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Carlos Odas: o deputado, o cartaz e os ossos da democracia

Em crônica intitulada “Ossos da Democracia”, o ex-membro da Executiva Nacional do PT (1999/2001), Carlos Odas resgata a conquista da democracia no Brasil e condena o cartaz “Desaparecidos do Araguaia: Quem gosta de osso é cachorro”, exposto na porta do ga

Ossos da Democracia


 


Por Carlos Odas*


 


Era 1982 e eu não sabia o que aquela gente fazia nas ruas. Nas favelas e cortiços pouco se sabia, e menos ainda os meninos de nove anos de idade, por mais curiosos que fossem. E era curioso, senão bonito, um comício pelas Diretas. Não, não estive em nenhum deles puxado pelo braço por minha mãe ou meu pai, nem por ninguém. Como disse, lá de onde eu via aquela movimentação, não se entendia muito bem o que estava acontecendo. Algo estava mudando, isso era certo, mas o tempo todo tudo muda. E podia ser que, ainda assim, nada mudasse. Ou podia ser que fosse, justamente, para não mudar nada.


 


Muito mais tarde apenas é que se poderiam vislumbrar os matizes de um espectro político complexo, em especial no campo da esquerda, não naqueles palanques. Os mesmos que iriam, pouco mais de uma década depois, colocar o país à venda e tratar como criminosa qualquer manifestação organizada pelo chamado “andar de baixo” estavam neles; mas, se ali se aboletavam até entusiastas de primeira hora do movimento golpista que, em nome de Deus, da família e da liberdade, cassou às famílias das favelas e cortiços a liberdade e a possibilidade de sonhar com uma vida melhor. A primeira fresta nesse véu veio pouco depois, quando numa aula a professora disse “pularemos essa lição; nosso livro contém muitos erros neste capítulo”. E o título da lição, num livro didático de uma matéria a que chamavam estudos sociais era “O Movimento Democrático de 31 de março”. Não que com isso pudessem os meninos deduzir muito sobre o que estava acontecendo no país. A professora passou para a lição seguinte sem explicar quais eram, exatamente, os erros do livro. Ademais, ninguém perguntou. E eu só fui entender muito tempo depois a lição daquele dia, que fora condensada numa única frase: “contém muitos erros este capítulo”. Assim como fui entender, também muito depois, que “nós” também estávamos naqueles palanques.


 


E assim ela, a democracia, foi se desvendando antes como causa – e uma que não era propriamente minha, já que tão poucas causas conscientes se podiam considerar ter antes de uma certa idade que eu não sei bem qual é. Sei é que aquela não era a idade da compreensão profunda de questões como essa – que da política haviam alijado a vontade do povo e, desse modo, desenharam o país que primeiramente conheci: corrupto até o fundo da alma; subserviente até a exposição do que, em geral, se protege; incapaz de corresponder às expectativas mais básicas de seu povo; um país tomado material e culturalmente por uma elite asinina, vergonhosamente inculta, ávida sempre por meter nas algibeiras como seu patrimônio todo espaço e equipamento públicos; um Brasil impossível de ser amado.


 


No desvendamento que a participação política, na juventude, trouxe sobre a questão da democracia no Brasil, um calendário imaginário ligava, imediatamente, o abril de 1964 ao maio de 1968 e este ao novembro de 1979. Durante essa longa noite, baniu-se homens e mulheres, uns dessa terra, outros desta vida, em nome da construção do projeto que deu naquele país que eu conheci primeiro. Mas o que é a democracia, numa perspectiva histórica, para esse país, senão interstícios breves entre uma ditadura e outra?


 


Nova lição que aprendi sobre o tema se deu quando um dia parei para ouvir Clara Scharf, que perguntava a uma repórter: “mas onde é que estavam, nos raros momentos de normalidade democrática no país, esses que eram acusados de querer sovietizá-lo, esses acusados de autoritários?” E ela própria clareava: “estavam nas tribunas dos parlamentos defendendo legitimamente a sua visão de mundo e de sociedade e convidando o povo a engajar-se na luta política como meio de conquistar as resoluções de seus problemas”.


 


A reflexão me ocorreu justamente por termos atravessado um outro abril e um novo maio sem que muito se dissesse o quanto custou para esse país os golpes das suas elites contra a democracia. Ou não se disse o suficiente para que o compreendesse quem não traz as marcas na memória das retinas, exatamente, já que na alma todos nós as trazemos – e há já uma geração inteira a quem o Brasil se recusa a contar a verdade sobre tais episódios. Ao contrário, um veículo da mídia chamada “grande” alimentou a infâmia ao categorizar o truculento regime de exceção brasileiro como “ditabranda”. E porque nesta semana veiculou-se que um deputado, de diminuta expressão política e figura jamais citada como exemplo de seriedade por pessoa que possa ser chamada de séria, ultrapassou os limites do razoável em sua defesa de verdugos sugerindo, num cartaz exposto em seu gabinete, que são cachorros os que defendem a busca dos “desaparecidos” da Guerrilha do Araguaia. “Desaparecidos do Araguaia: quem procura osso é cachorro”, diz o execrável cartaz. Vergonhoso. Na verdade, os comportamentos evolutivos podem ser descritos de outra forma: os cachorros enterram ossos de modo que ninguém, além deles próprios, saiba onde estão; os vermes trabalham em favor do esquecimento. A luz dificulta o trabalho de ambos.


 


De modo algum eu apostaria, hoje, que o fantasma do golpismo ainda ronda as Forças Armadas – o deputado diz falar em nome delas. Não creio, sinceramente. O que preocupa, hoje – ou deveria preocupar, é fazer justamente o encontro entre as instituições, como as Forças Armadas, e a democracia, esta elevada à categoria de valor fundamental da vida política do país. Porque se pode ser autoritário sem ser golpista. E porque qualquer projeto consistente de desenvolvimento nacional passa pela ampliação e consolidação da democracia em todos os aspectos: a livre participação política, a livre circulação de idéias e propostas, igualdade e facilidade no acesso à Justiça e aos bens públicos e, necessariamente, distribuição justa da renda. A verdade histórica e a reparação à sociedade pelos crimes contra a Humanidade, imprescritíveis, é parte imprescindível deste arcabouço – para usar expressão pertinente, já que os ossos a serem buscados e levados à luz são os da história recente da nação. Por isso, independente de opção partidária, a comparação indecorosa feita por aquele senhor ofende, macula, fere a história da luta pela democracia no Brasil.


 


* Carlos Odas foi Secretário Nacional de Juventude e membro da Executiva Nacional do PT (1999/2001.)