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Ministro boliviano fala a Jô Moraes sobre unidade e diversidade

"A diversidade tem que ser o cimento da unidade nacional", opina o ministro da Presidência da Bolívia, Juan Ramón Quintana, em entrevista à deputada mineira Jô Moraes. Jô integrou uma delegação da Direção Nacional do PCdoB nos últimos comícios da campanha pela reeleição do presidente Evo Morales, nos estados de Pando e de Beni. No deslocamento entre as duas cidades, ela fez esta entrevista com o ministro, que tem uma função semelhante ao chefe da Casa Civil no Brasil.


Jô Moraes vem dos debates do 12º Congresso do seu partido, que aprovou um Programa Socialista onde se caracteriza o povo brasileiro como "um povo uno". Já o processo boliviano liderado pelo MAS do presidente Evo Morales (favorito nas eleições deste domingo, 6) destaca a diversidade e o caráter de um Estado plurinacional, que inclui 36 nações indígenas. Boa parte da "esclarecedora" entrevista, segundo a deputada consistiu em um diálogo entre estas duas construções.

Jô Moraes: Por que as eleições na Bolívia foram antecipadas?

Juan Ramón: Agora temos uma nova Constituição e na nova Constituição está previsto um novo governo. Pela nova Constituição, necessitamos renovar todos os poderes públicos. Agora é hora de refundar o país. Então há novas instituições: novo governo, novo parlamento, novos governadores, novos prefeitos. Além disso, se incorpora pela primeira vez as autonomias departamentais (referentes aos estados) e isto implica eleger representantes regionais (deputados) para constituir as assembléias departamentais. Portanto, é uma transformação radical da arquitetura do estado.

Jô: Quais as principais mudanças estruturais que a Constituição realizou?

Ramón: As mais importantes mudanças se deram nos direitos constitucionais dos cidadãos: Reconhecimento de um Estado plurinacional, que significa reconhecer a existência de 36 povos indígenas que não estavam reconhecidos na Constituição anterior. Direitos, identidade, idioma, valores, tradições, religiões, usos e costumes. Há hoje 36 povos indígenas e cada povo se constitui em uma nação. Então, a soma dessas nações formam o estado plurinacional.

Não se pode pensar a Bolívia a partir apenas das relações Estado/cidadão, quando essas 36 nações convivem sobre a base de valores coletivos, da vida em comunidade. É o que caracteriza esses povos. Esses povos não têm nenhuma lógica democrática liberal. É uma lógica democrática comunitária, de responsabilidade, reciprocidade do povos inteiros. Esta é uma transformação fundamental; o ciclo que se move. Desde a criação da República, os índios não contavam. Os índios eram objeto de genocídio estatal. Eram um grande obstáculo à mentalidade liberal do século 19.

Jô: E qual é o percentual da população indígena na Bolívia?

Ramón: Mais de 60%, (dos quais) 17% indígenas que se reconhecem indígenas.

Jô: O que unifica a Bolívia já que institucionalmente são 36 nações? Que unidade, que instituições, que políticas unificam a Bolívia?

Ramón: A partir de agora todos os valores da igualdade, da cidadania multicultural que, portanto, se assumem na diversidade cultural. A diversidade como o segmento social. Antes o discurso da unidade era um discurso vazio: que somos bolivianos. Sim, somos bolivianos, mas não somos cidadãos. O conceito de cidadania não reconhecia o conceito de identidade cultural, somente o cidadão e pronto. Não o cidadão: valores; identidade; memória coletiva; história comum; território. Isso não existia. Agora existe. A hora é de construir a comunidade imaginária. Tem que se construir um novo imaginário nacional sobre a base diversidade. A diversidade tem que ser o cimento da unidade nacional.

Jô: Como se expressam politicamente essas nações no contexto nacional? Há alguma diferenciação; cota de representação na assembléia federal?

Ramón: Agora os povos indígenas terão sua própria bancada na Assembléia Legislativa. Os povos indígenas terão seus representantes. A nova Constituição obriga todas as instituições a exercitar seu direito à diferença.

Jô: A Constituição prevê uma bancada com base territorial?

Ramón: Há três tipos de representantes no parlamento: representação por população, por território e por povos indígenas. É a representação por circunscrição uninominal; plurinominal e especial para os povos indígenas.

Jô: E que política coesiona a nação boliviana? É a política dos valores comunitários? O que é comum ao cidadão boliviano de cada nação, de todas as nações?

