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MPF abre inquérito para apurar morte de Jango

Um ano e meio depois do início de investigações preliminares, o Ministério Público Federal (MPF) abriu inquérito civil público para apurar a causa da morte do ex-presidente João Goulart, em 1976, na Argentina. A medida, que pretende dar mais fôlego e transparência ao processo,  vai requisitar depoimentos de ex-funcionários brasileiros que trabalhavam nas embaixadas do Brasil na Argentina e no Uruguai, além de documentos do antigo serviço secreto dos Estados Unidos e do governo francês.

A exumação do corpo — enterrado em São Borja (RS) — também deve ser pedida pelo MPF e já tem o apoio da Polícia Federal, que vai disponibilizar laboratório e peritos. O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse, por meio da assessoria, que foi informado da necessidade do exame para dar continuidade às apurações, mas que a decisão cabe à família.

A tentativa de esclarecer o suposto envenenamento de Jango a pedido do ex-general Ernesto Geisel começou em 2001, com a instalação de uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Na época, parlamentares visitaram países vizinhos, ouviram relatos de amigos, parentes e integrantes de movimentos contrários ao regime militar. Porém, o relatório, elaborado pelo deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), não foi conclusivo: apontava para circunstâncias duvidosas da morte, mas não conseguiu reunir material consistente sobre os fatos.

O ex-governador Leonel Brizola, cunhado de Jango, foi um dos maiores defensores da tese de assassinato político. Ele também estava na “lista negra” da Operação Condor(1). Todas essas ações caíram no esquecimento. Vez ou outra parlamentares ligados à defesa dos direitos humanos cobram informações. Este ano, a Câmara iria fazer novos requerimentos aos serviços secretos do Brasil, da Argentina e do Uruguai.

“Ainda que não tenha a responsabilidade criminal neste caso, a população brasileira tem o direito de conhecer os fatos, que não podem ser mantidos em segredo. As famílias devem receber a devida reparação moral e material”, afirma o procurador dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul, Júlio Carlos Schwonke de Castro Júnior, defendendo a preservação da memória do ex-presidente.

De acordo com ele, documentos do governo do Uruguai juntados ao processo comprovam a participação de uma empregada na vigilância do ex-presidente. “Sabemos que ele era monitorado constantemente pelo governo brasileiro. Temos relatórios que apontam para detalhes da vida do ex-presidente, como festinhas de aniversário, entre outros”, diz, em referência à Operação Escorpião, que contava com agentes brasileiros e uruguaios infiltrados na casa do ex-presidente em Buenos Aires e nas fazendas da família.

A procuradoria cobra o apoio do Ministério da Justiça e das Relações Exteriores para o cumprimento dos procedimentos internacionais. “Temos que convencer juízes de outros países da importância desses documentos”, afirma, em referência à lentidão dos acordos de cooperação jurídica internacional, que podem levar cerca de seis meses. No Brasil, os arquivos secretos são a maior dificuldade. Os documentos desta época desapareceram, segundo o MPF. No Rio Grande do Sul, o arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) foi queimado.

Os caminhos desta investigação levam, inevitavelmente, em consideração o depoimento do ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio Mário Neira Barreiro. Segundo Schwonke, como o testemunho implica na participação direta de agentes brasileiros, financiados com recursos estatais, em atos ilícitos e de relevância histórica e política, não pode ser esquecido. “A fala dele apresenta contradições que precisam ser apuradas. É isso que pretendemos fazer”, afirma o procurador, que vive uma contradição sobre o futuro da investigação: “Enquanto estiver responsável sobre esse caso, ele não para”, diz, acrescentando logo em seguida que será “muito difícil” chegar à conclusão. “Falta informação e muita gente envolvida nesse processo já morreu”, conclui, descrente.

Aliança de ditadores
 
A Operação Condor consistiu numa aliança político-militar entre os regimes militares do Brasil, da Argentina, do Chile, da Bolívia, do Paraguai e do Uruguai para coordenar a repressão a opositores dessas ditaduras na América do Sul. Uma das ações do movimento foi o sequestro de filhos de presos e perseguidos políticos nas décadas de 1970 e 1980. Também é atribuída ao grupo a execução do ex-ministro do Exército do Chile general Carlos Prats, do ex-presidente da Bolívia Juan José Torres e de outros estadistas.

Entenda o caso

João Goulart assumiu a Presidência em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros sete meses depois da posse, e ficou até o golpe militar em abril de 1964. O ex-presidente se exilou com a mulher e os dois filhos no Balneário de Solymar, no Uruguai. Doze anos depois, sem nunca ter voltado para o Brasil, morreu em Mercedes, na Argentina. Não foi feita autópsia no corpo para comprovar o motivo da morte. O laudo consta apenas “enfermidad”. Na época, a versão oficial foi a de que o ex-presidente sofreu um ataque cardíaco.

Depoimentos do ex-agente de serviço de inteligência do governo uruguaio Mario Neira Barreiro sobre a morte do ex-presidente afirmam que ele teria sido envenenado a pedido do então presidente do Brasil, Ernesto Geisel. A estratégia era trocar os medicamentos que Jango tomava diariamente por veneno.

Barreiro está preso desde 2003 na Penitenciária de Alta Segurança de Charquedas, no Rio Grande do Sul, por assalto a banco. Apesar de evitar falar sobre o assunto, escreveu um livro sobre o período. Segundo ele, o então delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Sérgio Paranhos Fleury, ordenou a morte de Jango depois de uma reunião no Uruguai com dois comandantes da equipe Centauro, do qual Barreiro fazia parte.

Fonte: Correio Braziliense