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No inferno com Pasolini: para entender o bom cinema político

Cinema como Heresia é o título de um livro sobre o italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) escrito por Naomi Greene, professora da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, e infelizmente ainda inédito no Brasil. É também uma ótima maneira

O relançamento de Os Contos de Canterbury (1972) no Cinesesc, em São Paulo, possibilita às novas gerações uma rara oportunidade de tomar contato com sua obra na tela grande (e cópia em bom estado).


 


Longa-metragem intermediário de sua “trilogia da vida” sobre contos medievais, aberta por Decameron (1971) e encerrada por As Mil e Uma Noites (1973), Canterbury é livremente inspirado em Os Contos da Cantuária, do inglês Geoffrey Chaucer (entre 1340 e 1345-1400). O próprio Pasolini, com pinta de quem se divertiu muito, faz o papel do escritor — recurso de inserção do narrador que havia usado também em outros filmes, como Pocilga e Medeia — A Feiticeira do Amor, ambos de 1969.


 


Entre as histórias narradas por Pasolini em Canterbury, a que mais gerou reações negativas à época do lançamento, lembra Naomi Greene, foi aquela em que se faz uma visita ao inferno. “Os epítetos variaram de ‘mau gosto’ e ‘narcisismo intelectual’ até ‘pessimismo agudo’, ‘crueldade profana’ e ‘instinto homossexual ingovernável’.


 


Forçado a reconhecer a ressaca perturbadora do filme, Pasolini afirmou que o segundo longa deveria ser visto como um ‘hiato’ na trilogia, que, ele admitia, refletia um momento de profunda infelicidade de sua parte. (…) E, para sugerir que ele sozinho não era responsável pela melancolia do filme, observou que o próprio Chaucer era mais sombrio do que Bocaccio (de quem havia adaptado Decameron).”


 


“Como Pasolini não pode aceitar a realidade ‘popular’ sob o neocapitalismo, que transformou povos em massas e revelou que o subproletariado não desejava mais do que ascender ao ‘status’ da pequena burguesia, busca na literatura popular do passado, na Idade Média e no Terceiro Mundo, valores não contaminados pela civilização”, afirma o crítico Luiz Nazario, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, sobre as características da obra de Pasolini no período da trilogia, em Orfeu na Sociedade Industrial, volume dedicado a ele pela saudosa coleção Encanto Radical, da Brasiliense.


 


“Pasolini lembra que (os filmes da trilogia) são filmes políticos na medida em que mostram a realidade autêntica, contraposta à irrealidade que o cinema consumístico e a televisão sujeitaram o público. Nascem em reação a um cinema facilmente político, que vulgariza e simplifica os problemas, servindo sobretudo para apaziguar a má consciência da burguesia.”


 


Nazario é autor também de Todos os Corpos de Pasolini (Ed. Perspectiva) e tradutor de Pier Paolo Pasolini — As Últimas Palavras do Herege — Entrevistas com Jean Duflot (Brasiliense), do qual segue um trecho profético:


 



(Jean Duflot) Há muito tempo que você se sente, segundo seus próprios termos, destinado ao linchamento.


 


(Pasolini) Há vinte anos a imprensa italiana, em primeiro lugar a imprensa escrita, contribuiu para fazer de minha pessoa um contratipo moral, um réprobo. Não há dúvida de que nesta condenação da opinião pública entra a homossexualidade que me censuraram a vida inteira, como se se tratasse de uma marca de ignomínia particularmente emblemática, no caso que represento: o selo mesmo de uma abominação humana que me marcaria e condenaria tudo o que sou — minha sensibilidade, minha imaginação, meu trabalho, a totalidade de minhas emoções, de meus sentimentos e de meus atos — a ser apenas uma camuflagem deste pecado fundamental, de um pecado e de uma danação.


 


Pasolini foi brutalmente assassinado em uma praia de Ostia, em 2 de novembro de 1975, sete meses depois de a corte constitucional italiana abrir um dossiê sobre Os Contos de Canterbury. Em 9 de novembro, a comissão de censura proibiu a exibição de seu último longa, Saló, ou os Cento e Vinte Dias de Sodoma, só liberado em 18 de junho de 1977.