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Desafiando tabus sexuais com o auxílio do Alcorão

Lootah não é uma liberal pelos padrões ocidentais. Um dos temas do livro dela é o perigo do sexo anal e da homossexualidade de forma geral, não por causa da Aids, mas sim porque essas práticas são proibidas pelo Alcorão. Mas a maneira aberta como ela a

Wedad Lootah (foto) não dá a impressão de ser uma ativista sexual. Muçulmana e nativa dos Emirados Árabes Unidos, ela usa um niqab (véu muçulmano que cobre inteiramente o rosto e a cabeça das mulheres, com a exceção dos olhos) preto longo – que só deixa os seus olhos castanhos à mostra – e acrescenta à conversa citações do Alcorão.


 


Mas ela é a autora daquilo que para o Oriente Médio é um livro novo e surpreendentemente franco de conselhos eróticos, no qual ela elogia o orgasmo feminino, aborda tópicos que são tabus, como a homossexualidade, e pede aos árabes que superem as tradições retrógradas que limitam a sua felicidade sexual.



O livro, “Top Secret: Sexual Guidance for Married Couples” (“Ultra Secreto: Orientação Sexual para Casados”), é cheio de casos vívidos registrados durante os oito anos em que Lootah atua como conselheira conjugal no mais importante tribunal de Dubai. O livro tornou-se um escândalo instantâneo após ter sido publicado em árabe nos Emirados Árabes Unidos em janeiro último, provocando elogios de alguns liberais e ameaças de morte dos conservadores, que afirmam que ela cometeu blasfêmia ou coisas piores.



Lootah, uma mulher de 45 anos de idade, de temperamento forte e comunicativa, é parte de um grupo pequeno mas crescente de árabes que exercem pressões por mais abertura e educação sexual. Ao contrário do que ocorre quanto às gerações anteriores de mulheres contestadoras que muitas vezes criticaram o sistema em uma linguagem ocidental de emancipação feminina, não é fácil rotular Lootah e outras críticas de forasteiras, porque elas tendem a ser muçulmanas religiosas que baseiam a sua mensagem no Alcorão.



Lootah, por exemplo, estudou jurisprudência muçulmana na faculdade, e não psicologia ocidental, e os seus livros são repletos de referências religiosas. Ela submeteu o texto ao Mufti de Dubai antes de publicá-lo, e ele concedeu a sua aprovação (embora tivesse advertido que a população árabe pode não estar pronta para tal livro, especialmente escrito por uma mulher).



“Muita gente disse que eu sou louca, que eu estou me desviando do islamismo, que eu deveria ser assassinada”, diz Lootah. “Até mesmo a minha família pergunta por que eu tenho que falar sobre isso. E eu respondo: 'Esses problemas ocorrem todos os dias e não podem ser ignorados. Esta é a realidade na qual estamos vivendo'”.



Lootah não é uma liberal pelos padrões ocidentais. Um dos temas do livro dela é o perigo do sexo anal e da homossexualidade de forma geral, não por causa da Aids, mas sim porque essas práticas são proibidas pelo Alcorão. Mas a maneira aberta como ela aborda a questão constituíram-se em si em um choque para muitos habitantes desta região. Na Arábia Saudita e outros países onde os sexos são rigorosamente separados, muitos homens têm as suas primeiras experiências sexuais com outros homens, o que afeta a atitude deles em relação ao sexo no casamento, diz Lootah.



“Muitos homens que praticaram sexo anal com outros homens antes do casamento desejam fazer a mesma coisa com as mulheres. Eles não querem nada mais”, afirma Lootah. “Este é um dos motivos pelos quais necessitamos de educação sexual nas nossas escolas”.



Lootah é também estridente quanto à importância do prazer sexual feminino, e à desigualdade existente em muitos casamentos árabes a esse respeito. Um dos motivos que a fizeram escrever o livro foi uma cliente de 52 anos que tinha netos, mas que jamais tivera prazer sexual com o marido”.



“Finalmente, ela descobriu o orgasmo!”, diz Lootah. “Imagine, ela passou esse tempo todo sem conhecê-lo”.



Um outro tema importante do livro é a infidelidade. A grande quantidade de mulheres estrangeiras em Dubai e a facilidade da comunicação por e-mail ou mensagens de texto enviadas por telefones celulares tornou o sexo extra-conjugal mais fácil (e também mais fácil de ser descoberto), diz Lootah, o que contribuiu para que o índice de divórcios subisse para 30%.



A modernização nas últimas décadas do Golfo Pérsico, alimentada pelo petróleo, também abalou algumas estruturas sociais árabes. Ao mesmo tempo, a ascensão do islamismo político minou as autoridades tradicionais, fazendo com que muitos árabes ficassem confusos quanto às questões morais.



