anos, especialmente quando centenas de milhares de veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão voltarem para casa, num cenário de desemprego e, em alguns casos, falta de habitação. Consideremos isto, portanto, como uma tentativa de procurar precoces signos característicos das seqüelas de tempos difíceis. Os resultados, neste caso, são do estudo das reportagens da imprensa local de toda a nação, algumas pequenas, mas potencialmente indicadoras de maiores tragédias nos Estados Unidos, e todas sugerem um modelo que provavelmente se agravará.



Despejos radicais



Em fevereiro, quando um oficial de justiça foi entregar uma ordem de despejo a um proprietário em Greeley, Colorado, viu que o homem tinha cortado as veias e jazia num banho de sangue. Levado à pressa para um hospital próximo, o homem sobreviveu, enquanto o tribunal tentava minimizar as razões econômicas do incidente, dizendo, de acordo com o Denver Post, que “não associava a tentativa de suicídio ao despejo, porque o homem sabia há uma semana que o iam despejar.”



Em março, Roland Gore, residente em Ocala, Florida, matou o seu cão e a sua mulher, incendiou a sua casa embargada, e depois matou-se.



Em abril, Robert McGuinness, agente privado de notificações processuais, chegou ao limiar da porta de Frank W. Conrad, em Marion County, Florida. De acordo com um artigo no jornal local Star Banner, Conrad, de 82 anos, primeiro mostrou-se “cordial”. No entanto, quando McGuinness apresentou a notificação da execução, Conrad enfureceu-se e entrou em casa. Voltou com uma pistola de calibre 38 e anunciou: “Tem dois segundos para sair da minha propriedade ou vai parar ao hospital”. Os agentes da autoridade de Marion County detiveram-no posteriormente.



No dia 3 de junho, agentes da FEMA (Agência federal para gestão de emergências) partiram para informar o residente de Nova Orleans, Eric Minshew, de que seria desalojado do seu reboque “Katrina.” Depois de serem ameaçados por Minshew, os funcionários da FEMA chamaram a polícia. Quando os polícias chegaram, Minshew supostamente também os ameaçou e “fechou-se na sua casa parcialmente destruída, junto ao seu reboque.” Uma equipe da SWAT foi chamada e atacou o homem com gás lacrimogêneo. Entrevistado pelo Times-Picayune, uma residente do lugar, Tiffany Flores, declarou: “Alguns membros da SWAT disseram ao meu marido que nunca tinham visto ninguém resistir a tanto gás lacrimogêneo.” A contenda durou horas, até que “uma equipe de ataque de agentes tácticos” invadiu a casa. Embora Minshew tenha aberto fogo, acabaram por encurralá-lo no andar superior. Quando – afirmaram – se negou a largar a arma, abateram-no a tiro.



Nesse mesmo dia, em Multnomah County, Oregon, agentes de justiça entregaram uma notificação de despejo a um inquilino desesperado. Segundo o agente Travis Guchberg, Oficial de Informação Pública do Tribunal de Multnomah County, o desalojado sacou rapidamente uma pistola do bolso e apontou-lhe à cabeça, antes de ser desarmado pelos agentes.



Tempos difíceis



Recentemente, segundo o Los Angeles Times, Rich Paul, vice-presidente da ValueOptions Inc., que trata de recaídas de saúde mental, disse que, durante o último ano, os telefonemas relacionados com stress, resultante de execuções hipotecárias ou de dificuldades financeiras, aumentaram 200% na Califórnia. Da mesma forma, o dr. Mason Turner, chefe de psiquiatria no Centro Médico Kaiser Permanente, de San Francisco, reportou que “em agosto quadruplicaram as admissões psiquiátricas no hospital, e cerca de 60% dos pacientes dizem que o stress financeiro contribuiu para os seus problemas.”



Na verdade, muitas vítimas relacionadas com a crise econômica nunca recebem tratamento. Em julho, o oficial de justiça de Sacramento County, Mark Habecker, disse ao Sacramento Bee que, por duas vezes, durante este ano, “proprietários de casas prestes a ser desalojados cometeram suicídio ao aproximar-se a data do despejo.” Noutro caso, disse que “outro polícia de Sacramento encontrou uma nota na casa embargada, que dizia onde encontrar o corpo do proprietário.” O Bee informou que tais casos “quando sucedem não recebem publicidade”, o que leva a perguntar quantos serão precisamente em toda a nação os suicídios similares que não foram mencionados.



