Trabalhador é agredido e insultado por ser negro e pobre

Os agressores, três estudantes de medicina foram detidos por testemunhas, presos pela policia e autuados por racismo, crime inafiançável. Doze horas depois, entretanto, foram colocados em liberdade provisória. O juiz abrandou o crime ao qualificá-lo como “injuria”. A cidade faz manifestações e protestos contra a impunidade e pede que a universidade expulse os agressores.

“Eu estava indo trabalhar e de repente ouvi eles gritando “ô seu negro, ô seu negro! Senti algo bater bem forte, dolorido, nas minhas costas, me desequilibrei e cai. É a primeira vez que eu sou agredido por ser negro”
Geraldo Garcia, 55 anos, agredido às 6 horas da manhã numa das principais avenidas de Ribeirão Preto.

O assunto já é tratado como mais um vergonhoso caso de impunidade nacional. Mas até agora, a prefeita democrata de Ribeirão Preto não condenou com veemência o chicote de borracha que os rapazes que cursam medicina providenciaram para açoitar o auxiliar de serviços gerais, Geraldo Garcia, de 55 anos.

A agressão ao senhor Geraldo é mais um emblema dessa selvageria. Por aqui, tudo se confunde, amortecendo nossa sensibilidade, assassinando nossa esperança. Em geral, quando se fala em preconceito, pensa-se obrigatoriamente na imagem do flanelinha se aproximando do carro e o motorista sentindo medo. Por aqui, seria mais prudente para o flanelinha temer alguns motoristas.

O senhor Geraldo é um homem negro, pobre – um homem simples, de fala também simples e baixa. E é também um homem forte e não teme a rusticidade do trabalho ou da cidade. Na madrugada – seis da manhã – de sábado, 2 de dezembro, como faz todos os dias, estava indo de bicicleta, trabalhar.

Na mesma madrugada, três estudantes de medicina, brancos, “de classe média alta”, vagabundeavam na Avenida Francisco Junqueira, quando avistaram um senhor negro, pobre, indo trabalhar na simplicidade de sua bicicleta.

Longe das comédias do canal Sony e dos desenhos animados japoneses, alguns cretinos sentem tédio. E um cretino entediado é um valente ao avesso. É um covarde – às vezes tomado pela brutalidade e pela ignorância. A falta do que fazer, do que pensar e de valores a defender faz a crendice tomar conta de uns e a selvageria se apoderar de outros.

O senhor Geraldo tinha o que fazer – ele estava indo trabalhar. E tinha também no que pensar: no salário baixo, na família, nas contas, na avenida eternamente em obras e esburacada, ameaçando o equilíbrio de sua bicicleta. Mas o ajudante de serviços gerais não poderia pensar – e nem prever – a violência que impera no seio de desocupados com dinheiro, tempo livre, carro do ano e a certeza da impunidade.

Com os olhos fixos na avenida, margeando o rio aparentemente calmo, o senhor Geraldo ouviu, de madrugadinha, os insultos “ô seu negro, ô seu negro!”. Sentiu mais que palavras, sentiu a pancada de algo bater bem forte, dolorido, nas suas costas. Se desequilibrou da bicicleta e caiu. A bicicleta foi longe, ele também. Machucou a mão, a perna, sangrou. Suas costas ficaram marcadas pelo tapete de borracha do carro dos agressores. Tapete novo, de borracha, premeditadamente improvisado como lança, palmatória, chicote e açoite.

Num posto de combustível havia um motorista e mais dois vigilantes, que tinham saído de um evento e testemunharam as agressões que o senhor Geraldo sofreu, ouviu e sentiu.

Testemunharam que, de carro, os agressores se aproximaram e o passageiro desferiu um golpe nas costas do senhor Geraldo, com um tapete de borracha enrolado, e gritando “ô seu negro, ô seu negro!”. Os três vibraram com a ação e segundo as testemunhas ainda fugiram comemorando a queda do ajudante geral.

Se já é repugnante escrever sobre a covardia, entendo que deva ser ainda mais repugnante e inaceitável presenciá-la. As testemunhas entraram em outro carro, perseguiram e pararam o veículo dos agressores. A Polícia Militar os levou ao 1º Plantão Policial, no centro. O delegado Mauro Coraucci, que estava de plantão, autuou o trio em flagrante por racismo. O crime de racismo é inafiançável no Brasil e prevê pena de um a três anos de prisão.

O juiz abrandou o crime ao qualificá-lo como “injuria”. A libertação dos três agressores ocorreu por volta das 20h, do mesmo sábado. Emílio Pechulo Ederson, de 20 anos, Felipe Grion Trevisani, de 21, e Abrahão Afiune Júnior, de 19, foram soltos mesmo tendo agredido pelas costas um trabalhador, de 55 anos, que seguia, para o trabalho, com uma marmita na sua bicicleta.

As câmeras fotográficas registraram a testa franzida, o olhar dolorido, resignado e infeliz do trabalhador agredido. Sua boca parecia querer falar alguma coisa. