Danielle Noronha: onde está o público do cinema brasileiro?

É fim de tarde de domingo, no ano de 1960. Áurea Oliva se prepara para ir ao cinema com a sua irmã e umas amigas. Localizado a poucas quadras de sua casa, Áurea caminha para assistir a matine. Não é preciso gastar muito para comprar o ingresso e a pipoca. O filme escolhido é brasileiro, uma chanchada com Oscarito. Essa era uma prática que se repetia na vida de Áurea assim como de muitos brasileiros até os anos 80. Hoje, a moça não vai ao cinema e, se fosse, não iria assistir aos filmes nacionais.

Por Danielle Noronha*, na Caros Amigos

Muitas coisas aconteceram na cultura e na economia do país desde este período até os dias de hoje. O cinema brasileiro, que já não estava bem no final da década de 80, teve seu fim decretado logo no início dos anos 90. Assim que assumiu a presidência da república, Fernando Collor de Mello acabou com a Embrafilme, principal órgão de sustentação do cinema nacional, além do Concine (Conselho Nacional do Cinema) e da Fundação do Cinema Brasileiro. Era o que faltava para a produção nacional parar e se afastar de vez do público. Deste período até 1994 foram realizadas apenas 32 longas-metragens.

A retomada das produções brasileiras aconteceu logo após o impeachment do então presidente. Em 1993, com criação das leis de incentivo, que possibilitam mecanismos de captação de recursos a partir da renúncia fiscal, o número de produções aumentou e passamos de 13 filmes lançados neste ano para 86 longas-metragens, em 2007. Também tivemos crescimento no número de novos (e bons) diretores, novas produtoras e participações de longas brasileiros em festivais internacionais.

Mas, infelizmente, a real situação do cinema nacional não é favorável. O sucesso da produção de Daniel Filho, Se Eu Fosse Você 2, mostra como há muito o que fazer pelo cinema brasileiro. O filme já é a maior bilheteria desde a retomada da indústria do cinema, com mais de 6 milhões de espectadores, passando à frente de 2 Filhos de Francisco, de 2005, que atingiu cerca de 5.320 milhões de espectadores.

Sem dúvida, devemos comemorar o sucesso de Se Eu Fosse Você 2, mas temos que nos preocupar com o fato de apenas um filme conseguiu atingir metade de público que foi ao cinema assistir às produções nacionais no ano passado, cerca de 10 milhões de pessoas.

São diversos problemas enfrentados pelo cinema nacional. Há por exemplo, dificuldades para angariar recursos, a centralização da produção no eixo Rio-São Paulo, a dificuldade na distribuição e exibição dos filmes.

Entre todos os problemas encontrados há um fator determinante: a retomada do público. São poucos os nossos filmes que ultrapassam a marca de 500 mil expectadores, o que para um país de mais de 180 milhões de habitantes são números irrisórios.

Segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine), cerca de 18 longas-metragens brasileiros conseguiram ultrapassar a marca de 1% da população em público pagante desde a ‘retomada do cinema’.

Em 2008, tivemos praticamente a mesma ocupação do mercado interno de 2007, que deve chegar a cerca de 9%, mesmo com lançamentos de filmes esperados como a co-produção Ensaio Sobre a Cegueira (Fernando Meirelles), o filme Linha de Passe (Walter Salles) e a volta de Zé do Caixão em Encarnação do Demônio (José Mojica Marins). O melhor ano foi em 2003, quando atingimos 22% do mercado com produções como Caranduiru, Os Normais e Lisbela e o Prisioneiro.

A realidade é que há muito mais filmes do que telas e pessoas dispostas a ir vê-los. Paulo Nascimento, diretor da Filme B, empresa especializada em mercado cinematográfico no Brasil, acredita que: “Não adianta produção em números, precisa de uma programação em relação a filmes infantis, juvenis. E os cineastas precisam querer atingir o grande público, ser generosos, comunicativos, abrir seu filme para testes”.

Até o momento, em 2009, tivemos três filmes brasileiros entre as 10 maiores bilheterias do país. Além do Se Eu Fosse Você, o segundo mais visto, temos no ranking A Mulher Invisível, de Cláudio Torres, em oitavo, com cerca de 1 milhão e 900 mil espectadores e na nona posição, o longa de José Alvarenga Jr, Divã, com 1 milhão e 800 mil.

Diversão elitista

Um dos motivos que levam os filmes brasileiros a não dialogarem com o público é elitização do cinema. Assim como no início do cinema, quando ele era visto como uma diversão feita para o público popular, historicamente, as produções brasileiras sempre foram ligadas às classes C e D. No início, com temas mais populares como a comédia no tempo da chanchada, a identificação era maior com o público que se reconhece na tela e reconhece a cultura brasileira.

Para o diretor Carlos Reichenbach (Dois Córregos, Falsa Loura) no período entre as décadas de 60 a 80 o público era diferente. “Hoje não temos mais o cinema popular devido a vários aspectos, a começar pelo número de salas de exibição. Não temos mais o “cinema de rua” e a baixa freqüência do público, principalmente o público C e D, que formavam o grande público do cinema nas décadas passadas. Outro fator determinante é o preço dos ingressos, que até o começo da década de 80 custavam o equivalente a uma passagem de ônibus”, conta o diretor.

