Campeonato Brasileiro: o camisa dez saiu de campo
Quando o Santos Futebol Clube tinha um de seus melhores escretes, de vez em quando surgia pela frente um time sem expressão que emperrava a máquina genial. O tempo passava e nada de o zero sair do placar. Num desses jogos, Lula, o técnico do Santos, faltando 15 minutos para o fim da partida olhou para o banco de reservas e chamou o atacante Pitico.
Por Osvaldo Bertolino, para O Outro Lado da Notícia
Publicado 13/11/2009 17:14
“Pitico, vem cá. É o seguinte. O Pelé ficou muito isolado ali na frente. Vai lá e encosta nele, para a gente ter mais opção de ataque”, orientou. “Além disso, nosso meio-de-campo está no maior bagaço. Você volta um pouquinho quando a gente estiver com a bola, para ajudar na armação”, acrescentou.
E fez uma última recomendação: “Só mais uma coisa. O ponta-esquerda deles já matou o Carlos Alberto de tanto correr. Quando eles saírem jogando, você cai ali pela direita e fecha o espaço. Alguma dúvida?” O jogador olhou para o técnico, coçou a cabeça e disparou: “Só uma, seu Lula. Se o senhor acha que eu sou mesmo capaz de fazer tudo isso, por que é que eu ganho só três salários mínimos por mês?” Pitico expressou a criatividade brasileira que tanto despontou em campos como a música e o futebol.
Hoje isso não pertence mais aos campos futebolístcos brasileiros. Vivemos o auge daquilo que Karl Marx chamava de peculiar característica do Rei Midas do capitalismo: tudo o que ele toca, transforma-se em mercadoria. Qualquer perna-de-pau, antes mesmo de se firmar num clube brasileiro, já projeta jogar na Europa pensando em ganhar fortunas. Nos bastidores das competições, a corrupção fervilha. Pode-se dizer que no futebol de hoje — e não só no Brasil —, como dizia Nelson Rodrigues, muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. “Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”, afirmava o escritor.
Título distante
O goleiro da Sociedade Esportiva Palmeiras, Marcos, depois do empate diante do lanterna Sport, 2 a 2, em pleno Parque Antarctica, na noite da quarta-feira (11), deixou isso bem claro. Segundo ele, os mesmos atletas que passeiam com mulheres bonitas e que “fazem filhos” ainda jovens deveriam ter a mesma responsabilidade dentro de campo. “Tem cara que ganha R$ 40 mil, R$ 50 mil, fica rico, e vai pegar um monte de menininha por aí. Se o cara tem capacidade para fazer filho, tem que ter capacidade também para suportar a pressão que é estar no Palmeiras”, desabafou.
Marcos declarou ainda que vários atletas do Palmeiras não tiveram personalidade nesta reta final do Campeonato Brasileiro. Dos últimos 24 pontos disputados, o time alviverde somou apenas 6 pontos. O título, segundo o goleiro, ficou muito distante. Na avaliação do goleiro, muitos jovens não dão a devida importância à reta final do torneio. Marcos acrescentou que uma eventual perda do título nacional será o capítulo mais triste de sua carreira.
Mercado frenético
Ele também comentou o mercado frenético que descaracteriza o vínculo do atleta com o clube. “Ficou muito fácil ser jogador. O cara com 20 anos se não ganhar agora, amanhã pode se transferir para o Corinthians, para o Náutico ou outro clube. Não faltam times. Mas para mim, com 36 anos, ver um título ficar tão distante não é fácil. Eu não terei tantas outras oportunidades. Será uma das maiores decepções da minha carreira. Pelos últimos resultados, você vê que faltou personalidade”, disparou.
O desabafo do goleiro deveria merecer mais reflexões. No fundo, os efeitos apontados por Marcos têm como causa a mercantilização excessiva do futebol. Os clubes perderam as rédeas dos seus destinos para o “mercado” e viraram escravos, assim como os jogadores, dos empresários. Um título futebolístico tem papel tão derivativo quanto mudanças na cotação do peso argentino em relação ao dólar no futuro ou a taxa de juros embutida numa ação da Petrobras.
O importante era competir
O “camisa dez”, aquele jogador clássico que simbolizava a arte do futebol, saiu de campo e com ele o líder com o poder de conduzir o time à vitória. Hoje, o futebol-brucutu é regido pela égide da ciranda financeira e dos poderosos grupos empresariais. No Brasil, depois das gerações de ouro das décadas de 60, 70 e 80, vimos desfilar talentos como Giovanni, Alex, Diego, que sumiram do mapa futebolístico com a nova tática extra-campo.
Aquela velha máxima de que o importante é competir cedeu lugar à disputa acirrada pelos bilhões de dólares que circulam nesse mundo rarefeito. Saiu de cena o jogador respeitado pelo seu talento para entrar o atleta — ou técnico — temido por sua força, por seus gritos. Não há mais, no futebol “moderno”, aquela figura que gozava de um poder não instituído. A Rede Globo de televisão dita as regras, os horários e datas em que as partidas devem ser disputadas.
Final melancólico
Nelson Rodrigues dizia que as seleções brasileiras do passado não ganhavam os jogos nas Copas porque temiam os adversários europeus. Segundo ele, quando nossos atletas viam aqueles jogadores pela frente se sentiam inferiorizados. Afirmava que a seleção brasileira possuía um certo complexo de inferioridade, chamado por ele de “complexo de vira-latas”. Nelson Rodrigues profetizou que quando acreditássemos no nosso próprio potencial, nas nossas próprias qualidade e habilidades, conseguiríamos dominar o mundo da bola. As coisas não aconteceram bem assim.
Foram necessários os gênios de Pelé e Garrincha para nos encher de moral nos campos. Depois vieram Zico, Falcão, Sócrates, Romário, Alex, Giovanni, Robinho. Mas chegaram também, como peças-chaves, Elzo (alguém se lembra dessa invenção de Telê Santana?), Dunga (alguém se lembra da “era Dunga”?), Emerson. E fizeram escola. Chegaram também os contratos com a Nike, com a Ambev, com a Coca-Cola. Chegram os empresários e o noticiário esportivo que fala mais em cifras do quem em gols. E assim o Campeonato Brasileiro deste ano vai chegando melancolicamente ao seu final. Uma pena.