Sem categoria

Líder comunitária revela como a polícia age em Heliópolis

Em entrevista ao Vermelho, a presidente da União de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas), Antônia Cleide Alves, de 45 anos, discorreu sobre os acontecimentos no dia da morte da estudante Ana Cristina, de 17 anos, ocorrida durante um tiroteio entre policiais e ladrões de um carro no último 31 de agosto. A presidente da Unas falou também sobre a presença do Estado em Heliópolis, sobre educação, sobre juventude e sobre as perspectivas do Brasil.

Na rua da Mina Central, uma biblioteca comunitária, uma Escola Municipal de Educação Infantil (Emei), uma quadra poliesportiva, um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) e finalmente a sede da Unas. Isso tudo em menos de 500 metros de uma rua estreita na segunda maior favela da América Latina: Heliópolis.

Heliópolis tem cerca de um milhão de metros quadrados e aproximadamente 100 mil habitantes, dividos em 5 núcleos (Mina, Lagoa, Flamengo, Viracopos e São Francisco). A favela se ergueu a partir da ocupação dos espaços, contrariando a prefeitura da época, e lá se organizou um forte movimento que fez parte da efervescência política que vivia o Brasil na década de 80, com a possibilidade da construção de um novo Brasil a partir do fim dos anos de chumbo.

Cleide é nordestina e mora em Heliópolis desde 1971 e participa do movimento comunitário no bairro desde 1983. Ela já fez Contabilidade e atualmente estuda Psicologia, com uma das 1.100 bolsas que a entidade conquistou para a comunidade. A Unas veio a ser organizada institucionalmente a partir de 1987, é uma entidade que compõe a Central de Movimentos Populares (CMP) e desde a primeira gestão Cleide já compôs a diretoria em várias funções, tendo sido eleita presidente em janeiro de 2009. O foco da associação é educação, e a presidente afirma que a atuação da Unas é para fazer de Heliópolis um "bairro educador".

Além da Cleide, falou para o Vermelho o DJ Reginaldo José Gonçalves, de 31 anos. Ele é o "Régis" da rádio Heliópolis e diretor de Comunicação da Unas. Régis também é bolsista, ele estuda Administração.

Vermelho: O que aconteceu no dia da morte de Ana Cristina?
Cleide: Esse caso da Ana Cristina é uma dor muito grande, que tanto os pais estão sentindo como nós também. Ela praticamente nasceu em Heliópolis. Conheço a família toda, quando ela veio do Ceará ainda era bebê. A vida da família dela é toda na comunidade, é um símbolo muito forte. A gente vê isso como a criminalização da pobreza. Aqui na comunidade a polícia entra “se sentindo”, como a gente fala por aqui. É um desrespeito muito grande. A gente sabe que eles não fariam isso lá na Souza Bueno, mesmo da Estrada das Lágrimas para lá, eles não fariam isso. Outra coisa são estes despejos todos que andam acontecendo em São Paulo. Nossa comunidade já foi despejada uma vez [de um terreno] da Eletropaulo, que é uma área aqui próxima, e teve uma tentativa de despejo em 1992. Então a gente sabe o que representa isso, o quão forte é isso na cidade.

Vermelho: Como é a relação com o Estado? Como o Estado entra em Heliópolis? Tem creche, escola, hospital, saneamento básico? E como é a relação com a polícia, este outro braço do Estado?
Cleide: Na verdade tudo que veio do Estado, que a gente tem, foi por muita da necessidade, foi de irmos atrás. Por exemplo, hoje temos um projeto que atende crianças de 7 a 14 anos, que fomos buscar na prefeitura, e no mesmo lugar antes era um ponto de drogas. Hoje, sabemos que está faltando muita oportunidade para a juventude. Que o jovem tenha a opção de ir vender drogas, mas que ele tenha isso como uma opção, não que ele seja levado para isso.

Vermelho: A juventude é quem mais mata e quem mais morre no Brasil…
Cleide: Pois é… aí eu fico pensando, a nossa comunidade também é muito jovem. Pelos dados do IBGE, 53% da nossa comunidade tem até 21 anos. E aí, é verdade, a maioria dos que a gente vê [na criminalidade] é a juventude. É muito diferente da minha época, hoje a juventude tem pouca perspectiva, o jovem tem que comprar muito, tem que estar com a roupa da moda, com o tênis da moda, porque a auto-afirmação dele é pelo “de fora”, não é pelo “de dentro”. Na minha época não, era o contrário, era pelo “de dentro”, era o sonho dessa mudança, dessa transformação. Então tem muita responsabilidade da política estabelecida: do Brasil, do município. Essa violência é muito disso e a resposta que se dá é extermínio.

