PARENTESCO, POLÍTICA E RELIGIÃO NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA SAPÊ DO NORTE do ES

Apresento aqui um relato sobre as mobilizações políticas do território quilombola Sapê do Norte, no Estado do Espírito Santo. Parto da noção ampliada do termo quilombo englobando as diversas mobilizações contemporâneas de comunidades negras rurais.

Tal alargamento do conceito quilombo se processa a partir da promulgação da constituição brasileira de 1988, em particular do Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórios, que reconhece o direito étnico e estabelece como dever do Estado à regulamentação desse direito e a titulação das terras das comunidades dos remanescentes dos quilombos. A partir do marco constitucional, o movimento negro ligado às comunidades rurais e setores da intelectualidade brasileira, promovem a ressemantização do conceito de quilombo, antes entendido apenas como movimentos de resistência à escravidão e, portanto, coisa do passado brasileiro, o quilombo histórico (Arruti 2002, Leite, 2004).


 


O termo Sapê do Norte faz referência a uma espécie vegetal (Imperata brasiliensis) que já foi abundante naquelas terras. Provavelmente trata-se, segundo a denominação de geógrafos e botânicos, de campos naturais ou de áreas de expansão desta espécie provocada pela modalidade local de uso do solo.


 


Leite (2004) ao concluir a descrição da área da comunidade de Casca no Rio Grande do Sul afirma que o topônimo “Casca” é entendido como uma referência auto-identitária, e é dele que a comunidade de herdeiros retira seu nome ”casqueiros”.


 


Da mesma forma, no norte do Espírito Santo o topônimo “Sapê do Norte” é usado como referência auto-identitária, revelando como a terra, e sua vegetação antes predominante, é para os grupos quilombolas algo além uma vegetação, atuando sim, como elemento da constituição simbólica de sua identidade e como definidor de suas fronteiras étnicas (Barth, 1969). Podemos afirmar, então, que o modo de autodenominação das comunidades quilombolas do norte do Espírito Santo se insere em um processo de afirmação, presente em todo o Brasil, marcado por novas estratégias discursivas dos movimentos sociais no campo onde o termo camponês, denominação comumente utilizada nos embates políticos e processos de afirmação, é substituído por denominações cotidianas utilizadas pelos grupos rurais para se autodefinirem, politizando-se assim toda a realidade local vivida por estes sujeitos que se tornam sujeitos da ação. (Almeida, 2004).


 


No Território Quilombola Sapê do Norte tal processo de afirmação passa pela reorganização de narrativas sobre a resistência à escravidão. Estas narrativas, e seus personagens, tais como Regro Rugério, Viriato Cancão de Fogo, Constância de Angola, são alocadas dentro das histórias particulares das famílias que se apresentam como lideranças coletivas das comunidades. Estas lideranças, baseadas no parentesco, afirmam sua ascendência com os personagens históricos da “época do cativeiro” revivificados nas práticas políticas da luta para a reconquista de seu território.


 


O vínculo de parentesco imaginado entre as famílias atuais e tais heróis é realizado como parte de um processo de afirmação de práticas religiosas de matriz africana, por exemplo, a mesa de Santa Bárbara, que aos poucos deixam o lugar social imposto a tais práticas, que eram negadas e escondidas devido às fortes perseguições por parte do Estado e da Igreja, e passam a ser apresentadas como elementos diacríticos na relação “eles”/“nós”, promovendo uma nova substantivação da realidade local.


 


A partir de meados do século XX, via incentivos do Estado, as terras tradicionalmente ocupadas por estas comunidades, com suas práticas de uso e acesso aos recursos naturais estabelecidas de modo coletivo (ALMEIDA, 2004), passam à condição de bens no mercado de terras e são incorporadas ao ciclo de expansão mundial da produção de celulose (década de 70) visando abastecer o consumo cada vez maior de papel, atendendo também a primeira expansão do consumo nacional de etanol (década de 80).


 


A afirmação dos grupos de agricultores negros como quilombolas do Sapê do Norte, traz para o campo político, tanto no nível municipal, estadual como nacional, uma realidade local sabidamente conflituosa e que até então estava marcada por um tratamento político–teórico vinculado a noção de quilombo histórico. Alguns escritos locais (Aguiar, 1995, 2001, 2005 e Nardoto 1999) apresentam relatos de práticas culturais e passagens históricas dos negros desta região dando destaque a alguns personagens do processo de resistência da população negra ao regime escravagista. Porém, o tratamento que estes autores dão aos dados coletados anula o vínculo dos personagens históricos com o processo de reafirmação enquanto quilombos contemporâneos, vivido pelas comunidades negras. Expressões como História dos Vencidos, Últimos Zumbis, Legítimos Quilombolas, entre outras, sempre utilizadas em referência aos “antigos”, atuam de modo a cindir a realidade em partes não comunicáveis, desqualificando os vínculos de ascendência dos membros das comunidades contemporâneas, e delas próprias, com os movimentos de resistência da época do “cativeiro”.


 


A estratégia dos atores políticos quilombolas em sua luta de reconquista do território Sapê do Norte passa pela afirmação destes vínculos, de categorias locais de denominação (Sapê do Norte) e de práticas religiosas afro-brasileiras, assim como pelo estabelecimento de redes de relacionamento político mais amplas do que as de um passado próximo, quando a mediação das questões locais era realizada totalmente por uma elite herdeira da Casa Grande que se mantinha na posição de atores políticos (visando à manutenção de status econômico) realizando o apaziguamento dos conflitos em torno dos recursos naturais existentes entre os agricultores negros e as grandes empresas do agronegócio.


 


A afirmação étnica enquanto comunidades quilombolas faz emergir conflitos latentes da sociedade brasileira ameaçando instituições seculares que servem de base para a manutenção das desigualdades econômicas, políticas, e raciais, ao colocar no centro do debate o modo de apropriação dos recursos naturais, o racismo ambiental, a manutenção das estruturas de poder regionais e o mercado de terras.


 


Referências:
AGUIAR, Maciel. ''Os Últimos Zumbiz.'' (2001).
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. ''Terras Tradicionalmente Ocupadas.'' Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais 6 N.01 (2004): 9-32.
ARRUTI, José Mauricio P. A. ''Quilombo: Esboço De Genealogia. In: Etnias Federais: O Processo De Identificação De ‘Remanescentes’ Indígenas E Quilombolas No Baixo São-Francisco. 2002. Tese De Doutorado”.Programa de pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, (2002).
BARTH, Frederick. ''Los Grupos Etnicos E Sus Fronteiras.'' In Cholonautas biblioteca virtual de Ciências Sociales, www.cholonautas.edu.pe, 1962.
LEITE, Ilka Boaventura. ''O Legado Do Testamento: A Comunidade De Casca Em Perícia.'' (2004).
NARDOTO, Eliezer Ortolani. História de São Mateus. São Mateus: EDAL, 1999.
HERCULANO, Selene e PACHECO, Tânia (Orgs.). “Racismo Ambiental”, do I Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental Rio de Janeiro: Fase, 2006.


 


 


*Vitor Hugo Simon Machado é Cientista Social e Professor, Pós-Graduando em Ciências Sociais na UFES. Email: vitorhugosimon@yahoo.com.br



 





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