Em julho, quando a polícia entregou uma ordem de despejo na casa de George e Bonnie Mangum, em Middleburg, Florida, o casal entrincheirou-se no interior. Finalmente, convenceram George Mangum a render-se, e detiveram-no. “Fez a única coisa que sabia fazer, proteger a sua família: tudo o que fez foi sentar-se do outro lado da porta e dizer: ‘Tenho uma espingarda, tenho uma espingarda” e por isso vai preso, porque ameaçou a polícia,” disse Bonnie. A filha do casal, Robin, acrescentou: “Esta é a minha casa, é a casa de todos nós, e não acho que seja justo. O meu pai foi um Boina Verde, está doente, como podem expulsá-lo?”



Dachas Dwayne Carter, residente de Pinechas Park, Florida, era um pai solteiro inválido, de 44 anos, que tinha perdido o trabalho, tinha-se endividado, e enfrentava o despejo. “Dizia sempre que precisava de ajuda – na parte financeira e para as crianças,” disse o vizinho, Kevin Luster, ao St. Petersburg Times. No dia 19 de julho, Carter aparentemente chamou a polícia para dizer que estava armado e perturbado. Quando os agentes chegaram, Carter disparou uma pistola e uma espingarda dentro do apartamento, antes de sair e apontar ambas aos agentes presentes. A polícia diz que lhe ordenaram que as largasse. Como não o fez, mataram-no com uma descarga de 10 balas.



Em 23 de julho, uns 90 minutos antes do leilão da sua casa embargada em Taunton, Massachusetts, Carlene Balderrama enviou um fax à sua empresa hipotecária, informando-a que “hoje, quando executarem a minha casa, estarei morta.” Continuava: “Espero que se mostrem mais compassivos com o meu marido e o meu filho do que foram comigo.” Em seguida, pegou numa espingarda de grande calibre e, segundo o Boston Globe, matou-se. Numa entrevista à Associated Press, o marido de Balderrama, John, disse: “Não fazia a menor idéia.” Era a sua mulher que tratava das finanças, e tinha interceptado as cartas da empresa hipotecária durante meses. “Escreveu na nota de suicídio que foi uma agonia para ela,” disse. Na nota, ela escreveu: “Recebam o dinheiro do seguro [de vida] e paguem a casa.”



No dia seguinte ao suicídio de Balderrama, a 80 Km de distância, em Worcester, Massachusetts, um homem de 64 anos, que já tinha sido desalojado, entrincheirou-se na sua antiga casa. Chamaram a polícia, que o encontrou supostamente preparado para incendiar quatro tanques de propano. “A sua intenção era queimar a casa com ele dentro,” declarou o sargento Christopher J. George ao Telegram & Gazette. À medida que o homem ficava “cada vez mais desesperado” com a chegada de um caminhão de mudanças, a polícia invadiu a casa e encontrou-o “apoiando uma faca de 30 cm contra o peito”, enquanto um pedaço de papel ardia perto do propano. O homem foi desarmado e o fogo extinto.



Nesse mesmo dia, em Visalia, Califórnia, um oficial de justiça de Tulare County foi entregar uma ordem de despejo a Melvin Nicks, de 50 anos. Nicks reagiu apunhalando o agente com uma faca e entrincheirando-se na casa durante várias horas. Acabou por render-se.



Sem saída



David e Sharron Hetzel, ambos de 56 anos, residentes em Bay City, Michigan, “perderam a casa por execução hipotecária por falta de pagamento. Mas não completaram os procedimentos necessários para declarar falência.” No dia 1 de agosto, de acordo com os relatórios policiais, David Hetzel enviou uma carta de desculpas aos membros da família. Mais tarde, nessa noite, segundo a polícia local, atacou a mulher que dormia, agredindo-a na cabeça com um taco de golfe e apunhalando-a repetidamente com uma faca de cozinha. Depois, incendiou a casa antes de meter-se na cama com a mulher, e suicidou-se com “uma única ferida fatal no torso.”