Vermelho: Foi o caso de Ana Cristina?
Cleide: Essa menina [Ana Cristina, foto ao lado], ela foi exterminada, porque, no inconsciente da polícia, se está na favela é bandido. A menina era pequena, magra, passava por uma pessoa de 11, 12 anos tranquilamente, ainda mais encolhida… então não havia motivo nenhum para ele [o policial] executar ela, e ela foi executada. Porque, pela testemunha, não foi atirando nele [no ladrão de carro], que pegou nela, não foi. Ele viu ela abaixada, escondida atrás de um carro, literalmente escondida, e ele deu um tiro nela aqui [no pescoço], entendeu? Então, assim, não foi uma bala perdida. Não é um tiroteio que resultou em uma morte por uma bala perdida. Essa visão que na comunidade só tem bandido e que ele está entrando com arma e que é pra matar, é isso que é a grande questão. E, sobre a juventude, é uma escola muito diferente da minha época, ela inclui, garante escola para todo mundo, mas ao mesmo tempo não garante, entre aspas. Por que ela não garante? Porque, na verdade, ela já tem um processo de exclusão… na sexta, sétima série, o menino não agüenta mais ficar na escola. É uma exclusão disfarçada de inclusão.

Vermelho: Por que o jovem não aguenta mais ficar na escola de pois de uma certa idade?
Cleide: Então, aí a gente vai debater como está estruturada a escola, como está o modelo de educação…
"Aí o Serra fala: ‘mas eu estudei em escola pública’. Duvido que seja essa escola de hoje!"

Vermelho: Falta identidade do jovem com a escola?
Cleide: Não sei se é só identidade… Não tem professor, o professor trabalha com uma didática da minha época, de Regime Militar, e hoje a juventude já não está mais com essa cabeça, ela não quer mais aquele professor autoritário que sabe tudo, porque ela também quer trocar. E, fora isso, a questão de como está montado o modelo de educação, a estrutura educacional… Quer dizer, podemos enumerar “n” [motivos], eu estou falando a partir de um “olhômetro”, do sentimento. Esta questão da inclusão mesmo, por um momento o Brasil consegue um dinheiro do BID [Banco Interamericano para o Desenvolvimento] e consegue incluir todo mundo… uma política boa, mas que na verdade exclui. Aí o Serra fala: ‘mas eu estudei em escola pública’. Duvido que seja essa escola de hoje! Porque a minha mãe não estudou, porque tinha espaço para a classe média e para nós não tinha, para a nossa classe. Hoje tem espaço para a nossa classe, concorda? Mas só que não tem aula. Só que não tem didática. Só que não tem qualidade. Só que não tem nada! A escola se perdeu… não sei o que aconteceu, a gente precisa aprofundar mais para entender. Só sei que os nossos jovens, de 13, 14 anos, você já tem que segurar pelo braço para pôr lá. Aí vai saindo… aí depois ele retorna de novo quando tem 21 anos, está correndo para fazer o supletivo, para poder arrumar qualquer coisa. Por aí também [o mercado] obriga a ter [formação escolar].

Vermelho: Você falou da visão da polícia sobre a população (bandido), e qual é a visão da população sobre a polícia?
Cleide: A função polícia de proteção, a gente sente que aqui dentro não é. Aqui dentro é a função de amedrontar, eles causam medo. A gente veio de uma realidade que tinha um posto de policial aqui dentro. Eu sou da época, até a os anos 80 tinha um posto de polícia. Aí mudou a política nesse sentido, a polícia retirou [o posto]. Eu lembro que na época se falou ‘não, não é mais seguro estar nas comunidades’. Teve todo um processo. Para dizer que ‘não está mais seguro’, significa que ela [a polícia] também fez muita coisa errada, né? Porque, ao mesmo tempo que a gente fala que a polícia protege, então como que a gente sente isso? A gente não sente à toa! Sinal da forma como [a polícia] atua nestes locais, que não é diferente, não há diferença… de junho para cá a gente teve três assassinatos aqui, aliás, dois assassinatos e teve aquele [caso] da menina Tainá… lá foi Deus que pôs a mão, com certeza. E a
imprensa que chegou a tempo, que a gente conseguiu avisar a tempo, porque senão a carnificina ia ser naquela data, dia 8 de julho. Porque, você imagina, a população tomou a chave [da moto] do policial, iam linchar o policial [que atirou na menina]. Se o pessoal, se diretores da UNAS não entram, iam linchar o policial, e o que ia acontecer? Não ia virar um massacre? E aí acontece esse da Ana Cristina em agosto. Entende? É como se fosse por mês: junho um [incidente de uma senhora do núcleo Lagoa que também foi assassinada], julho outro, agosto…

