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La Macarena: Onde o exército colombiano enterra crimes de guerra

É preciso esperar dias por um barco, pegar uma estrada abandonada ou voar em aviões sucateados para chegar a La Macarena, onde o Exército da Colômbia enterra segredos e, talvez, crimes de guerra. No cemitério da cidade estão enterrados cerca de 2 mil corpos não identificados. Especula-se que muitos sejam "falsos positivos", jovens civis assassinados e apresentados pelo exército como guerrilheiros mortos em combate.

Fazia três anos que Diana não visitava o filho. A viagem de seu povoado até a cidade de La Macarena, na Colômbia, é longa e cara. "É preciso pegar um barco que só atravessa o rio uma vez por semana e juntar dinheiro durante vários dias para poder pagar." Os camponeses viajam apenas no fim de semana, para vender produtos agrícolas no mercado, visitar a igreja, realizar tarefas burocráticas e comprar insumos ou ferramentas.

La Macarena fica na região do Meta, nas planícies do sudoeste colombiano, e foi o coração da "zona de distensão", uma área de 42 mil quilômetros quadrados (pouco mais que o tamanho da Suíça) que o governo de Andrés Pastrana (1998-2002) desmilitarizou e concedeu à guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) no final de 1998 para promover um processo de paz que durou até 2002.

A paz nunca chegou. Em vez dela, vieram o Exército, a "segurança democrática", o presidente Uribe e o dinheiro do Plano Colômbia – ou seja, veio a guerra. La Macarena se tornou cenário de alguns dos combates mais intensos e coração da Fudra (força de ação rápida) do Exército colombiano.

A única maneira de chegar a La Macarena partindo da capital mais próxima, Villavicencio, é em aviões de carga. São velhos DC-3 que, depois de terem revolucionado a aviação civil nos anos 1930 e participado da Segunda Guerra Mundial, foram aposentados ou são usados para o transporte de bens e passageiros que se acomodam nos espaços vazios. Existe também uma estrada abandonada que liga os dois municípios, mas o caminho, além de longo, é perigoso. É fácil encontrar grupos armados que ainda controlam boa parte das zonas rurais do Meta.

Assim que o avião aterrissa, Bogotá e as grandes cidades modernas, centros de negócios e turismo, tornam-se uma lembrança remota. Ali, a terra fértil parece pintada de vermelho e um grande cartaz mostra o rosto de um militar com pintura de guerra, tendo atrás alguns colegas com armas grandes e uma frase: "Somos gente normal que faz um trabalho excepcional".

O clima é pesado. Não apenas o sol é intenso, como também se respira o ar dos vilarejos colombianos que viveram e viram a guerra com os próprios olhos.

O coveiro de olhos azuis

O único asfalto da cidade cobre uma parte da pista de pouso. O restante é o vermelho da terra indicando as ruas, que são poucas. O cenário lembra as cidadezinhas dos filmes de velho oeste, com uma rua principal e o casario que se dissipa duas ou três quadras adentro. A base da Fudra domina a paisagem na colina, abrigando 20 mil militares, cinco brigadas móveis e vários helicópteros de guerra Black Hawk e MI-17. Os habitantes da comunidade são apenas 3.500, seis vezes menos que os militares.

Jesús Hernández, conhecido como Don Chucho (foto abaixo), tem as mãos parecidas com as de Diana, com terra sob as unhas. Mas Chucho não é um camponês: é o coveiro de La Macarena.

Diana se lembra de Chucho, embora o tenha visto apenas uma vez, há três anos, quando ele enterrou seu filho. Mas não é fácil esquecer Jesús, talvez por causa dos olhos azuis e pequenos, ou pelo aparente desinteresse com que fala de seu trabalho, ou ainda porque, enquanto fala das centenas de corpos dos quais fez autópsia, deixa imaginar as dimensões do cemitério dos chamados NN (não-identificados) de La Macarena.

Lei do silêncio

Só uma cerca de arame separa o cemitério da base. A parte mais próxima dos militares é diferente: não há estruturas de pedra como no resto do cemitério, nem flores ou fotos dos falecidos. De longe, parece um mar de cruzes brancas, cada uma com um número gravado. "Acho que são uns 700 os guerrilheiros que enterrei aqui", conta Chucho, apontando para as cruzes brancas. "Em 2002, quando o Exército voltou, me pediram para cavar algumas fossas. Desde então, nunca mais parei".

Na cidade, é muito difícil encontrar alguém disposto a falar do cemitério ou de quem está enterrado. "Pode estar cheio de 'falsos positivos'", conta um morador que não quer ser identificado, referindo-se aos civis assassinados e apresentados como guerrilheiros mortos em combate. "Os militares trazem os corpos de noite de todos os municípios das redondezas e dizem que enterram guerrilheiros, mas ninguém sabe quem são e ninguém os reivindica".