Em 12 de agosto, agentes do tribunal foram a Saddlebrook, Nova Jersey, a casa de Beatrice Brennan, de 88 anos, outra vítima da crise hipotecária, que tinha refinanciado a casa e se tinha atrasado nos pagamentos. Negando-se a contemplar passivamente o despejo da mãe, o seu filho John, de 60 anos, pegou numa pistola de calibre 22 para enfrentar os agentes da lei. Isso levou os funcionários da empresa de mudanças, que estavam à espera das 10 da manhã para que o prazo imposto pelo tribunal vencesse, a fugir rapidamente para o furgão. Brennan conseguiu atrasar brevemente o despejo antes de ser detido por uma equipa SWAT e da sua mãe perder a casa. “Este assunto parte-me o coração,” disse ao jornal local, The Record, um antigo vizinho, Vincent Carabecho, “Como pode ter acontecido tal coisa?”



Sylvia Sieferman, residente de Roseviche, Minnesota, estava muito stressada e atormentada por dificuldades financeiras. Preocupavam-na as suas duas filhas, de 11 anos. A 21 de Agosto, de acordo com relatórios policiais, Sieferman “apunhalou repetidamente as crianças e a si mesma”. “Chegou ao limite,” disse a sua amiga Carrie Micko ao Star Tribune. “Já não podia continuar a lutar… sentia que as filhas estavam a sofrer porque ela não era capaz de prover às suas necessidades.” Como acrescentou Micko: “Depois de uma série de contratempos financeiros, já não conseguiu vislumbrar uma saída. Estava em extrema angústia financeira, emocional e espiritual, e não queria decepcioná-las.”



Por qualquer meio necessário



O Boston Globe informou que, a 5 de setembro “foram detidos quatro manifestantes que tentavam impedir o despejo duma mulher de Roxbury… depois de acorrentar-se aos degraus da entrada das traseiras”. Enquanto 40 manifestantes protestavam na rua, funcionários do Bank of America ordenaram a Paula Taylor que abandonasse a casa. “É o nosso oitavo bloqueio e é a primeira vez que houve detenções,” disse Soledad Lawrence, organizadora do City Life, uma organização sem fins lucrativos que tenta deter a grande quantidade de execuções hipotecárias e de despejos nos subúrbios de Boston. “Podem tornar-se mais agressivos, que nós seremos mais agressivos,” acrescentou.



Em 25 de setembro, enquanto os políticos em Washington discutiam um pesado pacote de resgate para as instituições financeiras, agentes da polícia de Boston enfrentaram cerca de 40 ativistas do City Life, em frente à casa de Ana Esquivel, funcionária duma escola privada, e do seu marido Raúl, operário da construção civil, ambos com mais de 50 anos. O Globe informou que quatro manifestantes foram detidos quando os polícias forçavam a passagem para permitir que um serralheiro entrasse na casa a fim de expulsar os Esquivel. “Fomos destruídos pelo banco,” disse soluçando Ana Esquivel. “O banco é demasiado grande para nós.” Embora o bloqueio tenha fracassado no caso Esquivel, Steven Meacham, organizador do City Life, disse a um jornalista do Globe que “os protestos ajudaram a impedir uns nove despejos. Nos bloqueios bem sucedidos, os proprietários das casas conseguiram que os detentores das hipotecas lhes dessem mais tempo para negociar alternativas às execuções hipotecárias.”



Dois dias antes, agentes do tribunal de Los Angeles County chegaram à casa de Joanne Carter, de 53 anos, e do seu marido John, de 67 anos, em Monrovia, para entregar uma ordem de despejo. Joanne Carter recusou-se a aceitá-la. Segundo o Pasadena Star-News, Dick Singer, “porta-voz de Monrovia”, “disse aos agentes que tinha armas de fogo em casa e mostrou-lhes uma espingarda.” No dia seguinte, agentes da polícia de Monrovia apareceram na casa, após serem informados de que a mulher “pode ter ameaçado uma agência de compensação de trabalhadores.” O tenente da polícia Michael Lee disse que Carter afirmou que “se tentassem entrar, defenderia a sua casa por qualquer meio necessário.” Então, ela e o seu marido entrincheiraram-se no interior, após o que foi disparada uma espingarda. Chamaram as polícias de outros departamentos locais. Depois duma contenda que durou horas, os Carter renderam-se e foram detidos.