São apenas 2120 salas para os mais de 188 milhões de brasileiros, em apenas 8% dos municípios. Hoje os cinemas de bairro praticamente não existem. Com a vinda dos multiplex no sistema norte-americano, confinados em shopping-center e com ingressos a preços muito altos, que segundo os exibidores é resultado da grande venda de ingressos meia-entrada, o público se afasta cada vez mais do cinema, que passa a ser uma diversão paras as classes A e B.

O valor de uma ida ao cinema em um shopping-center é muito alto. Uma família com quatro pessoas pode gastar mais de R$ 100 numa tarde ou noite. A comodidade do DVD, da TV a cabo, dos novos meios como a internet, e também a pirataria são outros fatores que também ajudam o afastamento do público. Segundo Manoel Rangel, diretor presidente da Ancine, o principal desafio é a expansão e diversificação da economia audiovisual brasileira e o aumento da circulação de conteúdos nacionais em todos os segmentos: “É preciso incluir as classes C e D no consumo de cinema e audiovisual”, diz.

Distribuição e exibição

Um dos principais problemas da cadeia cinematográfica são distribuição e exibição. O domínio dos filmes ‘hollywoodianos’ nas salas de cinema é um fator importante para inibir a entrada de filmes nacionais às salas de cinema. O sucesso de um filme brasileiro depende também de quais filmes irão estrear no mesmo dia. Enquanto muitas produções nacionais estréiam com uma, duas ou três cópias, os filmes ‘blockbusters’ chegam a ter mais de 100, além de todo investimento em publicidade que esses longas possuem, verba indisponível para a maioria dos filmes brasileiros.

Leonardo Mendes, da Pandora Filmes, diz que “A principal dificuldade é concorrer com blockbusters. Para fazer a programação de filmes "alternativos" é muito complicado conseguir espaço para um filme estrear nas salas de cinema e depois fica ainda mais complicado mantê-lo em exibição, pois a permanência do filme em cartaz depende de seus resultados de renda e público”.

Como a quantidade de produções nacionais realizadas nos dias de hoje é muito grande, os diretores encontram dificuldade para entrar no mercado. Mas o domínio do cinema hollywoodiano, algo que acontece em todo mundo, não deve ser um fator determinante. Mesmo com a entrada de grandes produções americanas, a França, por exemplo, conquistou grande participação do mercado interno. Com uma população de aproximadamente 63 milhões de habitantes, três vezes menos que o Brasil, teve em 2006, um público de 188 milhões, sendo 44% para as produções nacionais.

Leis de Incentivo

Outro ponto que merece atenção são as atuais leis de incentivo à cultura, que precisam ser revistas. Sabemos que sem a intervenção do governo não há como fazer cinema. No entanto, a maneira como os projetos são avaliados precisa ser repensada. Essa também é a opinião da produtora Sara Silveira: “O Brasil não tem como se sustentar sozinho, precisa de uma política junto ao estado. E, se não tiver incentivo a cultura, se esvai”.

A leis de incentivo funcionaram muito bem no momento em que o cinema precisava de um auxílio para retornar às produções. Hoje é notável que é preciso um investimento em políticas de exibição, distribuição e educação do público.

O diretor Fernando Meirelles (Ensaio Sobre a Cegueira, Cidade de Deus) acredita que quanto mais os filmes brasileiros dialogarem com o público, maior será sua importância cultural e participação no mercado. “O fato dos filmes serem 100% financiados pelo estado foi importante num momento mas a longo prazo gera uma mentalidade de que o produtor ou diretor não devem nenhuma satisfação ao público (ou contribuinte) Isso é uma distorção. Se um filme usa financiamento público, deve ser visto como um bem público, precisa haver uma contrapartida social”, diz o diretor.

Para se ter um cinematografia consistente, é necessário haver filmes de todos os gêneros e estilos, do mais comercial – filmes preocupados em se comunicar com o público – ao mais autoral – filmes que levam e mostram a nossa cultura. No entanto, cada projeto deve ser avaliado separadamente e o diretor e o produtor precisam ser cobrados por resultados que irão estabelecer os perfis de seus novos projetos.

Após 17 anos da criação da Lei Rouanet, o Ministério da Cultura propôs a reforma na lei. As mudanças vão atingir não apenas o cinema, mas todos os mecanismos culturais. Dentre as propostas, a nova lei vai descentralizar os projetos do eixo Rio-São Paulo, diminuir o valor dos ingressos dos eventos culturais, incluindo o cinema, alterar a porcentagem da renúncia fiscal das empresas que financiam projetos culturais e criar o Vale-Cultura no valor de R$ 50 por mês.

A cada ano podemos notar uma evolução natural das produções, sempre com melhora no roteiro e na dramaturgia. No entanto, é necessário haver uma preocupação com a qualidade e com os temas que o público quer ver. Os cineastas devem se unir e lutar por melhores condições de trabalho, de leis e regras pensem em toda a cadeia cinematográfica e beneficiem os patrocinadores, produtores, distribuidores, exibidores, visando sempre o público. Só assim o cinema brasileiro irá se reencontrar de vez com seu público.

* Danielle Noronha é jornalista