Vermelho: Teve um assassinato em junho também?
Cleide: É, na época das quermesses. Eles [os policiais] entraram na comunidade, disseram que os meninos estavam jogando garrafas quando a polícia estava entrando… aí tem disso, foi às três horas da manhã, a gente não estava lá para saber direito o que aconteceu. A polícia dá essa versão. Aí depois do caso da Tainá, o Secretário de Educação [do município], que é o Alexandre Schneider, fez um contato com o comandante da polícia, o coronel Camilo, que coordena a polícia militar no estado de São Paulo, e também um outro coronel que é o coordenador da polícia da Zona Sul de São Paulo. A gente fez uma reunião aqui, eu achei que foi muito produtiva, muito boa. Daquilo que nós estávamos falando: polícia comunitária, essa visão da polícia de proteção, não cheia de preconceito. Me pareceu então que foram atitudes isoladas de pessoas [que resultaram nos incidentes], ele colocando a política estabelecida do estado, me parece isolado. Eu, muito sinceramente, eu não acredito nisso. Mas ele foi bastante solícito. Quando eu estive na Ana Maria Braga, aquele comandante que foi lá também era muito aberto, mas assim, eu sinceramente não acredito em atitudes isoladas de policiais, isso eu não acredito. Mas, como nós somos aqui da comunidade e nós acreditamos em prevenção – eu não acredito em reação de confronto, violência para mim gera violência, está mais do que provado isso, Gandhi já falava isso e a cada dia isso está mais provado – então, a gente está acreditando muito que a polícia chegue através do Conseg (Conselho de Segurança Pública), que chame as comunidades para ter essa primeira reunião, que tenha ações para mudar esse quadro. Eu estou acreditando muito nisso, porque vai ter que fazer isso, né?

Vermelho: Você falou de um histórico de violência aí, então a reação à morte da Ana Cristina não foi uma reação pontual à morte dela, mas a um processo?
Cleide: Eu acredito muito nisso. Eu sinto que se tiver, e acredito que possa até ter, porque tem “n” casos, se tiver alguma coisa que foi programada, alguma coisa mais profunda, sei lá, ligado ao crime, como enumeram por aí, eu acho que isso foi muito pouco. Eu acho que o que teve maior mesmo foi essa questão [da revolta]… não é a forma que a gente acredita, não é a forma que a gente busca, essa forma desorganizada de protestar, nunca foi dessa forma. A não ser quando foi despejo aqui dentro, a gente usou do mesmo jeito. Se você pegar uma fita nossa de 1992, nós tivemos que usar da força, porque não tinha outro argumento. Hoje a gente sabe que poderia protestar de muitas outras formas.

Vermelho: Então foi uma manifestação espontânea?
Cleide: Eu acho que a maioria, não posso te dizer 100%, mas grande parte foi um grito de raiva mesmo, como aquele dia em que eles [os policiais] ficaram aqui até as nove da noite nos locais. Quem pudesse tirar uma casquinha da polícia, vou ser sincera com você, tirava. Tinham os meninos que, por exemplo, jogavam alguma coisa [nos policiais] só para correr, aí corriam e “kakakaka” [imitando gargalhadas], e corriam de novo. Virou um negócio… começou já às nove, nove e meia, que aí eles ocupam toda a área… e até perguntaram para mim ‘será que tem outra forma, depois que está instaurado tudo aquilo que foi aqui, será que tinha outra forma da polícia conter?’. Eu não sei se teria.

 
"Eles começaram a andar nas vielas, em tudo quanto é lugar, e se você estivesse na rua, em frente à tua casa, na calçada, você levava uma bala de borracha".

Vermelho: Como que a polícia conteve as manifestações?
Cleide: Conteve com [tropa de] choque, daquele jeito que a gente sabe, né, daquela forma, com bala e com gás lacrimogênio, que tinha local que você não conseguia nem respirar, e se te pegassem na rua… Eles começaram a andar nas vielas, em tudo quanto é lugar, e se você estivesse na rua, em frente à tua casa, na calçada, você levava uma bala de borracha. Por exemplo, a mulher do Justino ficou com duas aqui [apontando para o próprio dorso]: uma aqui e outra aqui. Então a molecada começou a brincar, jogar as coisas e correr para dentro [das casas], e a maioria era juventude que estava, eram os jovens, eram adolescentes, a maioria adolescentes.

Vermelho: Como uma expressão de rebeldia…
Cleide: Isso, é isso. Era como fosse: o inimigo é aquele lá e nós vamos [barulhos de pancadas].

Vermelho: E a versão do bilhete?
Cleide: Então, a versão do bilhete é o seguinte: eu vi pelo jornal, a gente vê, está escrito lá pelo
jornal… eu estava no local onde iniciou, que é lá na Coronel Silva Castro com a Cônego Xavier. Eu estive lá no local até às seis horas da tarde, que a gente tem um projeto lá, um CCA. O que a gente sabia num primeiro momento, que foi falado, era assim: ‘ah, nós vamos queimar um sofazinho aí’. Quando eu vi na televisão, eu falei ‘é um sofá que está queimando’. A moça que estava comigo falou ‘sofá?! Estão queimando dois carros! Que sofá?!’ [risos].