Nesse mesmo dia, no norte da Califórnia, Cliff Kendach, chefe de construção em Petaluma, matou-se com uma espingarda. Uma semana antes, Kendach tinha sido informado de que seria despedido. “Temia que perdêssemos a casa, e provavelmente vamos perdê-la, porque não consigo dar-me ao luxo de mantê-la,” disse a mulher Patricia, incapacitada por uma lesão nas costas, ao Press Democrat. “Estava extremamente alterado e amargurado pelo despejo.”



Em 3 de outubro, um dia antes do assassinato/suicídio de Karthik Rajaram em Los Angeles, Addie Polk, de 90 anos, foi levada ao extremo pela crise financeira. Com agentes da justiça à porta, evidentemente Polk tomou a única ação que achou que lhe restava para evitar o despejo da sua casa embargada: tentou matar-se. O vizinho, Robert Dichon, ao escutar fortes ruídos na casa, utilizou uma escada para entrar por uma janela do segundo andar. Encontrou Polk deitada na cama. “Moveu-se um pouco para mim, vi o sangue, e pensei: 'Oh não, a senhora Polk deve ter-se alvejado'”. Enquanto Polk estava no hospital recuperando-se de dois ferimentos de bala auto infligidos, Brian Faith, porta-voz da Fannie Mae, anunciou que a associação hipotecária tinha decidido perdoar a sua dívida e dar-lhe “diretamente” a casa.



No dia 6 de outubro, em Sevier County, Tennessee, agentes do tribunal, seguidos por polícias, chegaram para desalojar Jimmy e Pamela Ross da sua casa. Ouviram um tiro e entraram na casa para encontrar Pamela, de 57 anos, morta com uma ferida de bala auto infligida no peito. A vizinha, Ruth Blakey, disse à WVLT-TV: “Sei que realmente odiava a idéia de abandonar essa casa. Não queria abandonar a casa.”



Wanda Dunn disse aos vizinhos que preferia morrer a deixar a sua casa. No dia 13 de outubro, o dia em que ia ser desalojada, a mulher, de 53 anos, oriunda de Pasadena, Califórnia, aparentemente ateou fogo à casa “onde a sua família tinha vivido durante gerações” antes de disparar na cabeça. “Sabíamos que ia acontecer,” disse o vizinho Steve Brooks a Los Angeles Times. “Não foi culpa de ninguém em particular; foi culpa de todos.”



Subcontratação de suicídios



Em setembro, leitores da coluna “Explainer”, de Slate, fizeram a seguinte pergunta: se a crise financeira é tão calamitosa, “como é possível que não se fale de executivos a saltarem pelas janelas?” A escritora Nina Shen Rastogi respondeu o seguinte:



“Porque a situação atual não teve nem de longe um efeito tão devastador sobre as finanças pessoais dos executivos. A Grande Crise de 1929 – e, em menor medida, a crise de 1987 – levaram alguns a cometer suicídio. Mas, em quase todos esses casos, os mortos tinham sofrido importantes perdas com o colapso do mercado. Agora, devido em grande parte a essas experiências anteriores, os investidores tendem a ter carteiras muito mais diversificadas, para evitar que toda a sua fortuna desapareça com a queda das ações.”



Pode ser que seja isso. Até agora, pelo menos, os suicídios em Wall Street parecem ter sido subcontratados em sítios dos quais os seus executivos provavelmente nunca ouviram falar. Ali, nas proverbiais “ruas direitas” dos EUA, a catástrofe financeira de Wall Street começa a ser medida não só em dólares, mas em sangue.



Por ora, não há estatísticas reais dos numerosos atos extremos nascidos da crise financeira, mas seguramente outros assassinatos, suicídios, ferimentos auto infligidos, incêndios premeditados e autodefesa armada, passaram simplesmente despercebidos, em bairros duramente afetados economicamente, em cidades e em pequenas localidades por todos os Estados Unidos. Sem final à vista, nem no caso das execuções hipotecárias nem no caos econômico, pode ser que os norte-americanos tenham de se preparar para muitas mais vítimas no seu país. A não ser que medidas econômicas excepcionais, como a anulação de hipotecas e de dívidas, sejam implementadas, a quantidade de atos extremos e a estatística final das vítimas podem ser muito maiores do que alguém possa imaginar.



* Nick Turse é editor associado e director de investigação de Tomdispatch.com



Tradução reproduzida e adaptada do Diário.info