Violência quadruplica em sete anos
Na semana em que o corpo de uma adolescente de 15 anos assassinada brutalmente foi encontrado, chama atenção a estatística elaborada pela Delegacia Especializada em Defesa da Criança e do Adolescente (DCA) com relação à violência praticada contra crianças
Publicado 04/05/2009 09:55 | Editado 04/03/2020 17:08
No período de 2001 a 2008, as ocorrências saltaram de 276 para 1.293, o que representa um aumento de quase cinco vezes mais no intervalo de sete anos. Ano passado foram 1.293 ocorrências registradas na delegacia. Até março de 2009 já foram registradas 295 ocorrências. Comparado ao mesmo período de 2008, isso representa um acréscimo de aproximadamente 5%.
Estão na estatística itens como maus tratos, estupro, atentado violento ao pudor, aliciamento, exploração sexual, desaparecimento, corrupção de menores e outros. De acordo com o psicólogo Carlos Roberto Moraes, a violência – como um todo – “não é dada por uma ordem econômica, não é dada por ordem biológica, mas é uma condição humana que, se nós construímos, podemos desconstruir”.
Trabalhando há mais de vinte anos com questões relacionadas à violência contra criança e adolescente, o psicólogo vê a violência como uma “democracia perversa” pelo fato de fazer distinção de classe econômica ou social.
O promotor de Justiça Sasha Alves do Amaral, do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Defesa da Infância e da Juventude do Rio Grande do Norte (Coaopij/RN), analisou que a “questão da violência passa por uma série de fatores como a “situação de vulnerabilidade da criança”. “Na dinâmica familiar, a criança é um ser que não tem voz e não se dá a devida atenção”, afirmou.
Ele vê que aspectos como questões estruturais e a cultura de sigilo da sociedade dificultam os trabalhos de combate à violência. “Quebrar isso é uma dificuldade”, comentou.
Para o promotor, também é preciso a qualificação dos profissionais que cuidam da criança e do adolescente. “É preciso saber como abordar essa situação de violência”, disse. Sasha Alves ressalta a “necessidade de se especializar atendimento em varas e promotorias”, principalmente no interior do Rio Grande do Norte.
De acordo com ele, o Ministério Público “fiscaliza e promove denúncias para conhecimento do judiciário” quanto às denúncias envolvendo crianças e adolescentes.
Tanto o promotor quanto o psicólogo se mostraram perplexos com o caso da estudante Maria Luiza Bezerra Fernandes, de 15 anos. “Foi uma coisa lamentável esse fato”, comentou Sasha Alves.
Já o psicólogo vê que “o processo educativo é de fundamental importância” para a criança e o adolescente. “É preciso esclarecer valores, impor limites. Isso não significa bater”, frisou.
Nas ocorrências registradas em 2008 e este ano, chama a atenção que a maioria das agressões por maus tratos é praticada pela mãe. Já o estupro e o atentado violento ao pudor tem em seu agente agressor o pai, padrasto e, principalmente, alguma pessoa conhecida da vítima.
NATAL TEVE 248 HOMICÍDIOS EM 4 MESES
O que fazer para acabar com o sofrimento de uma mãe que teve um filho morto a tiros e, o pior, aparentemente sem nenhum motivo? ‘Nada!’ Essa é a resposta da dona de casa Severina Soares de Andrade (58), que no dia sete de janeiro deste ano teve o filho assassinado no Conjunto Vale Dourado, na zona Norte de Natal. Gilberto Paulo da Costa é mais um na estatística do Instituto Técnico Científico de Perícia de Natal (ITEP), que de janeiro a abril deste ano registrou 248 homicídios.
Comparando com os dados dos últimos dois anos é que se percebe o aumento do número de homicídios. Em 2007 – de janeiro a abril foram 325 homicídios, em 2008, foram 594 e até o terceiro mês de 2009, são 248 mortes. Para a polícia fica a responsabilidade de apurar e desvendar os casos, para as famílias apenas a dor da perda.
“É uma coisa muito triste. Passo várias noites acordada chorando a morte do meu filho. O que mais me dói é que ele morreu inocente. Aqui todo mundo sabe que ele era uma pessoa de bem, não tinha envolvimento com crime e nem com drogas. Ele morreu de graça, só com 25 anos”, lamenta dona Severina que ainda não superou o trauma.
E é esse o perfil da maioria das vítimas. Homens, entre 17 e 29 anos e que moram na periferia da cidade. Um outro dado, mas não confirmado oficialmente pela polícia, é que essas pessoas estão ligadas ao mundo do crime e das drogas. E que a morte seria uma espécie de acerto de contas entre o devedor e o cobrador. Foi o que aconteceu com o ex-gari, Cleiton Nascimento dos Santos, morto a tiros no último dia 24, também no Vale Dourado.
