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Satyros 20 anos: saga que fincou o teatro alternativo em SP

Como o grupo Os Satyros escandalizou São Paulo, tomou conta da praça Roosevelt, centro da Capital, e chegou a 65 montagens em boa companhia. Ao completar 20 anos, em junho, com quatro peças em cartaz, os Satyros confirmam uma vocação artística que se e

O centro da cidade, naquele ponto ao menos, ganhou luz. Atraiu artistas e público para uma vida boêmia e para um cenário ainda em franca ascensão. Nos fins de semana, suas calçadas ficam tomadas de gente. Atores, diretores e dramaturgos bebem cerveja dispostos a explanar sobre seus trabalhos. Bem ao alcance do público.


 


E toda essa gente vai poder ocupar novos frontes. Uma escola de teatro idealizada pelos Satyros e financiada pelo Estado deve começar a funcionar provisoriamente no Brás em outubro -e daqui a dois anos deve ser tranferida para um prédio na praça Roosevelt.


 


O projeto, ainda em fase de estudo, está orçado em R$ 6 milhões por ano, fora o valor da reforma do prédio. A escola deve atender a mil alunos e abarca outros grupos e profissionais do teatro paulista, como os Parlapatões, o Dramáticas em Cena e o cenógrafo J.C. Serroni.


 


Durante as duas décadas de atividade, a companhia calcificou um núcleo de artistas fixos. Rodolfo García Vázquez, 47, Silvanah Santos, 46, e Ivam Cabral, 42, que permanecem desde a primeira formação dos Satyros, viram 1.200 atores passarem pelas 65 montagens que realizaram. Uma rotatividade que é responsável também pelos altos e baixos na qualidade dos elencos.


 


Hoje, há pelo menos outros 40 intérpretes em cartaz em peças da companhia. Mas o chamado “núcleo duro dos Satyros” lista Gisa Gutervil, 30, Alberto Guzik, 64, Germano Pereira, 31, Fábio Penna, 32, Cléo de Paris, 37, e a transexual cubana Phedra D. Córdoba, 70, diva da turma.


 


Exceto por Gisa, estão todos no elenco da peça “Liz”. O texto foi escrito por um autor cubano, Reinaldo Montero, e fala sobre a relação de poder entre figuras políticas e o cenário das artes, tomando como mote a história da rainha Elizabeth 1ª.


 


A montagem é vista como um sopro de renovação artística, tanto pelo figurino lisérgico como pela interpretação comportada. Não se utiliza da agressividade sexual cênica que marcou a história dos Satyros, principalmente nos primeiros tempos, com textos do escritor libertino Marquês de Sade (1740-1814). Mas outros três espetáculos em cartaz -“Os 120 Dias de Sodoma”, “A Filosofia na Alcova” e “Justine”- remetem ao frisson desse passado, no início dos anos 1990.


 


Xixi em cena


 


Os Satyros estrearam em 1989 com uma peça infantil, “Arlequim”, mas dispostos a fazer barulho. E fizeram. “Sades ou Noite com os Professores Imorais” (1990 -atualmente em cartaz com o nome “A Filosofia na Alcova”), baseado em texto de Sade, ganhou destaque por sua ousadia cênica. A estreia foi em um teatro jogado às traças na Bela Vista. A plateia não dispunha de cadeiras, apenas de uma lona para se acomodar no chão.


 


Quem faz o relato é o jornalista Álvaro Machado, à época crítico de teatro e editor do Acontece, da Folha: “Lembro de uma atriz interessante, uma loira que fazia xixi no palco. As cenas de sexo e nudez geravam escândalo”, conta. “Por causa disso, foi pop. Era bem forte, mas tinha ainda um propósito que não era só o escândalo. E funcionava bem.”


 


A estreia em Curitiba foi seguida de um silêncio constrangedor. “Ninguém aplaudiu. Quem puxou os aplausos foi Ivam [Cabral, ator] lá de trás da plateia”, relata Silvanah, uma das intérpretes.