Vermelho: Mas você viu o bilhete, ouviu falar nisso?
Cleide: Não, eu não peguei no bilhete antes.

Vermelho: Mas você sabe se ele existiu?
Cleide: Existiu o bilhete. Aquele que você viu, todo mundo viu, eles colocaram o bilhete no jornal. É aquele mesmo bilhete, entregaram. Se foi alguma coisa organizada ou não, isso eu não sei, mas que entregaram o bilhete, entregaram. Eu vi mesmo aquele bilhete.
Régis: Mas a questão desse bilhete aí, eu acho assim, podia ser qualquer pessoa que
fez. Heliópolis, aqui é muito urbanizado. E dificilmente tem alguém aqui em Heliópolis que fosse fazer isso aí, e outra coisa também, a mídia publicou aquilo ali, e tal, e como se o bilhete fosse o fato principal que tivesse acontecido, distorceu totalmente o fato. Tinha uma criança, uma adolescente que foi morta ali! Aquilo ali foi um pedido de socorro. A população tinha que fazer alguma coisa, porque aqui, um mês antes, tinha acontecido [o incidente] com a menina Tainá. Graças a Deus ela ta viva aí, mas foi mão de Deus, que nem a Cleide falou. Então o que
aconteceu? Aqui [no caso da menina Tainá], a população se uniu, pegou a chave da moto do
policial, segurou, chamou a mídia, chamou todo mundo e pegou, certo? Então quando fala de polícia e tal… não é um ou outro policial, é a corporação mesmo, eu acho que a corporação não está preparada para servir a comunidade. Eu entendo dessa forma. Porque se a corporação tivesse que, em primeiro lugar, vir aqui para proteger quem paga o salário deles, se estivessem preparados, com certeza não sairia por aí dando tiro a torto e a direito, e matar pessoas inocentes que não têm nada a ver.

Vermelho: Então é a concepção da polícia mesmo?
Régis: Eu acho que, também, é histórico já. Se você pegar a historia do nosso país mesmo, a época da Ditadura e tudo mais, não mudou a concepção daquela época para agora. O policial não está sendo preparado para servir a população como teria que servir. E aí acontece isso.

Vermelho: O governador José Serra classificou as reações aqui como vandalismo. Ele disse que aceitava manifestações, que são legítimas, que defende a liberdade de manifestação, mas que não toleraria vandalismo e justificou uma ação mais firme da polícia para poder conter as reações com carros queimados. Como vocês classificam a reação da população aqui em Heliópolis?
Cleide: Então, você vê que coisa doida dele… se violência gera mais violência… o
que eu sinto é que a polícia… o Régis tava falando disso, é bem isso que a gente sente aqui
mesmo: a polícia não está preparada, ela está com a estrutura pensando no governo militar ainda. Do mesmo jeito que nós estamos falando que as escolas ainda [estão atrasadas], nós saímos da ditadura há pouco tempo. A polícia… tem três polícias, cada uma atira para um lado. Quer dizer, tem que pensar numa polícia… e nós não estamos nem falando de corrupção, não estamos falando disso não, porque se a gente for entrar nisso: quem será que fundou o PCC? E foi nesse período das cadeias [prisões políticas], é isso que eu estou querendo dizer: a polícia tem pouca moral para falar de qualquer coisa, é isso que a gente sente na comunidade. E eu sinto isso, ainda lendo bastante, olhando o outro lado das coisas, né… imagina o menino lá, aquela pessoa lá, imagina… e sem falar a dor da família. Nesse caso a família sofreu por causa desse processo, dessa forma, e sofreu pela morte da menina, porque no dia, infelizmente eu não consegui ir vê-la, a menina tava quase sozinha, porque quem ia, ver a menina naquele dia? Aquela confusão toda, você não conseguia sair na rua aqui dentro da comunidade. Não tinha como você sair na rua, não era seguro, porque você podia
levar uma bala de borracha. Então, a polícia é isso que o Régis está falando. Por isso que
eu estou te falando, o capitão, o comandante vieram aqui, e utilizaram toda uma linguagem que a gente acredita que poderia ser um início, mas na prática, até chegar isso aqui na nossa
comunidade, o soldado entender isso…

Vermelho: Você acha que eles são os agentes apaziguadores, os políticos da polícia para lidar com as lideranças da comunidade?
Cleide: Eu não queria ver isso… eu sou ingênua, sabia? Eu acredito ainda que eles são bem
intencionados, eu ainda estou acreditando nisso, ainda creio nisso, mas a estrutura da polícia… Eu acredito que ainda leva muito tempo [para esse discurso ser implementado]. E a polícia que vem lidar com a gente é a outra.

