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Palestino pede extinção da Autoridade Palestina

Omar Barghouti, palestino fundador de um movimento de boicote a Israel, pede que a ONU aja de forma contundente contra Israel a partir do resultado do Relatório Goldstone, conduzido pela organização e que denunciou crimes de guerra cometidos pelos ocupantes israelenses na Faixa de Gaza, em dezembro e janeiro últimos.

Barghouti critica também os dirigentes da Autoridade Nacional Palestina que, segundo ele, agiram contra os interesses dos palestinos em defesa dos agressores israelense, tendo retirado o apoio ao relatório Goldstone em troca da "autorização" israelense para que uma empresa de telefonia celular operasse na AP.

Leia abaixo a íntegra do artigo

A sociedade civil palestina condenou duramente e quase unanimemente a decisão da Autoridade palestina de adiar a ação relativa ao relatório da missão de inquérito da ONU encabeçada por Richard Goldstone, que investigou a recente guerra de agressão contra os palestinos na Faixa de Gaza ocupada.

Por Omar Barghouti, para o The Eletronic Intifada

A exigência comum em quase todas as declarações palestinas era a de que as Nações Unidas adotassem o relatório e agissem prontamente segundo as suas recomendações para levar o relatório ao Conselho de Segurança e, procedendo a uma investigação séria das partes responsáveis, levassem o caso ao Tribunal Criminal Internacional, de forma a pôr fim à impunidade criminosa de Israel, e responsabilizá-lo perante a lei internacional pelos seus crimes de guerra e crimes contra a humanidade em Gaza e em todos os territórios palestinos ocupados.

Cedendo à pressão dos EUA e à chantagem israelense, Mahmoud Abbas, líder da Autoridade palestina em Ramallah (AP), foi, segundo várias fontes, responsável pela decisão de adiar a deliberação do Conselho sobre o relatório Goldstone.

Isto destruiu as esperanças dos palestinos e das organizações internacionais de direitos humanos e movimentos de solidariedade, de que Israel viesse finalmente a enfrentar um processo sempre adiado de responsabilidade legal e de que as suas vítimas obtivessem justiça.

A decisão da AP – que adia a adoção do relatório pelo menos até Março de 2010 – dá a Israel uma oportunidade dourada de o enterrar com a cumplicidade norte-americana, europeia e árabe, e agora palestina, e constitui o caso mais flagrante de traição dos direitos palestinos e de rendição às imposições israelenses.

História de traição

Esta não é a primeira vez, no entanto, que a AP atua sob as ordens de Washington e as ameaças de Telavive contra os interesses expressos do povo palestino. A histórica opinião de peritos do Tribunal Internacional (TI) em Julho de 2004, considerando como ilegais o muro e a construção de colônias israelenses em território palestino ocupado, constituiu uma rara oportunidade diplomática, política e legal de isolar Israel da mesma maneira que o apartheid sul-africano foi isolado depois da decisão do TI em 1971 contra a ocupação da Namíbia.

A AP desperdiçou essa oportunidade e sistematicamente – na verdade, de forma bastante suspeita – se recusou a apelar aos governos mundiais que cumprissem com as suas obrigações afirmadas no parecer.

A proposta sobre os direitos de Israel e dos palestinos que devia ser discutida na recente conferência das Nações Unidas Durban Review em Genebra foi abandonada depois de os representantes palestinos terem dado a sua luz verde.

Os esforços de países não alinhados e do ex-presidente da Assembleia Geral da ONU, padre Miguel d'Escoto Brockmann, para conseguir uma resolução da ONU que condenasse os crimes de guerra de Israel em Gaza e estabelecesse um tribunal internacional foram contrariados principalmente pelo embaixador palestino na ONU, fazendo com que diplomatas e peritos em lei internacional se perguntassem em qual dos lados se encontravam os representantes oficiais palestinos.

O acordo de livre câmbio entre o Mercosur e Israel foi quase ratificado pelo Brasil em setembro passado, depois do embaixador palestino nesse país ter expressado a sua aprovação, apenas pedindo ao Brasil que excluísse do acordo os produtos provenientes dos colonatos.

Devido à ação imediata de organizações palestinas e brasileiras da sociedade civil e finalmente do Comitê Executivo da OLP, essa ratificação foi evitada e o comitê parlamentar brasileiro responsável recomendou que o governo se abstivesse de aprovar o acordo até que Israel cumprisse com a lei internacional.

Em todos estes casos e noutros semelhantes, as instruções dadas aos representantes palestinos vieram de Ramallah. O governo da AP apropriou-se, no entanto, ilegalmente da autoridade da OLP para conduzir a diplomacia palestina e estabelecer uma política externa que cede direitos palestinos e age contra os interesses nacionais palestinos, sem se preocupar com a responsabilidade perante quaisquer representantes eleitos do povo palestino.

A mais recente conivência direta da AP com a campanha israelense para dirimir os seus crimes e fugir à responsabilidade aconteceu poucos dias depois de o governo israelense de extrema-direita ter chantageado publicamente a AP, exigindo que ela retirasse o seu apoio ao relatório Goldstone em troca da “autorização” para um segundo fornecedor de comunicações celulares operar nos territórios ocupados palestinos

Esta conivência mina os esforços das organizações de direitos humanos e de muitos ativistas para trazer a justiça às vítimas palestinas do mais recente massacre de Israel em Gaza, os mais de 1.400 mortos (a maioria civis), os milhares de feridos, o milhão e meio que ainda sofre da destruição deliberada de infraestruturas, instituições de ensino e de saúde, fábricas, terrenos agrícolas, centrais eléctricas e outros equipamentos cruciais, e do longo e criminoso cerco israelense.

Não é mais do que uma traição à campanha efetiva de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) da sociedade civil palestina contra Israel, com o seu recente e notável crescimento nas sociedades ocidentais dominantes e no seio de importantes sindicatos.

É também a traição do movimento global de solidariedade que tem trabalhador incansavelmente e criativamente, principalmente no quadro da campanha rapidamente propagada de BDS, para acabar com a impunidade de Israel e fazer respeitar os direitos humanos universais.

É importante lembrar que a AP não tem nenhum mandado legal ou democrático para falar em nome do povo da Palestina ou para representar os palestinos na ONU ou em qualquer das duas agências e instituições.

O atual governo da AP nunca ganhou a necessária aprovação constitucional do parlamento palestino democraticamente eleito. Mesmo se tivesse um tal mandado, no melhor dos casos, apenas representaria os palestinos que vivem sob a ocupação militar israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, excluindo a grande maioria do povo da Palestina, em particular os refugiados.

A mais importante arma de Israel, a AP

Só a OLP pode teoricamente reivindicar a representação de todo o povo palestino, dentro da Palestina histórica e no exílio. Para que uma tal reivindicação possa ser confirmada e aceite universalmente, no entanto, a OLP teria de ser reanimada desde a base num processo transparente, democrático e inclusivo envolvendo palestinos de todo o lado e englobando todas as partes políticas que estão hoje fora das estruturas da OLP.

Paralelamente a esta transformação da OLP pelo povo e pelos seus sindicatos e instituições representativas, a AP deve ser desmantelada responsavelmente e gradualmente, com os seus poderes atuais, em particular, os assentos representativos na ONU e noutras instituições regionais e internacionais a voltarem para o lugar que lhes cabe: uma OLP reanimada e democratizada.

A dissolução da AP deve, todavia, evitar criar um vácuo legal e político, uma vez que a história mostra que os poderes hegemônicos são muitas vezes os que têm mais probabilidades de preencher esse vácuo em detrimento dos oprimidos.

O fato é que a AP tem sido gradual e irreversivelmente transformada desde a sua implementação há 15 anos. Ela começou como um sub-contratante sem poder, servil e forçado da ocupação israelense, aliviando Israel das suas obrigações civis mais pesadas, como o fornecimento de serviços e a recolha de impostos.

O mais decisivo foi que a AP, muito eficazmente, ajudou Israel a salvaguardar a segurança do seu exército de ocupação e dos colonos. Desta vez, a AP foi para além desse papel, tornando-se um colaborador obediente que constitui a mais importante arma estratégica para contrariar o seu crescente isolamento e perda de legitimidade a nível mundial como Estado colonial e de apartheid.

As centenas de armas nucleares de Israel e o seu exército, quarto mais poderoso do mundo, revelaram-se impotentes ou pelo menos irrelevantes perante o movimento BDS, especialmente após o genocídio de Gaza.

O apoio diplomático, político, econômico e científico quase ilimitado que Israel recebe de governos europeus e americanos e a sua incomparável imunidade também falharam em protegê-lo contra o triste destino do apartheid sul-africano.

Mesmo antes da guerra de Israel contra Gaza, muitos sindicatos por esse mundo fora tinham-se juntado à campanha BDS. Desde Gaza, a campanha deu um salto para uma nova fase, mais avançada, chegando finalmente ao grande público.

Anos de paciente trabalho de base facilitaram este desenvolvimento, mas o horror internacional perante os mortíferos chuveiros israelenses de fósforo branco, lançados sobre crianças de Gaza apinhadas em abrigos da ONU, e o sentimento universal de que a ordem internacional tinha fracassado em responsabilizar Israel ou sequer em pôr fim a esta carnificina, ou à contínua limpeza étnica na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Leste, proporcionaram um enorme salto.

Em fevereiro, semanas depois do banho de sangue israelense em Gaza, o South African Transport and Allied Workers Union (sindicato sul-africano de transportes, SATAWU) entrou na História ao recusar descarregar um navio israelense em Durban.

Em abril, o congresso de sindicatos escocês seguiu o exemplo da federação de sindicatos sul-africana, COSATU, e do congresso de sindicatos irlandês, ao adotar a campanha de BDS para obrigar Israel a submeter-se ao direito internacional.

Em maio, o sindicato University and College Union (UCU), representando cerca de 120.000 acadêmicos britânicos, reafirmou o seu apoio anual à lógica de boicote contra Israel, apelando à organização de uma conferência BDS intersindical, para discutir estratégias de aplicação do boicote.

E em setembro, o fundo de pensões do governo da Noruega, o terceiro maior do mundo, desinvestiu de um grande fornecedor militar israelense de equipamentos para a construção do muro ilegal da Cisjordânia.

Pouco depois disso, um ministério espanhol excluiu de participar numa competição académica uma equipa representando um colégio israelense construído ilegalmente em território palestino ocupado.

Também em setembro, o TUC britânico (Trade Union Congress), representando mais de 6,5 milhões de trabalhadores, adotou a estratégia do boicote, entrando numa nova fase comparável à do final do apartheid sul-africano. Segundo indicadores concretos, persistentes e cada vez mais claros, os palestinos estão a assistir à chegada do seu momento sul-africano.

No meio de tudo isto, chegou o relatório Goldstone, de forma bastante surpreendente, tendo em consideração as fortes ligações do juiz com Israel e o sionismo, fornecendo a palha que pode quebrar o dorso do camelo: provas irrefutáveis, meticulosamente pesquisadas e documentadas, do cometimento deliberado de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade por parte de Israel.

Apesar das suas óbvias insuficiências, este relatório confrontava Israel com a possibilidade de ser julgado num tribunal internacional, pondo realmente fim à sua impunidade.

Nesta grave situação, só uma arma estratégica do arsenal israelense podia evitar uma esmagadora derrota legal e política: a AP. E Israel efetivamente usou-a a tempo, quase liquidando o relatório Goldstone.

Em última análise, a omissão da Comissão de Direitos Humanos da ONU em adotar o relatório Goldstone é mais uma prova, se mais alguma fosse precisa, de que os palestinos não podem no atual momento histórico alimentar esperanças de conseguir justiça da chamada "comunidade internacional” controlada pelos EUA.

Só através de campanhas de desinvestimento e boicote, intensificadas, sustentadas e sensíveis ao contexto da sociedade civil, pode haver esperança de que Israel seja um dia obrigado a pôr fim ao seu desprezo pela legalidade internacional e criminosa violação dos direitos humanos, e a reconhecer o direito inalienável do povo palestino à auto-determinação.

Este direito, tal como se expressa na vontade da grande maioria do povo palestino, inclui o fim da ocupação, do sistema legalizado e institucionalizado de discriminação racial, e o reconhecimento do direito fundamental, sancionado pela ONU, de regresso a suas casas dos refugiados palestinos, tal como de todos os outros refugiados por esse mundo fora.

No entanto, nós não podemos simplesmente prescindir da ONU. As organizações de direitos humanos e da sociedade civil internacional devem continuar a apoiar a luta dos palestinos para pressionar a ONU, pelo menos a sua Assembleia Geral, a adotar e a agir segundo as recomendações do relatório Goldstone a todos os níveis.

Se a ONU não o fizer, estará a enviar a Israel a mensagem inequívoca de que a sua impunidade permanece intacta e de que a comunidade internacional continuará apática da próxima vez que Israel cometer crimes ainda mais chocantes contra o povo nativo da Palestina.

Isso iria minar a legalidade e promover em seu lugar a lei da selva, em que ninguém é protegido dum caos total e duma carnificina sem limites.

Omar Barghouti é um membro fundador do movimento BDS (Boicote-Desinvestimento-Sanções) (www.BDSmovement.net).

Fonte: Solidariedade com a Palestina