 


Ainda engatinhando nesse início de carreira, a companhia, com cerca de 25 profissionais, faz outras estreias, entre elas “Saló, Salomé”. Mas, em 1992, resolve deixar o Brasil em razão da total falta de incentivo à cultura que marcou o governo do ex-presidente Fernando Collor.


 


A trupe inteira parte para Portugal. Encontra um teatro antigo abandonado em Lisboa e ali cria uma nova sede. A principal fonte de renda são as oficinas de interpretação. Mas houve casos até de atores vendendo cachorro-quente nas ruas.


 


Em 1995, os Satyros voltam a trabalhar no Brasil, com sede em Curitiba, mantendo ainda o teatro em Lisboa. Em 2000, retornam definitivamente para São Paulo. “A gente tinha vivido um momento legal aqui. Muito jovens, experimentamos coisas bacanas. Fomos embora meio a contragosto, por causa de grana. Mas nunca me convenci muito. Queria voltar”, afirma Ivam.


 


Começa então a busca por um palco paulistano. Junto com o catarinense Germano Pereira, que acabara de entrar para a turma, Ivam passa alguns dias visitando imóveis do centro de São Paulo, até encontrar o endereço da praça Roosevelt. O chão não tinha acabamento, as paredes não estavam pintadas. Havia uma fossa aberta onde hoje é a sala de apresentação do Espaço Satyros 1. “Eu disse: ‘É aqui, não é Ivam?’”, recorda-se Germano.


 


Os próprios atores colocaram a mão na massa para recuperar o imóvel. Pintaram as paredes e as fachadas, removeram camadas de pó, deixaram o banheiro apresentável. No dia da estreia de “Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte”, do espanhol Ramón del Valle-Inclán, o piso só terminou de ser pintado às 17h. “A gente ficava rezando para secar antes de os convidados chegarem”, relata Germano.


 


Mal sabia ele que os momentos mais difíceis na praça Roosevelt estavam por vir. A chegada do grupo àquele degradado pedaço do centro de São Paulo despertou hostilidade de quem habitava o local: traficantes, michês e ladrões. Um bar vizinho havia sido fechado depois de uma chacina. “Mas a gente sabia que o projeto provocaria modificações, por conta de nossas experiências em Lisboa e no Bexiga.


 


Tínhamos certeza de que o teatro modificaria o entorno”, apostou Rodolfo. “Para ajudar, colocamos mesinhas na calçada e abrimos um bar”, completa Ivam. À noite, o problema se agravava, pois as luzes da praça eram desligadas clandestinamente. O grupo chamava a Eletropaulo pedindo o religamento da energia, mas no dia seguinte a escuridão se instalava novamente. “Começamos a ser ameaçados. Telefonavam para o nosso escritório. Diziam que ia haver derramamento de sangue.”


 


O grupo venceu os boicotes pelo cansaço. Não arredou pé. Os Satyros continuaram suas estreias. Adaptaram “De Profundis”, de Oscar Wilde. Encenaram “Antígona”, de Sófocles. Montaram a peça de uma dramaturga alemã, Dea Loher, sobre os moradores da própria praça Roosevelt. Um dia, simplesmente, as luzes deixaram de ser apagadas.


 


Cuba lança


 


Na reestreia de “A Filosofia na Alcova”, em 2003, passa a fazer parte da turma uma figura lendária, Phedra D. Córdoba. “Numa apresentação de ‘Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte’, eu a vi chorando na plateia. Fiquei completamente comovido”, conta Ivam. “Eu chorava pensando: ‘Esse é o teatro que eu quero fazer’.”, explica Phedra.


