Desafio da luta indígena está na geração jovem

Sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições estão assegurados a partir do direito à diferença cultural”. O “recado” sobre os direitos indígenas é dado pela Constituição Federal, que completa 20 anos, respeitando as diretrizes da Declara

Desde quando era criança, e já ouvia as histórias contadas pelos avós e participava dos rituais com a família, a índia Pitaguary Francilene da Costa Silva, de Pacatuba, pinta o rosto de vermelho, preto e outras cores, põe seu cocar na cabeça e vai dançar o toré, a dança sagrada dos índios. Mas a tinta, derivada da semente de jenipapo, passa dias, até semanas, para largar do corpo. “Nada não, depois da celebração eu saio na rua mesmo assim”. “Hoje não, mas antigamente…” Ela sofria da zombaria dos colegas da escola, do professor, até mesmo o diretor chegou a dizer “menina, não existe índio não”, lembra ela até hoje.


 


“Para ser índio não precisa estar vestido de índio daquele jeito que todo mundo conhece, o nosso índio tá no sangue”, afirma Maria de Lourdes da Conceição Alves, a Cacique Pequena, dos índios Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz. A Convenção Internacional 169, da Organização Internacional do Trabalho, diz que somente os próprios indígenas têm autoridade para se dizerem indígenas ou não.


 


“Eu cresci sabendo que sou índia, meu avô contou que a avó dele foi levada pelos caçadores e judiada pelos brancos, depois de ‘amansada’, foi casada com um alemão, então a minha família tem mistura de índio com alemão”, conta Francilene, que é filha do Pajé Barbosa, líder espiritual dos Pitaguary. Ela conta que ainda é “arriscado” sair na rua trajando as vestimentas tradicionais. “O que mais me preocupa é que o índio não tem liberdade de viver a sua própria cultura”.


 


A destacada presença de jovens no recente encontro dos povos indígenas animou a também jovem índia tapuia, Luana Gomes. Em sua comunidade, ainda são poucos os jovens engajados na luta pelas terras. “Tem muito índio que, por medo, não se diz índio, mas dos que estão na luta dos povos nenhum desistiu”, afirma Maria Amélia, integrante da Associação Missão Tremembé.


 


A tradição e os costumes indígenas, que não ficam parados no tempo, mas sempre adaptados pelas gerações sucessoras, não serão mais transmitidos somente pela oralidade ou pela preservação do artesanato. O audiovisual chegou à aldeia. E os índios Tapeba Clailton Silva, 15 anos, e João Neto, 14, filmam os principais momentos da Assembléia Estadual dos Povos Indígenas, encerrada neste sábado em Poranga. João registra o discurso do pai, Dourado Tapeba, vice-coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), quando este reclama que os Índios do Norte são mais atendidos que os do Nordeste, pelo Governo Federal. O curso audiovisual dos índios Tapeba, de Caucaia, é realizado em parceria com a ONG Encine.


 


A autenticidade étnica indígena não está no estereótipo que se criou da figura do índio. Os índios do século XXI vestem-se como os não-índios, usam das mesmas tecnologias, moram nas mesmas zonas urbanas, pintam o cabelo ou vestem a roupa “da moda” como qualquer não índio. “Mas a gente não deixa de ser índio”, resume Naara do Nascimento, de 18 anos, da etnia Tapeba de Caucaia, que se diz cada vez mais índia, pois nasceu com o reinício dos movimentos pela terra. “Eu sou filha da luta”.


 


De geração a geração


 


A luta indígena é de todas as etnias e de todos os gêneros. Uma das principais lideranças femininas do movimento dos povos indígenas, a índia Jenipapo-Kanindé, Cacique Pequena — ninguém a chama de Maria de Lourdes da Conceição Alves, 64 anos, é a primeira cacique mulher do Brasil. Com olhar brando e voz compassada, lidera 94 famílias de sua etnia no entorno da Lagoa da Encantada, em Aquiraz. Pela reivindicação dos direitos indígenas, viaja o Brasil, dá conselho aos mais novos, compõe canções para os rituais sagrados e já pré-selecionou três de seus 16 filhos para que se pronuncie aquele que, quando ela morrer, assumirá o posto de cacique.


 


“Os mais jovens são mais engajados que os mais velhos, porque já cresceram sabendo da nossa história, os mais velhos têm uns acomodados, porque já foram muito perseguidos, a gente até entende”, afirma a cacique, que desde 1995 está no posto de líder dos Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz.


 


Conquistas e desafios


 


Foi com a luta de Cacique Pequena que muitas conquistas chegaram à comunidade: escola indígena, casa de farinha, luz elétrica, cozinha industrial, posto de saúde, refeitório. “Pra nós ficar feliz só falta mesmo a demarcação. Mas eu sei que quando eu ‘fechar os olhos’, a minha missão terei cumprido na terra, e ensinei os meninos a levar o barco”.


 


Cacique Pequena é categórica ao afirmar que “para nós ficar mesmo feliz, só falta a demarcação das nossas terras, a ´desintrusão´ e a indenização para os posseiros”. A líder indígena conclui com versos sobre a luta dos povos indígenas e sua ligação desses com a Mãe Terra:


 


“O índio é natureza, o índio é água viva 


O índio ele existe, ele é de resistir


Na mata trabalha o índio, para ele tirar seu pão


na santa terra trabalha, pra ele tirar seu pão


Os índios estando junto, por sua terra lutar,


sua terra demarcada e também homologada


sua terra demarcada e também desintrusada


sua terra demarcada e também registrada


Não podemos aceitar, esse tipo destruidor


que veio pra destruir a nossa santa Mãe Terra.


A nossa santa Mãe Terra, ela é grande tesouro


é nela que nós convive, é dela que nós precisa


É dela que nós precisa, sem ela não somos nada


somo que nem uns peixinhos, nadando fora da água…”.