“Antigamente as pessoas viviam em um único lugar, e a comunidade funcionava como uma grande família”, explica Lootah. “Agora, os indivíduos espalharam-se por diferentes áreas, tudo se misturou e as tradições mudaram”.



Um resultado disso é o Departamento de Orientação Familiar do Tribunal de Dubai, que foi inaugurado em 2001, tendo Lootah como a primeira conselheira (atualmente há seis outros, todos homens). O governo do Kuait conta com um departamento similar de serviços sociais desde a década de noventa, e outros países do Golfo Pérsico estão seguindo este exemplo. Psicólogos particulares e conselheiros conjugais também existem por todo o mundo árabe, embora ainda sejam raros.



“Estamos fazendo bastante progresso”, diz Heba Kotb, que dirige uma clínica de terapia sexual de orientação muçulmana no Cairo, Egito, e coordenou um programa de entrevistas em uma estação de TV por satélite sobre questões sexuais e conjugais de 2006 a 2008. “Dez anos atrás, não podíamos sequer mencionar o assunto, e agora as pessoas estão acostumando-se a ouvi-lo”.



Mas ainda há obstáculos formidáveis. Em uma região na qual os “assassinatos de honra” de mulheres que mantêm relações sexuais fora do casamento continuam sendo bastante comuns, a educação sexual é vista por muitos como um portal para o pecado. A mutilação genital de mulheres ainda ocorre no Egito, embora atualmente a prática seja ilegal. Escritores e artistas árabes começaram a abordar essas questões.



Trinta anos atrás, o cineasta egípcio Saleh Abu Seif redigiu um roteiro chamado “Escola Sexual”, mas o departamento de censura ainda não o havia aprovado quando ele morreu em 1996. O filho dele finalmente teve permissão para dirigir uma versão modificada do filme, sobre um casal sexualmente insatisfeito que procura um terapeuta. O filme foi lançado em 2002 com o título “O Avestruz e o Pavão”.



Lootah diz que não esperava tornar-se parte desse debate. Lootah, filha de um vendedor de água analfabeto de Dubai, e que tem oito irmãos, casou-se cedo e deu aulas para a escola primária durante anos. Mais tarde, ela trabalhou para uma organização filantrópica muçulmana, onde os seus esforços para conceder aos presos educação e dias de reunião familiar fizeram com que ganhasse dois prêmios por serviços prestados ao governo. Quando Dubai criou o Departamento de Orientação Familiar no Tribunal, o governante da cidade, xeque Muhammed bin Rashid al-Maktoum, pediu a ela que fosse a primeira conselheira do órgão.



O departamento foi criado em parte para que fosse seguida a orientação muçulmana de convocar os casais que desejam se divorciar a fim de tentar primeiro resolver os problemas entre os dois. Na prática, ele transformou-se em um local de terapia para todos os fins para aquelas pessoas que tinham problemas conjugais.



Lootah lida com cerca de sete casos por dia, envolvendo indivíduos e casais. A maioria consiste de nativos dos Emirados Árabes Unidos, mas no mundo multicultural de Dubai – onde cerca de 90% da população é estrangeira -, ela também já orientou europeus e asiáticos. Da mesma forma que no tribunal criminal, que fica na porta ao lado, um tradutor também participa de cada sessão, e às vezes até oferece conselhos para a superação de barreiras culturais.



“Algumas pessoa ficam surpresas por eu ser capaz de trabalhar com as pessoas quando só os meus olhos estão expostos”, diz Lootah, com uma risada. “Talvez seja por causa da maneira como movimento as mãos. Mas posso lhe assegurar que as pessoas vêm até aqui e que elas conversam comigo muito francamente”.



Ela narra, falando velozmente, os casos que presencia na prática profissional: o oficial militar cuja mulher teve um caso extraconjugal porque ele passa muito tempo longe de casa; a mulher que acreditava que o sexo oral é contrário ao islamismo (Lootah frisa que não é); a mulher que descobriu o marido vestido de mulher e frequentando bares de homossexuais. Ela parece querer demonstrar que há um universo de confusão sexual que se beneficiaria de uma discussão aberta.



Lootah observa que a publicação do livro foi uma escolha difícil. O pai dela a apoiou, mas outros membros da família muitas vezes questionaram o fato de ela se expor tanto. Quando o livro foi lançado, um homem ligou para o seu telefone de trabalho e ameaçou matá-la. Outras ameaças surgiram na Internet.



Ela minimiza esses episódios, afirmando que recusou uma oferta de proteção feita pelo governo. Além do mais, acrescenta ela, educar a população é algo que vale a pena.



“Poucos dias atrás, uma mulher entrou e me perguntou se haveria problema em beijar o corpo todo de um homem”, conta Lootah. “Eu respondi a ela: 'Leia o meu livro'”.



Tradução: UOL