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Uri Avnery: Uma história de traição do exército de Israel

Hoje é o 1.200º dia de cativeiro para o soldado Gilad Shalit. Um prisioneiro de guerra não deve ser deixado em cativeiro. Um soldado ferido não deve ser deixado no campo de batalha. O Estado subscreve um contrato não escrito com cada pessoa que se junta ao exército, e mais definitivamente com todos aqueles que servem numa unidade de combate.

O comportamento dos governos israelenses nestes 1.200 dias, dos políticos e dos generais que são responsáveis por este ultraje, é uma violação deste contrato, uma traição da confiança. Em suma: uma infâmia. Enraivece e enfurece qualquer pessoa decente, e não apenas soldados combatentes.

A traição já está na terminologia utilizada. Nas palavras do Livro dos Provérbios (18:21): "A morte e a vida estão no poder da língua".

Um soldado capturado pelo inimigo numa ação militar é um prisioneiro de guerra – em qualquer língua, em qualquer país.

Gilad Shalit foi capturado numa ação militar. Era um soldado armado de uniforme. Neste contexto, não importa se a ação em si era legal ou ilegal, e se os captores eram soldados regulares ou guerrilheiros.

Gilad Shalit é um prisioneiro de guerra.

A negação começou no primeiro momento. O governo israelense recusou-se a chamar a captura pelo seu nome próprio e insistiu que se tratava de um "sequestro".

As disciplinadas mídias israelenses, marchando em cadência por trás dos generais como a guarda prussiana, juntou-se ao coro. Nem um só jornal, nem uma só rádio ou um só apresentador de televisão falou alguma vez sobre o "prisioneiro de guerra". Todos eles, quase sem exceção, desde o primeiro dia, falaram sobre o soldado "sequestrado".

As palavras são importantes. Todos os exércitos estão familiarizados com o intercâmbio de prisioneiros de guerra. Geralmente, isso acontece após o fim das hostilidades, por vezes enquanto a guerra ainda está em curso. O exército liberta os combatentes inimigos em troca da libertação dos seus próprios soldados capturados.

Isto não se aplica às pessoas sequestradas. Quando os criminosos sequestram uma pessoa e a mantêm para o resgate, levanta-se a questão de saber se o preço deve ser pago. O pagamento pode encorajar mais sequestros e recompensar os criminosos.

No momento em que Gilad foi definido como "sequestrado", ele foi condenado ao que se seguiu.

Também perdeu a sua honra como um soldado. Um soldado não é "sequestrado". Os milhões de soldados capturados durante a Segunda Guerra Mundial – alemães, russos, britânicos, americanos e todos os outros – ter-se-iam sentido insultados por qualquer sugestão de que tinham sido "sequestrados".

O maior perigo que paira sobre a cabeça de Gilad desde que caiu em cativeiro não vem do Hamas, mas do nosso próprio exército.

Ficou claro que, dada uma oportunidade, o exército iria tentar libertá-lo pela força. Isso está profundamente enraizado no seu ethos básico: nunca ceder aos "raptores".

Se eu fosse pai de Gilad e um homem de oração, rezaria todos os dias: Por favor, meu Deus, não deixes que o exército descubra onde Gilad está a ser mantido!

Os nossos comandantes do exército estão preparados para expor prisioneiros a riscos imensos, a fim de libertá-los pela força, em vez de trocá-los por prisioneiros palestinos. Para eles é uma questão de honra.

Numa operação desse tipo, as vidas dos libertadores são colocados em risco. Mas, acima de tudo, é a vida do prisioneiro que está em perigo.

Uma das mais celebradas operações nos anais do exército israelense teve lugar em Entebbe, em julho de 1976. Libertou os 98 passageiros de um avião sequestrado da Air France, que tinha sido forçado a aterrar no aeroporto de Entebbe, em Uganda. A operação suscitou admiração em todo o mundo. Apenas um dos libertadores perdeu a vida – o irmão de Binyamin Netanyahu.

Na intoxicação resultante do sucesso, um fato foi negligenciado: na ousada operação foram tomados enormes riscos. Se um só detalhe da complexa acção tivesse corrido mal, teria significado um desastre para os passageiros sequestrados. Poderia ter terminado num banho de sangue. Uma vez que foi bem sucedida, ninguém se atreveu a levantar questões.

Os resultados da operação para libertar os atletas sequestrados nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, foram muito diferentes. Quando a polícia alemã, com o incentivo do governo de Golda Meir, tentou libertá-los pela força, todos os atletas perderam as suas vidas. A maioria deles foram provavelmente mortos por balas das armas dos polícias alemães. De que outra forma explicar o fato de que, até ao dia de hoje, os governos de Israel e da Alemanha terem ambos recusado divulgar os resultados post mortem?

O mesmo aconteceu dois anos depois, quando o exército israelense recebeu ordens de Golda Meir e de Moshe Dayan para libertar as 105 crianças que estavam detidas por comandos palestinos na cidade de Ma'alot no norte de Israel. A ação fracassou, e 22 crianças e 3 professores perderam as suas vidas. Neste caso, também, parece que alguns – se não todos – foram mortos pelas balas dos libertadores. Estes relatórios post mortem também permanecem sem publicação.

O mesmo aconteceu em 1994 quando o exército tentou libertar o soldado "sequestrado" Nachshon Waxman, na Cisjordânia. O exército tinha informações exatas, a ação foi planeada meticulosamente, algo correu mal, e o prisioneiro foi morto.

Recentemente soube-se que um oficial superior tinha apelado aos seus soldados que cometessem suicídio em vez de serem capturados. Ele deu ordens para disparar sobre os "raptores", mesmo quando isso significa pôr em perigo a vida do soldado capturado.

É bem possível que um dos motivos para o prolongamento do sofrimento de Gilad Shalit resida na esperança dos comandantes do exército de obter informações sobre o seu paradeiro, para assim tentar libertá-lo pela força. Não é segredo que a Faixa de Gaza está enxameada de informantes. As dezenas de "assassinatos seletivos" e muitas das ações da operação "Chumbo Derretido" não teriam sido possíveis sem uma densa rede de colaboradores, recrutados durante os longos anos de ocupação.

Incrivelmente – roça o milagre – o serviço de segurança israelense tem sido incapaz de cumprir essa esperança. Parece que os captores de Shalit estão a conseguir manter sigilo rigoroso. Isso, por sinal, explica por que os seus captores se recusaram terminantemente que ele se encontrasse com os representantes da Cruz Vermelha Internacional e a transmitir cartas de e para ele, incluindo parcelas (que podiam muito bem ter contido dispositivos de localização sofisticados). Isso pode ter salvo a sua vida.

Pode-se supor que o vídeo que foi transmitido ontem pelo mediador alemão, em troca da libertação de 21 prisioneiros palestinos do sexo feminino, foi meticulosamente preparado de forma a impedir qualquer possibilidade de identificar o lugar onde ele está a ser mantido.

Este caso também demonstra a superioridade absoluta da máquina de propaganda israelense sobre todos os concorrentes – se houver algum.

Os meios de comunicação mundiais adotaram, quase sem exceção, a terminologia israelense. Em todo o mundo, eles falam sobre o soldado israelense "sequestrado", em vez de sobre um prisioneiro de guerra. Jornais britânicos ou alemães que usam esta palavra não sonhariam em aplicá-la a um dos seus próprios soldados no Afeganistão.

O nome de Gilad Shalit foi pronunciado pelos líderes mundiais como se ele fosse, no mínimo, um deles. Nicolas Sarkozy e Angela Merkel falaram sobre ele livremente, certos de que os ouvintes em casa sabiam quem ele era. Libertar o "soldado israelense sequestrado" tornou-se um objetivo declarado de vários governos.

Esta formulação é, por si só, um triunfo para a propaganda israelense. As negociações são sobre uma troca de prisioneiros entre Israel e o Hamas, com mediação alemã e/ou egípcia. Uma troca de prisioneiros tem dois lados – Shalit de um lado, prisioneiros palestinos do outro. Mas em todo o mundo, como em Israel, eles falam apenas sobre a libertação do soldado israelense. Os prisioneiros palestinos a serem libertados são apenas objetos, mercadoria, não seres humanos. Mas não contam eles também os dias, assim como os seus pais e os seus filhos?

O maior obstáculo para essa troca é mental, uma questão de linguagem. Se tivesse sido sobre "combatentes palestinos" não teria havido nenhum problema. A libertação de combatentes em troca de um combatente. Mas o nosso governo – como todos os governos coloniais antes dele – não pode reconhecer os insurgentes locais como "combatentes" que actuam ao serviço do seu povo. O ethos colonial – como o "código ético" do nosso ético professor Assa Kasher – exige que eles sejam chamados de "terroristas", com "sangue nas suas mãos", criminosos de base, vis assassinos.

Uma canção irlandesa tocante conta a história de um combatente irlandês pela liberdade que, na manhã da sua execução, pede para ser tratado como um "soldado irlandês" e ser morto a tiro, não "enforcado como um cão". O seu pedido foi negado.

Quando se fala sobre a libertação de "centenas de assassinos" em troca de um soldado israelense, corre-se contra um enorme obstáculo psicológico. A vida e a morte no poder da língua.

Em vários aspectos, o caso de Gilad Shalit pode ser visto como uma metáfora para todo o conflito histórico.

Palavras carregadas ditam o comportamento dos líderes. As narrativas diferentes e opostas impedem um entendimento entre as partes, mesmo sobre assuntos de menor importância. Os obstáculos psicológicos são imensos.

A grande vantagem de propaganda do governo israelense, tão claramente demonstrada no caso Shalit, também está agora a ser testada na questão do relatório Goldstone. Os esforços do governo israelense para impedir o envio do relatório ao Conselho de Segurança das Nações Unidas ou à Assembleia Geral, ou ao Tribunal Penal Internacional em Haia, são agora apoiados pelo presidente Barack Obama e pelos líderes europeus. Os habitantes da Faixa de Gaza, como os palestinos nas prisões israelitas, tornaram-se meras peças, objetos sem um rosto humano.

E acerca de Gilad Shalit: as negociações devem ser aceleradas, a fim de efetuar uma troca de prisioneiros no futuro mais próximo. Até lá, deve ser dada aos mediadores uma garantia inequívoca de que não haverá esforço para libertá-lo pela força, em troca de um acordo pelo Hamas para que o deixe encontrar-se com pessoal da Cruz Vermelha, e talvez também com a sua família.

Tudo o resto é manipulação e palavreado.

Fonte: Informação Alternativa