Ramón: Há uma sociedade em permanente construção. Há um imaginário nacional ilusório: um cidadão e pronto. Todos somos iguais perante a lei, mas na realidade isso não funciona. Então, há um reconhecimento, há uma cidadania fracassada. Agora, estamos trabalhando por uma cidadania inclusiva, de reconhecimento das identidades. O que vai no imaginário da unidade nacional será a valorização dessa diversidade. É como escreve um estudioso canadense: o valor da República é só passado. É uma história já encerrada. Hoje, o Estado é plurinacional. Que o Estado republicano é um Estado que devia um selo europeu. Agora é um Estado plurinacional e um exemplo da multiculturalidade.

Jô: Como incorporar politicamente os setores urbanos que tinham vantagens no velho modelo?

Ramón: Neste setor urbano também existem muitos indígenas. Em La Paz a maioria são indígenas aimaras, tem empresários aimaras exitosos que trazem comercio da Coreia do Norte, do Japão, da China, com a mesma eficiência que um empresário de outras origens. Entre os aimaras tem burguesia. Entre os quechua tem a burguesia indígena também, que sempre esteve escondendo sua identidade. Burguesia indígena que enviava seus filhos para estudar nos Estados Unidos. Para que não fossem separados por suas origens indígenas. Uma política do reconhecimento é uma política de consistência.

Jô: A expectativa que vocês têm em relação dos resultados da eleição consolida o caminho de mudança na Bolívia?

Ramón: Sim. Não somente consolida, também aprofunda. Será o momento para aplicar a nova Constituição. Temos vivido mais um processo político delicado. Agora vamos viver uma mudança que tem apoio constitucional. Temos lutado pela constitucionalização da mudança. Agora, a mudança já tem Constituição. Esta é a hora de um processo contra a Constituição anterior. Portanto é um processo que tem Constituição. É para nós um tempo de mudanças, é hora de pensar numa mudança de tempo, de outra época. Agora é a época das grandes transformações que têm legitimidade social, que têm reconhecimento cultural, que têm reconhecimento internacional.

Jô: Hoje, a maioria das casas legislativas apóia o presidente Evo Morales?

Ramón: Na Câmara dos Deputados o governo tem a maioria. No senado, a maioria é de oposição.

Jô: A expectativa é de que o processo eleitoral altere essa composição?

Ramón: Agora vamos lutar para transformar. Vamos fazer maioria absoluta na Câmara dos Deputados e maioria absoluta no Senado.

Jô: A mudança do padrão biométrico foi uma mudança radical. Alguns setores oposicionistas dizem que houve um crescimento muito elevado do registro eleitoral…

Ramón: O crescimento da população se verificou nos últimos 10 anos. No último censo na Bolívia (2001) houve muitas falhas. O crescimento médio da população na Bolívia foi de 3.8%, quase 4% [ao ano].

Jô: O último censo não foi na eleição de três anos atrás?

Ramón: O último censo foi no ano de 2001. A Bolívia tinha 8,3 milhões habitantes Se hoje fizermos um censo provavelmente chegaremos a 11 milhões de pessoas.

Jô: E a metade, 5,1 milhões, serão os eleitores?

Ramón: Sim, 5,3 milhões. Ocorre que, no campo, as pessoas não se registram porque não têm carteira de identidade; não têm certidão de nascimento; não têm identidade.

Jô: Nesse período mais recente expandiram-se os serviços de identidade, de registro de pessoas?

Ramón: Agora é um direito ter acesso à identidade. O governo vai aplicar a política para que todos tenham carteira de identidade, por uma lei de seguro universal e proteção. Porque agora necessitamos ter um novo registro da população.

Jô: Foi uma ousadia a utilização do novo método. A segurança é muito grande com o novo modelo, não?

Ramón: Sim. O que ocorria no passado é que o sistema político era uma impostura política. Se falava em democracia e tinha uma ditadura dos partidos políticos que se uniam para fazerem uma maioria absoluta. Porque o partido mais votado apenas fazia 23%, 24%. Isso era uma tirania política. Os outros governos agiam assim. Ganhamos quatro eleições com mais de 50% A maioria da população votou nos quatro últimos anos a favor do governo. Nunca antes isso ocorreu em toda a história deste país. Hoje há democracia. Hoje há uma democracia real. A gente vota, hoje a gente participa. No passado havia pactos, acordos entre os partidos, para fazer com que sempre tivessem um acordo sob a manga, e se instalou uma tirania partidária.

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