“Ele era viciado em crack, mas estava há sete meses sem usar nada. Ele parou porque tinha sido ameaçado de morte. Como estava devendo, a mãe dele pagou a dívida e desde então ele não usava nada e nem devia dinheiro a ninguém. Mataram por maldade o meu sobrinho”, conta emocionada a tia da vítima, Jaqueline do Nascimento.
A maioria dos homicídios vem acontecendo na capital, dos 117 homicídios registrados entre janeiro e março deste ano, 113 foram em Natal e os outros quatro nos municípios de Macaíba, Ielmo Marinho, São Gonçalo do Amarante e Nova Cruz.
A zona Norte da cidade lidera o ranking das mortes. Entre os bairros mais violentos da região estão Vale Dourado, Pajuçara, Igapó e Jardim Progresso. Em segundo lugar está a região Oeste com Felipe Camarão, Quintas e Cidade Nova.
A região Sul foi a que apresentou o menor número de homicídios. Um outro dado que chama bastante atenção é com relação ao instrumento utilizado nas mortes. A maioria é praticada com arma de fogo. Os outros instrumentos utilizados foram armas brancas (faca, punhal) e pedaços de pau. “Essa informação é muito importante. Ela mostra a facilidade com que as pessoas estão adquirindo esse tipo de arma. Parece que não existe uma fiscalização. Pelo contrário, há uma facilidade”, diz o coordenador de direitos e minorias, Marcos Dionísio.
DELEGADO APONTA ENVOLVIMENTO DE POLICIAIS
O delegado geral da Polícia Civil, Elias Nobre, aponta o envolvimento dos policiais nos homicídios como uma das maiores dificuldades em desvendar a autoria desses crimes.
“Ninguém nunca vai imaginar que um agente da lei seja o criminoso, mas, infelizmente, temos observado que muitos policiais estão envolvidos nesses crimes com características de execução, o que torna a investigação mais difícil”, diz Elias Nobre.
Para se ter noção do envolvimento dos policiais com os homicídios, dos poucos casos desvendados, quatro foram de autoria de policiais e ex-policial. De acordo com um relatório da Ouvidoria da Polícia, de 2001 até 2008, foram registrados 98 casos de homicídios com participação de policiais. Nos últimos quatro anos houve um aumento de 70% em relação aos quatro anteriores.
Além dos homicídios, também foram registrados contra os policiais civis e militares denúncias de violência física, roubo, prevaricação entre outros. Totalizando 241 denúncias em 2008 contra 230 em 2007, um aumento de 5% do número de denúncias.
“Eles são criminosos travestidos de policiais, mas a população pode ficar tranquila porque estamos trabalhando com o pessoal do setor de inteligência, da Delegacia de Homicídios, Divisão de Crime Organizado, com acompanhamento do Ministério Público para descobrir quem são essas pessoas”, fala o delegado. O titular da Degepol aponta a questão financeira como um dos motivos para que os policiais se envolvam nos crimes. Muitos chegam a extorquir as pessoas envolvidas com o tráfico ou narcotráfico em troca dos seus serviços. Tanto que, na maioria dos homicídios com características de execução, a vítima tem algum tipo de envolvimento com o crime. “Existem aqueles que morrem por engano, inocente, mas são poucos os casos”, afirma.
Questionado sobre a possível existência de um grupo de extermínio, Elias Nobre disse que “não pode confirmar essa informação. No final das investigações a gente vai saber se existe ou não um, dois, três grupos de extermínios, sejam eles formados por policiais ou não, mas por enquanto não podemos confirmar nada ”.
Outro fator que dificulta a investigação e, conseqüentemente, a resolução dos crimes, a deficiência do efetivo da polícia civil do Rio Grande do Norte. Em todo o Estado são apenas 144 delegados, 1.109 policiais civis e 142 agentes escrivães. Número bem abaixo do previsto pela Secretaria de Segurança.
“Segundo a previsão feita há pelo menos dez anos, o ideal seriam 250 delegados, 1.677 policiais e 496 agentes. Mas esses números também precisam ser revistos, já que a previsão foi feita há algum tempo. Acredito que esse concurso vai melhorar a nossa situação, mas a solução definitiva será a retirada dos presos da delegacias”, explica o delegado.