Tantos NN – que, segundo Chucho, podem ser quase 2 mil – chamaram a atenção da unidade de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral da Nação, que investiga os casos dos "falsos positivos", mas ainda não pôde organizar uma comissão para visitar o cemitério. Segundo um funcionário do governo local, La Macarena é provavelmente a cidade que abriga o maior número de NN enterrados em toda a Colômbia.

Os falsos positivos

O escândalo dos "falsos positivos" – como são chamados os civis assassinados por militares e contabilizados como guerrilheiros mortos em combate – é o maior da história do Exército colombiano. Desde 2002, foram 2 mil casos. Corpos de civis vestidos com trajes camuflados são apresentados como inimigos mortos em combate, para que os militares obtenham uma série de benefícios e recompensas do Estado.

"Cada corpo tem seus trajes de guerrilha e as armas", conta Chucho, o coveiro do cemitério de La Macarena. "Faço a autópsia e enterro cada um com suas coisas. Se eles têm um codinome, escrevo na cruz. Se não, deixo só o número do protocolo do caso da Promotoria." Quando se pergunta sobre os falsos positivos, Chucho nega e fica na defensiva. "Para mim, são apenas NN (não-identificados). Em tantos anos, aprendi a reconhecer os guerrilheiros. Eles têm o cheiro da selva, a cor da selva. Aqui, o que o Exército me traz são guerrilheiros mortos em combate".

Mas Diana não concorda. "Meu filho José Antonio está enterrado aqui", garante, depositando uma flor sobre uma cruz que diz: "Registro 31, 21 de março de 2006" (foto acima). "Ele estava com 24 anos quando o Exército o matou. Era um camponês, não entendia nada de armas, nunca as usou, nunca se meteu com a guerrilha, era um rapaz trabalhador. Quando ele foi 'desaparecido', houve um desembarque de militares no povoado do alto Cachicamo, onde moro. Ele estava com meu vizinho, que se escondeu em casa", conta.

"Quando os soldados foram embora, dois dias depois, o vizinho foi procurar José Antonio, mas não encontrou. A casa estava toda revirada, começaram a procurá-lo por toda parte. Perto de um posto militar, encontraram algumas coisas de meu filho meio queimadas. Foi aí que decidiram me avisar. Fomos até a Promotoria, onde me mostraram as fotos dos últimos guerrilheiros enterrados como NN, e então eu vi e o reconheci. Puseram nele um fuzil, roupa militar e cartuchos. Deram um tiro atrás da cabeça e outro no tornozelo, que estourou seus ossos. É o pior, o pior que pode acontecer com uma mãe", prossegue.

"Guerra limpa"

Tanto movimento da reportagem do Opera Mundi no cemitério deve ter chamado a atenção dos militares da Fudra (força de ação rápida do Exército colombiano), pois um major ligou para o celular de Chucho e, pouco depois, um coronel acompanhado por outros militares apareceu e nos convidou para um encontro do general com os moradores, para decidir sobre a construção de uma estrada pavimentada.

"Desde quando cheguei", comenta o general Pérez, "não escutei queixas sobre o tema dos falsos positivos. Este não é nosso cemitério, apenas estamos perto. Quando ocorrem baixas, os corpos são recolhidos pelo CTI (Corpo de Investigação Técnica) da Promotoria, e eles mesmos levam para o cemitério. Nesta área, felizmente, a guerra é muito limpa, força contra força. Há mortos, mas só em combates regulares. Combatemos diariamente contra o bloco oriental das Farc e nossa missão é eliminá-lo".

Pérez (foto acima) foi diplomata em Roma até pouco meses atrás, quando foi convocado para comandar a Fudra. Ele representa a linha do diálogo do Exército colombiano, a dos comandantes atentos ao tema dos direitos humanos, que entenderam, por exemplo, que agora o país está sujeito à intervenção do Tribunal Penal Internacional e que o promotor Luis Moreno Ocampo estuda bem de perto a questão dos falsos positivos.

Confiança perdida

La Macarena é a parte do país onde se experimenta o que o governo chama de "consolidação integral". Assim que são recuperadas as zonas das mãos dos grupos armados, busca-se consolidar a presença do Estado colombiano e de todas as suas instituições. As plantações de coca são erradicadas, a economia legal é fomentada e o Exército começa a cumprir funções cívicas, tentando conquistar a confiança da população, perdida nos anos de combate.

Antes de voltar para sua cidade, Diana se encontra com Héctor Torres, um defensor dos direitos humanos que tem percorrido todo o Meta a fim de acompanhar as vítimas e convencê-las a denunciar os crimes.

"O medo ainda é grande", conta ele. "Há dezenas de pessoas desaparecidas nos 153 vilarejos deste município, ou centenas se incluirmos os outros municípios. Muitos sabem que seus parentes estão enterrados aqui, mas não falam por medo. É verdade que os combates são intensos nesta zona, mas tampouco podemos nos esquecer de todos estes desaparecidos. Enquanto não ganharmos a batalha contra o medo e a Promotoria não começar a escavar este cemitério, os segredos continuarão enterrados com os NN".

Fonte: Opera Mundi