"A mídia é cruel. (…) fica em cima da carnificina"

Vermelho: E como você avalia a cobertura da mídia sobre o que aconteceu aqui?
Cleide: Nossa, a mídia é cruel, viu? A gente fala dessa polícia, mas a mídia é cruel. É cruel porque fica em cima da carnificina. Naquele período lá, quase a gente entra em crise, porque as matérias que eles querem que fale é o seguinte: 'é traficante? É o bilhete?' Entendeu, eles não querem discutir o problema, não querem formar opinião sobre o problema, não querem mobilizar para ter uma opinião do problema, não querem saber de discussão do probelma, [não querem saber] como resolver, como criar um senso crítico.

Vermelho: Você acha que esse é o papel da mídia?
Cleide: Com certeza. Se ela quisesse um país melhor, ou se ela quisesse pessoas melhores, seria isso. Agora se a gente pensar isso a gente vai ver… quem é dono dessas mídias? Aí eu fico pensando assim: essas pessoas que são donas vão se interessar de fazer isso que nós estamos falando? Não, não vão. Por exemplo, eu fiquei aqui com a rede Globo, falei que nem uma besta na frente aí, me posicionei, ‘não, a luz não ta boa’, falei, falei, falei, falei, falei, falei… não saiu nada! Porque, lógico, com certeza eu não falei nada do que eles queriam colocar na matéria. A menina do jornal O Estado de S. Paulo ainda colocou uma coisa assim [fazendo sinal de pouco], mas nós conversamos quase três horas. Entendeu o que eu estou querendo dizer?

Vermelho: O Estado de S. Paulo fez uma matéria dizendo praticamente que foi o tráfico que organizou a manifestação…
Cleide: Pois é. E você viu o tantinho que saiu falando? Duas linhas! Então assim, o que que [a mídia] faz? Pega o negativo, um por cento do que é, e joga como se fosse cem por cento, que não é assim. Se a gente for ver, tem a Caminhada pela Paz, [que a Unas realiza anualmente], você anda na rua da comunidade e tem ações. Quer dizer, tinha coisas na comunidade para você mostrar o contrário…

"A polícia esqueceu que nós não votamos na pena de morte, porque eles estão executando

Vermelho: É por isso que os amigos e familiares da Ana Cristina não quiseram jornalistas no enterro dela?
Cleide: Ah, é uma crueldade o que faziam com aquela mãe dela. Ficavam perguntando, querendo saber a todo momento como ela era… quer dizer, não pode ser desse jeito, tem que ter no mínimo… se colocar [no lugar do outro]: ‘e se fosse minha filha, e se fosse minha conhecida’… entende? Coisa de humano. Isso eu acho que a imprensa não sabe. O João [Miranda Neto, ex-presidente da Unas] é sábio, ele diz assim; ‘que país será que é esse que a imprensa quer construir?’. É disso que eu estou falando, a forma como a imprensa aborda. Mas isso é quando é para os pobres, porque a gente vê: quando é para a classe média-alta é toda uma importância dada, em um outro contexto, como se fossem duas vidas, e que um tem mais valor que a vida do outro. Isso que não conforma. Parece que a nossa classe não tem tanto significado quando morre uma outra pessoa. E outra coisa que eu acho, que a polícia esqueceu que nós não votamos na pena de morte, porque eles estão executando as pessoas. Se cometeu crime, tem que pagar, ninguém aqui está falando que está certo, nem passando a mão na cabeça de quem roubou, não é isso. Mas estamos falando que a pessoa tem que ser julgada, tem que pagar… A cadeia também é outro lugar que tem que repensar, porque lá fabrica… a pessoa entra lá "joãozinho" e sai… Deus me livre! Então são essas coisas todas que eu acho que quando a gente faz a discussão da violência, a gente tem que falar.

Vermelho: O jornalista Paulo Henrique Amorim falou o seguinte em seu blog: Heliópolis é a segunda maior favela da América Latina e a maioria dos habitantes de lá são imigrantes nordestinos, como a própria Ana Cristina, e não votam em São Paulo. Você acha que isso tem a ver com a forma como o Estado se relaciona com a comunidade?
Cleide: O Paulo Henrique Amorim fez uma matéria em que ele foi muito leal, muito legal. Eu acho que ele é dessa imprensa diferente que a gente tá discutindo agora, que a gente queria. Eu acho que ele é uma pessoa assim. Tem essa realidade, para você ter uma idéia, na nossa comunidade, eu falo que é 99% nordestino, agora já são os filhos dos nordestinos que estão aqui. Já são os meus filhos, que estão tendo filhos, que é o caso da Ana Cristina. A mãe dela é nordestina, apesar que ela nasceu lá no Nordeste, mas a grande maioria já nasceu aqui. Mas são de lá. Eu não sei, a gente tem essa preocupação também. Porque, assim, o nordestino tem o sonho de voltar para a terra dele. Ele está aqui, mas, por mais que São Paulo seja acolhedor, eu sinto que ainda tem um 'ai se eu pudesse estar lá na minha terra'. Tanto é que com esta questão do renda mínima, com essa questão da melhoria que o Lula tem feito no Nordeste, nestes locais, a porcentagem das famílias que vinham para cá caiu. Estão ficando muito lá.

Vermelho: E quem está aqui não completa cidadania, não vota…
Cleide: Isto é uma coisa que a gente tem se preocupado. Eu não sei quantos porcento não votam, só sei que no dia a gente vê muita fila para justificar. Tem nos preocupado isso, a gente tem trabalhado com campanhas "transfira o título". A gente procura neste perídoo que está perto da eleição, apesar de que agora está mais fácil, porque dá para tirar o título pela internet, a gente sempre faz campanha pela transferência de título. Mas pode ser que não tenha mais descaso ou que o estado trate a gente assim porque tem menos gente que vota, porque também muitas vezes… não estou usando de preconceito para falar isso, mas essas pessoas [da periferia] se sustentam também de voto. Por isso eu falo que a gente aqui trabalha na questão de um bairro educador nessa preocupação, porque não é só escolher o melhor
candidto, mas saber quem é o seu candidato…

Vermelho: Quando o cara tem a perspectiva de que ninguém vai melhorar a vida dele, ele vota…
Cleide: Em qualquer um. A gente tem muito dessa preocupação

Vermelho: Na mesma semana do caso da Ana Cristina houve um caso parecido no Jaçanã, em Paraisópolis no mês anterior, teve também a desocupação em Capão Redondo, e todas essas ações com bastante violência da polícia. Isso é uma ação do conjunto da polícia, isso contradiz o que o Coronel que veio conversar com vocês disse? Como você vê relação nesses fatos?
Cleide: Por isso estou te falando que o ele [o coronel] me surpreendeu, a pessoa dele. Porque eu falei 'poxa, então, como que pode?'. Por isso que eu estou te falando que eu não acredito que é uma ação isolada de pessoas. Porque se fossem pessoas, você daria o nome: 'foi a Maria', mas não aconteceria com 'João', nem com o soldado 'Joaquim', etc., não vamos enumerar… não aconteceria, não seria isso. Então por isso que eu tenho dúvida. Por isso que eu estou te falando que… não é que eu não acreditei no que for, mas o dia-a-dia tem mostrado para a gente que pode ser que essas ações venham daqui há 15 anos, mas hoje não parece que é isso. Mas a gente quer [isso] para cá, quer a polícia comunitária e… sei lá, a gente tinha que pensar, não sei como que é, não estou participado desses fóruns de discussão de segurança. A gente tem o Conseg aqui dentro do Heliópolis, tem o pessoal que discute.

Vermelho: Já teve a Conferência Nacional de Segurança Pública neste ano…
Cleide: Teve conferência aqui. A gente acompanhou, tem essa pessoa do Conseg aqui que é o Luiz Carlos, que é uma pessoa muito aberta, tem algumas pessoas nossas qe têm participado, pessoas da Unas, que é importante também a gente participar. Eu não sei como eles fazem, mas por exemplo nesse caso eu acho que eles tinham que pensar… por que que é atirar para matar? Você já está com o revólver, você já vai atirar, atira na perna se é pro cara não correr, se o problema é esse, se o cara tá correndo. Não precisa atirar na cabeça para matar! Entendeu… por isso que eu acredito que é muito essa questão de extermínio mesmo.

"Ela realmente é uma menina aqui do Heliópolis"

Vermelho: A Ana Cristina não é mais um número na estatística, é uma pessoa real. O que você tem para falar da Ana Cristina? Quem era ela, o que ela fazia?
Cleide: Ela era uma adolescente de 17 anos, que teve uma filha, o que é muito da nossa realidade. Ela representa a realidade das meninas aqui de Heliópolis, que infelizmente engravidam muito cedo, que param os estudos, ela tinha parado e tinha retornado aos estudos agora, dessa forma como eu estou te falando. Então, assim, ela estava trabalhando numa loja, não estava registrada ainda. É muito a nossa realidade aqui. Ela realmente é uma menina aqui do Heliópolis, que tinha, ou será que não tinha outras perspectivas? É isso que eu me pergunto. É essa falta de oprotunidade, essa falta de perspectiva que a juventude tem. Então para mim a Ana representa isso, é aquela jovem de 17 anos da história, que já fica grávida aos 15 anos, que aí não é por falta… será que é por falta de informação? Por falta do quê, né? Isso eu tenho curiosidade para saber, porque informação… eu acho que todo mundo sabe, é passado nas escolas, ela sabe… por que que fica grávida? Então, essa questão mesmo de falta de oprotunidade, de vislumbrar que você pode ter outra forma, que não seja casar… não é nem casar, porque na verdade ela estava separada do pai da criança. Só teve. Ele não dava nada, pensão… é bem um caso mesmo de mulheres… ela ia se tornar uma mulher, não vai mais, mas, no caso uma mulher. O caso de uma mãe separada do marido, a mãe dela, que no caso ela [a mãe da Ana Cristina] que sustentava sozinha as três pessoas, que era ela e mais duas. Uma pessoa que veio do Nordeste porque teve um problema com o marido dela, e sofria com ele, inclusive ela [a Ana Cristina] era gêmea, era ela e um menino, e o pai ainda ficou com o menino, ela [a mãe de Ana Cristina] saiu fugida com a menina, porque ele queria tomar os dois filhos dela. Então quer dizer, uma pessoa muito sofrida né? Que é muito a história mesmo das pessoas da nossa classe social. Mas uma pessoa muito boa viu? Uma pessoa muito íntegra, a família dela toda. Um pessoal muito íntegro.

Vermelho: O que a Unas quer que São Paulo e o Brasil vejam sobre Heliópolis e que as notícias não mostram?
Cleide: A gente tem aqui um projeto de geração de renda, que é ligado a costura, que gera renda para complemento de renda da casa, porque não é uma coisa muito estruturada… a gente tem projeto de formação, a gente tem projetos educacionais, quer dizer… se você olhar no grande – e aí lá na Ana Maria Braga eu me senti muito pequena… eu pensava 'puxa vida, são tantos problemas, tão pequenos, que eles teriam condições de resolver'. Sabe quando você se sente desse jeito? E você se sente assim: como o Brasil é tão grande e mesmo a morte da menina parece que é pequeno na conjuntura. Entende o negócio como fica? Como fica a impunidade a estas questões tão pequena… que não deveria, deveria ser o contrário, sobrepor. Então, do Heliópolis eu queria assim… por exemplo, o que que a gente queria [mostrar], essa garra que esse povo tem. Essa vontade. Por exemplo, ele [o Régis], olha a realidade dele, que ele conseguiu transformar… Ele é da balada breck, ele trabalha como DJ… entendeu o que eu estou querendo dizer? Ele é um herói! Esses heróis e essas heroínas que conseguem, que tem tudo, parece, para não dar certo… não porque a pobreza é criminosa, não é isso. Mas tem tudo para não ter oportunidade, mas conseguem sair disso. Tem esses 1.100 que estão estudando, que daqui a pouco… eles não estão trabalhando na área agora, mas com certeza eles vão ter mais oportunidade que outros. Eu acho que essas coisas [têm que ser mostradas].

Vermelho: E sobre o Brasil? Você vê perspectivas? O que você pensa sobre o país hoje?
Cleide: Eu vejo, eu vejo perspectiva. Eu acho que nós estamos em um processo democrático, acho que isso é importante. Por mais que a gente, tudo que a gente está vendo lá do Senado, tudo que a gente vê… eu passei na escola agora, antes de vir para cá, aí estava um quadro [político] do [governo do] estado dizendo que uma obra que estão fazendo lá é R$ 110,4 mil. Mas o que ele vai fazer lá, se não fosse desse jeito, por essas empresas que já fazem isso já tem toda uma estrutura de lavagem de dinheiro, isso não ia custar R$ 30 mil, R$ 40 mil vai, vamos superfaturar… R$ 50 mil, metade, vamos superfaturar isso, e é uma obra que custa R$ 110 mil, entende o que eu estou querendo dizer? Nós estamos num processo democrático, que vai demorar mais um tempo, mas que essas coisas estão aparecendo e, para mim, as pessoas vão querer dar um basta nisso. Aqui por exemplo tem o PAC, vem um dinheiro, R$ 196 milhões da prefeitura. A grande briga que a gente tem com a prefeitura é que a gente quer saber quanto custa um bendito metro quadrado de esgoto. Então, o que eu quero dizer… eu acredito que no Brasil, cada vez mais, as pessoas vão ter esse sentimento, vão querer essa transparência zero. Se você está lá para ser a minha prefeita, ou minha governadora, ou presidente, mas você vai saber do custo do dinheiro. Eu vou saber que se você comprar essa caneta por R$ 50, ela não custa R$ 50, ela custa R$ 5. Eu acredito muito na questão da democratização, e aí pensando na educação, eu vislumbro algumas coisas boas se a gente olhar para o governo federal, a questão do Lula ter chegado à presidência, isso eu acho que tem uma coisa muito simbólica, que dá muita força para a minha classe, pensando em classe social. Você ainda vê muita gente que quer o melhor, um país melhor, essa questão do meio ambiente… Aí a gente pode ver, a Marina Silva eu acho que é um simbólico muito importante dela estar nessa corrida… Aqui em São Paulo, Serra não. PSDB, eu não entendo, não consigo entender o PSDB… essa questão de privatizar tudo, pensando na saúde que eu considero essencial, a própria educação, não sei… Eu acho que tem perspectiva, se você olhar num geral, você vê perspectiva boa. Acho que pode acontecer uma sensibilização maior das pessoas.

Vermelho: Você acabou de falar da garra. Você acha que a população acredita no Brasil?
Cleide: Eu acho que acredita. Eu acho que está aumentando este número de pessoas que acreditam. Eu não vejo uma barbárie instaurada. Não consigo vislumbrar isso, talvez porque eu não acredite [na barbárie] [risos]. 

 

"Uma caminhada da paz com 15 mil pessoas, eles [a mídia] não vêm aqui para mostrar"


Vermelho: Tem mais algum recado?
Régis: A nossa presidente mostrou bem o que é a cara de Heliópolis nessas poucas palavras aí, é que a gente fala muito. Tem muita coisa positiva, muita coisa bacana aqui… você perguntou da mídia, a mídia não quer mostrar o lado positivo porque não dá ibope, infelizmente é assim que funciona. Uma Caminhada pela Paz com 15 mil pessoas, eles não vêm aqui para mostrar isso aí… que acontece anualmente, não é um fato isolado. E fora isso, a Caminhada pela Paz tem toda uma preparação com as crianças e tal, a galera tem um entendimento do que que é paz, sabe? Quer lutar contra a violência, e tal. Essas crianças são a consciência de amanhã.
Cleide: Você já pensou se a imprensa entrasse nisso? Nossa! Mas é porque tem pessoas que ainda mandam [na mídia]. Eu estou acreditando que essa geração nova, que vem dos filhos, porque quem vai mandar são eles, não são os meus filhos, são os filhos desse povo aí, eu tô acreditando que essa geração venha melhor.
Régis: você perguntou sobre o Brasil, eu também acredito que o Brasil vai melhorar sim, mas não de cima para baixo, vai melhorar com ações como essa daqui da Unas e tal, com essa mobilização da população da periferia mesmo, eles se organizando, estudando, tendo informações mesmo dos seus direitos e seus deveres, com certeza vai melhorar. Um exemplo claro disso sou eu mesmo. Quando eu entrei na Rádio Heliópolis, eu entrei com uma visão: eu estava pensando no meu. Eu era dj e tudo mais, pensei 'pô, eu vou fazer programa na rádio, vou divulgar meu trabalho, vou bombar, pegar várias festas e tal'. Na primeira semana os caras me colocaram: 'olha, você está entrando aqui na rádio… aqui você está vindo para servir à comunidade, você tem que ir atrás de informação, tem que conscientizar…', e eu 'caramba, eu vim aqui só para divulgar o meu trabalho'… E o pesosal pegou no pé, até que eu tive o entendimento que é isso mesmo. E aí quando você sai na rua e você vira referência, você fala: 'pô, mano, é um trabalho que vale a pena'. É muito melhor do que fazer um trabalho que ia ter só benefício para mim. Eu estou fazendo muito mais, além, estou ajudando a comunidade, estou ajudando a criança a se formar, estou ajudando ao cidadão a ter uma informação ali que às vezes vai melhorar a sua vida. Às vezes aquilo que a gente fala na rádio muda a vida da pessoa que está escutando. Uma informação que a gente passa ali na rádio vai ajudar aquela pessoa. Hoje eu tenho essa consciência, mas foi através desse trabalho que a Unas fez comigo e faz com vários outros adolescentes. Tem adolecentes que começaram num projeto, começaram na creche, passou para adolescente, foi toda uma formação, e hoje é educador, educador social. A Unas acredita nisso e eu vejo que isso dá certo sim. E acho que outras comunidades tinham que seguir esse exemplo aqui e com certeza se organizar para a melhoria da qualidade de vida. Só através da educação.

Vermelho: Para o governo poder chegar na periferia, tem que fazer mais parcerias com a população?
Régis: Com certeza, porque as parcerias que têm aqui foi a gente que bateu o pé, a gente que disse 'lá tem que ter uma creche', 'lá tem que ter uma escola', 'lá tem que ter um projeto social para a criança e o adolescente'… não foram eles que vieram e viram isso não, foi a gente que foi lá atrás, pegou no pé e batalhou por isso aqui tudo. Foi à base de muita luta e isso aí não é mais do que o dever deles. Mas aí eles vêm, fazem propaganda: 'estamos fazendo tal atividade no Heliópolis', mas é o dever deles! Eles estão aqui para servir à população, à comunidade.

De Heliópolis, São Paulo, Luana Bonone