 


A atriz septuagenária dos Satyros, hoje em cartaz em duas peças do grupo, não aceita ser nomeada diva. Quando a chamam de estrela, tem a resposta na ponta da língua. “As estrelas estão no céu. Algumas se transformam em meteoros e caem.” Como qualquer outra diva, ela dá trabalho extra ao diretor Rodolfo, com quem briga constantemente por desobedecer as marcações nos ensaios.


 


Quando Rodolfo diz para Phedra não fazer tal coisa, ela ignora e faz do jeito dela. “Outro dia ele começou a gritar: ‘Phedra, você é uma cruz que eu tenho que carregar’.”, gargalha a atriz.


 


No ano passado, ela voltou à terra natal, Cuba, para encenar “Liz”. Fazia mais de 50 anos que havia partido para virar mulher em São Paulo. Por aqui, trabalhou em teatros e na TV, fazendo performances. “Estava morrendo de medo de chegar a Cuba. Não sabia como seria recebida. Mas, no aeroporto, só faltaram jogar tapetes vermelhos.”


 


Outras histórias sobre sua origem, os tempos “glamourosos” no programa do Bolinha e também sobre o gato Primo Bianco, que Phedra encontrou ainda filhote na praça Roosevelt, foram contadas na mesa do bar, no Espaço dos Satyros 1. Estava presente também a atriz Cléo de Paris, gaúcha de Barão de Cotegipe, cidade de 7.000 habitantes.


 


Cléo é outra peça fundamental no grupo. Linda e dona de uma interpretação sem sobressaltos. Passou a fazer parte da companhia em 2004, depois do “mico” de promover uma marca de maionese no teatro TBC. “Eu ficava passando maionese num pãozinho para as pessoas experimentarem.”


 


Católica não praticante, mas que reza todas as noites, a atriz fala das inúmeras dificuldades para fazer as cenas de nudez e sexo de “A Filosofia na Alcova”. “A primeira vez em que vi o espetáculo, bem antes de entrar para o grupo, eu pensei: ‘Nunca vou ser capaz de fazer isso’.” Mas foi. Por dois anos. “Levei um tempo sentindo um certo desconforto por causa da nudez, da exposição em algumas cenas. Depois, essa questão foi superada e vieram outras, referentes ao texto e à personagem.”


 


Para muitos do grupo, o teatro é um contínuo exercício de superação. “Não é uma vez que o teatro exige coragem. É sempre”, diz Alberto Guzik, crítico dos mais importantes que São Paulo já teve, que deixou sua carreira em jornais de lado para virar ator na companhia.


 


Hoje, Guzik está em cartaz em “Liz” e em “Monólogo da Velha Apresentadora”, espetáculo trash que ele faz de jeans e peruca loira, sobre uma apresentadora de programa de TV. Quem lhe ensinou a boa receita de como lavar uma peruca foi Phedra D. Córdoba. “Use um bom detergente e um pouco de amaciante”, disse a diva.


 


Fã no Orkut


 


A intimidade é dividida por todos os integrantes, o tempo inteiro. Eles passam feriados juntos, viajam, comemoram aniversários. No camarim do Sesc Paulista, há uma semana, minutos antes da apresentação de “Liz”, iam vestindo seus figurinos. O ambiente foi se enchendo de cores, enquanto o elenco conversava sobre uma fã misteriosa.


 


Chama-se Sol, uma moça que vem mandando mensagens para todo o grupo, via Orkut. Como ela nunca havia aparecido, até aquele sábado, todos desconfiavam de que Ivam havia forjado a história. Mas Sol apareceu, ao final da apresentação.


 


É gente buscando a intimidade que o grupo cria com o público. O diretor do Satyros atribui muito dessa proximidade a um projeto que nasceu pensando na recuperação de uma praça. Para Rodolfo, vive-se uma era em que o importante não é discursar, e sim agir. Fechando o papo regado à cerveja, ele resume: “A gente nunca quis mudar o mundo. Mas nós colocamos uma mesinha na calçada.”


 


Fonte: Folha de S.Paulo (24 de maio).