Contra o crítico da 'Folha': um elogio a Marcelo Camelo
Baixada a poeira, podemos rever com mais vagar um assunto que algumas semanas atrás retornou de modo conturbado à pauta do dia nos jornais e blogs no Brasil — a crítica musical. Tudo começou quando a Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo
Publicado 02/12/2008 19:49
Semanas depois, na mesma Folha, Thiago Ney desferia nova “sentença”, em outra direção, sobre dois compositores da nova geração, Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante, líderes da banda Los Hermanos. Não precisamos retomar todos os textos da polêmica, facilmente encontráveis na internet. É possível mesmo que não haja nenhuma relação entre as duas abordagens, e não se trata de compará-las aqui. Gostaria de tomar como eixo este último comentário, sobre o disco Sou, de Marcelo Camelo.
Disse o crítico da Folha: “Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante lançam discos quase simultaneamente, e é tentador comparar um com o outro, os dois principais compositores do Los Hermanos. Nós (sic), disco de Camelo, beira o insuportável. O que o Los Hermanos tinha de pior — a inútil idealização de uma época que não volta mais; a melancolia auto-indulgente; letras tão idílicas que fariam João Gilberto passar por contestador; arranjos que vão na direção do samba-canção e da tradição MPBística, mas que tateiam sem chegar a lugar nenhum”.
Na segunda parte da crítica, sobre o outro Hermano, lemos: “Já Amarante aparece com o Little Joy, projeto em que é acompanhado por Fabrizio Moretti, o baterista dos Strokes (…). O clima aqui é de total descontração, com músicas que caminham soltas e com naturalidade pelo reggae, pelo pop californiano dos anos 1960, com algumas paradas para retoques psicodélicos. With Strangers nos transporta para um fim de tarde em uma praia havaiana; No One's Better Sake é um neo-reggae lisérgico; e Brand New Start é como uma mistura de… Strokes com Los Hermanos. Muito boa”.
A segunda parte esclarece muito da primeira e talvez permita uma compreensão para além da mera tensão entre egos e liberdades de expressão. Trata-se, afinal, de crítica. Amarante, ao contrário do parceiro Camelo, fundiu a “inútil idealização de uma época que não volta mais” e a “melancolia auto-indulgente” com os “Strokes”; resultado da combinação: muito boa.
Essa “época que não volta mais” nem chega a ser definida nos comentários da Folha, mas podemos deduzir que se trata de um momento ligado ao passado mais ou menos recente da MPB, a década de 60 e 70, com sua crença na melancolia libertária da época. O crítico não está, de todo, errado. Quero na verdade ampliar uma idéia esboçada no seu texto: a da invenção da alegria.
Ao descartar o Sou a exigência parece ser a de uma necessária superação da tristeza, essa obrigatória invenção da alegria, perspectiva nem de longe tentada por Camelo. Em resumo, pareceu que o CD é ruim porque expressa dores pessoais de seu autor, inventadas ou não. Ou talvez porque faça isso utilizando a combinação mais brasileira e passadista de se compor, o formato voz e violão e, ainda por cima, somando-a com a tristeza clássica do samba. E tudo para “chegar a lugar nenhum”?
Amarante modernizou-se e, ao contrário de seu parceiro, chegou a algum lugar, “um fim de tarde em uma praia havaiana” com uma sensação de um som “neo-reggae lisérgico”. Muito bom, afirma o crítico. Não vou comentar aqui os critérios e o imediatismo incontornáveis do trabalho jornalístico. Não se trata de uma análise da forma, mas do conteúdo.
No mesmo dia que a Folha publicou sua crítica, Camelo estava em Recife lançando o disco para uma platéia que, como sempre, sabia cantar suas canções inéditas em uníssono. Algo muito próximo de um reavivamento da empatia popular e talvez cafona de um Roberto Carlos. Depois que os leitores da Folha pareceram ter repudiado com veemência o comentário publicado no jornal, desferiu uma semana depois o mesmo crítico no mesmo espaço: “E o fato de mais de meia dúzia de pessoas se motivarem a entoar as letras raquíticas de Camelo diz muito sobre o país em que vivemos”.
Uma exigência de alegria muito oportuna num mundo triste. E um bom diagnóstico do país. Mas talvez tenha faltado certa agudeza, ou o espaço exíguo do jornal talvez não permita grandes reflexões. O que fica parecendo é que a inquietação de um compositor como Marcelo Camelo não rende grande música, antes só melancolia auto-indulgente.
Tudo seria simples, mas o público, que esperou meses para ouvir as novas canções, contraria a lógica melancólica que o disco parece carregar. Ou não. A melancolia é a manifestação de perda de algo que nem se conhece. É sobre isso que gostaria de esboçar algumas reflexões.
O público de Marcelo Camelo talvez não tenha mesmo pra onde ir e queira idealizar o passado, ou não ache que expurgar a tristeza seja fingir que ela não existe — quanta alegria foi e é inventada na música comercial nos últimos anos; onde os abadás nos levaram? A canção popular no Brasil, mesmo em sua esfera “pop”, não se presta apenas para embalar festas descoladas, também é entoada em tentativas sempre renovadas de superação da nossa dor e incerteza.
Camelo talvez ainda não tenha completado 30 anos e já parece um velho autor, porque escolheu a canção. É uma escolha que pode ser cara, porque o fato de ainda compor canções não significa que elas não tenham sido superadas. Mas quando um público jovem canta junto “E lá vai deus sem sequer saber de nós/ saibamos pois/ estamos sós” (Passeando), talvez esteja extravasando uma certa desesperança que Camelo não teme.
Que um crítico não ache importante a função ritual da música a essa altura do campeonato talvez seja normal, mas que esse mesmo crítico não entenda que algumas esferas da canção brasileira ultrapassaram há muitas décadas a função da mera diversão isso pode ser discutido. Não hesitaria em afirmar que Marcelo Camelo é um cancionista tradicional, no melhor sentido da palavra.
Ao invés de descartar a idealização de uma época, talvez fosse bem mais rico tentar apontar as razões pelas quais jovens de 20 anos ou menos têm empatia por um momento do Brasil que nem sequer viveram.
* Henry Burnett é doutor em Filosofia pela Unicamp e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo