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Ganhador do Nobel em 2001: Não deixem mercado ditar o câmbio

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Michael Spence, Prêmio Nobel de Economia, diz que o Brasil não deveria deixar os “mercados”, “como o seu histórico recente de fazer tudo errado”, determinar livremente o valor do real. Ele defende mecanismos de controle de entradas de capital para evitar a sobrevalorização cambial.

Spence, que ganhou seu Nobel em 2001, junto com Joseph Stiglitz e George Akerlof, está à frente da chamada Comissão do Crescimento (Growth Commission), um painel de economistas do mundo todo (incluindo o brasileiro Edmar Bacha) que elaborou um relatório de recomendações para países “emergentes” sobre como obter o crescimento rápido e sustentado por longos períodos.

O relatório foi divulgado em junho de 2008, logo antes da crise, e foi visto como uma versão flexibilizada do Consenso de Washington, combinando crença nos mercados com maior destaque ao papel do Estado.

Agora, a Comissão acaba de divulgar um novo documento, que atualiza o relatório à luz das lições da crise global. O novo relatório recomenda que os países emergentes garantam parte do mercado financeiro para as instituições nacionais, e que sejam restritivos em relação aos produtos financeiros complexos que deflagraram a crise no mundo desenvolvido. A seguir, a entrevista:

Como o sr. vê a questão da sobrevalorização cambial em alguns países, como o Brasil, na saída da crise?

Todos os países em desenvolvimento que tiveram alto crescimento, sustentado por um longo período, administraram as suas moedas em alguma medida. Especialmente num ambiente volátil como o atual, faz todo o sentido fazer algum julgamento sobre quais são os níveis razoáveis. É claro que se pode exagerar, mas não acho que a coisa mais sensata a se fazer seja apenas ficar sentado e deixar os mercados de capitais, com o seu histórico recente de fazer tudo errado, valorizarem a sua moeda. Há várias formas de se intervir: pode-se tributar os fluxos de capital, com taxas que caiam se o dinheiro permanecer algum tempo, e pode-se aumentar as reservas e investir no exterior, invertendo o fluxo de capitais, como a China faz.

E o que há de ruim na valorização?

Basicamente, reduz-se o crescimento. No caso brasileiro, acho que um dos maiores desafios é manter os recentes avanços no mercado de trabalho para pessoas que são pobres. Uma boa parte do crescimento dos países em desenvolvimento deriva de empregar em melhores postos de trabalho pessoas que estão em atividades de produtividade muito baixa. Num país com a renda do Brasil, boa parte disso se dá em setores que atendem o mercado doméstico, mas o setor exportador ainda é suficientemente importante para que se deva tomar cuidado com oscilações muito fortes da moeda. Porque, se os investidores tiverem a sensação de que o câmbio é muito volátil, adiciona-se mais um risco e se desincentiva o investimento.

Quais são as novas recomendações para o setor financeiro dos países emergentes?

Em primeiro lugar, apesar de ser bom que um país tenha instituições estrangeiras no seu setor financeiro, o que se viu nessa crise é que essas instituições basicamente obedecem ao governo e ao banco central dos seus próprios países. Assim, se tiverem uma presença grande demais num determinado país, elas não atuarão como parceiras do governo local, da mesma forma que as instituições nacionais o farão, na hora em que o país implementa sua estratégia para lidar com a crise.

A segunda recomendação é que nós realmente não conhecemos aqueles ativos complexos que levaram à crise nos países ricos, e que deve-se ir devagar com eles. Uma fator positivo dos países em desenvolvimento nessa crise é que a presença desses ativos complicados era quase nenhuma, desprezível. Foi uma coisa boa que eu manteria.

O sr. teme que a crise leve à rejeição do modelo de crescimento baseado na abertura para os mercados globais, defendido nos relatórios da Comissão do Crescimento?

Bem, a nossa visão foi de que houve uma enorme falha nos sistemas financeiros dos países avançados. De fato, ela poderia ser interpretada como uma falha mais ampla dos mercados e do capitalismo, e nos preocupamos com isso. Mas eu não acho que, entre os maiores e mais bem-sucedidos países em desenvolvimento, vá haver uma grande mudança na orientação da política econômica.

Esses países hoje têm um entendimento bem profundo sobre a importância do dinamismo do setor privado para puxar o crescimento, e sobre o papel do governo de garantir um ambiente estável para que aquilo ocorra. Eu suspeito que, se houver erros desse tipo, é mais provável que eles aconteçam em países pobres, nos quais o modelo de crescimento não está muito bem estabelecido ainda e onde a política e a economia política são menos estáveis.

Por que esses países são mais vulneráveis?

Porque eles realmente não têm os mecanismos de defesa e as vantagens que países como o Brasil têm, como um governo que pode gastar mais dinheiro, esquemas de redistribuição de renda, um banco central altamente competente, um setor privado vibrante. Eu acho que Brasil, China e Índia terão uma recuperação muito boa, mas estou mais preocupado com alguns dos países menores e mais pobres.

Qual o risco de um retorno do protecionismo no mundo pós-crise?

É uma reação compreensível. Quando você diz aos cidadãos de um país que vai haver um grande déficit público, e que os filhos deles vão pagar no futuro por isso, as pessoas podem até concordar, mas desde que os benefícios do impulso fiscal retornem para o próprio país, e não se transformem em importações. Um dos grandes desafios pós-crise, portanto, é o de evitar que isso aconteça. O G-20, que se tornou uma grande voz de coordenação de políticas econômicas, posicionou-se contra o protecionismo, o que é muito bom.

Outro problema é que os países vão disputar “market-share” (parcelas de mercado) nessa saída da crise. Há um déficit muito grande na demanda agregada global, porque o consumidor americano está poupando mais, por causa das finanças familiares deterioradas. Assim, as estratégias de crescimento de todo mundo não podem dar resultado ao mesmo tempo. Nesse jogo de ganhar market-share, Brasil, China e Índia devem se dar muito bem. Mas outros países, menos bem sucedidos, podem apelar para o protecionismo. Dessa forma, recuperar a demanda agregada global também evita o protecionismo.