Segundo ele, quando um policial está nas delegacias vigiando os presos, ele deixa de investigar os crimes. “Mas há quatro meses nós estamos investigando de forma aprofundada os homicídios que acontecem em Natal e Grande Natal, e assim que tivermos os resultados dos casos, vamos apresentá-los à sociedade”, afirma Elias Nobre.
FAMÍLIAS VIVEM COM MEDO E AMEAÇADAS
Além da dor de perder um parente, as famílias têm que conviver com medo de represálias dos assassinos. Prova disso é que muitas mudam de endereço ou não querem falar com a imprensa.
Durante a última semana, a reportagem procurou cinco famílias que tiveram parentes executados, mas encontrou apenas uma. As outras mudaram de endereço ou estão com imóvel para venda com medo de que os assassinos pudessem voltar ao local.
Um exemplo foi o assassinato do jovem Hudson Medeiros (19) morto a tiros no dia 31 de março, na rua Riversul, no Conjunto Gramoré. O local do crime: a casa da namorada da vítima, que hoje está abandonada. Apenas lixo e um carro, sem placa na garagem.
De acordo com vizinhos, que não quiseram ser identificados, a família teria se mudado há cerca de duas semanas. Mas o motivo da mudança ninguém soube explicar. “A gente conhecia eles, mas não tinha muito contato. Depois do crime é que não tivemos mesmo. Dizem que eles se mudaram com medo”, conta uma moradora do local.
Uma outro fato que provoca revolta nas famílias é a demora em desvendar esse tipo de crime. Muitos passam anos sem que seja descoberto o autor do homicídio. “Mataram meu filho em janeiro e até hoje ninguém descobriu quem foi. A polícia nunca veio aqui me dar satisfação. Meu outro filho está revoltado”, lamenta Severina Soares.
ENTREVISTA COM MARCOS DIONÍSIO, COORDENADOR DE DIREITOS HUMANOS E DEFESA DAS MINORIAS
Como o senhor avalia essa onda de homicídios que toma conta da cidade?
Marcos Dionísio: Esses homicídios vêm ocorrendo em razão do histórico abandono da periferia da cidade, uma região carente de equipamentos públicos, principalmente voltados para a juventude que termina sendo vítima, mas também autora, de boa parte dessas mortes. Uma juventude que não tem acesso a uma boa escola, a atividades culturais, recreativas, esportivas e de lazer, fica sem perspectiva de vida e termina por encarar o envolvimento com as drogas ou outro tipo de criminalidade como a única forma de adquirir algum respeito , alguma dignidade social. Um outro aspecto que contribui é que quase nenhum crime deste está tendo a autoria identificada e os autores punidos na forma da lei. Esse complemento da impunidade termina sendo um hall de fatores que converge para a existência desses homicídios.
Qual o perfil dessas vítimas?
Essas vítimas têm como característica principal ser jovem de até 29 anos, mas muito concentrada na faixa entre 17 e 25 anos. São negros ou pardos e moradores da periferia e estão localizada principalmente nos bairros de Lagoa Azul, Nossa Senhora da Apresentação, Potengi, Igapó, Vale Dourado, Rocas, Mãe Luiza, Felipe Camarão, Planalto e nos municípios próximo a Natal como São Gonçalo, Macaíba, Parnamirim e Ceará-Mirim. São basicamente pessoas do sexo masculino, muito embora tenha crescido o número de assassinato de mulheres.
A que o senhor atribui esses homicídios? As drogas?
Normalmente quando essas mortes acontecem, são imputadas a vinculação com o tráfico de drogas. Eu acho isso perigoso porque quando generaliza, alguém pode se valer dessa generalização para acertar as contas com um desafeto, dando características de se acerto de drogas porque a vítima talvez estivesse envolvida com droga. Quando você joga na vala comum é como se esses crimes não fossem ser apurados, é como se a sociedade não achasse importante a apuração do esclarecimento pelo fato de estar envolvido com drogas. É interessante observar que qualquer ser humano precisa de cuidados e principalmente, a juventude precisa de cuidado, carinho, conforto, investimento e tolerância.
Se a maioria dos homicídios estiver relacionada às drogas, também teremos um grande problema, não é mesmo?
Eu também faço esse questionamento. Será mesmo que todos esses crimes têm envolvimento com tráfico? Porque se isso for verdade o problema tenderá a se agravar de uma maneira que não teremos retorno. Natal ganharia as características de cidades como Maceió, Vitória, onde o controle da violência foi totalmente perdido. Eu especulo e lamento que o poder público e a sociedade, não tenham dado a devida atenção ao alerta feito por profissionais renomados do nosso Estado.
Fonte: Tribuna do Norte – Repórteres: David Freire e Carla França – 03/05/2009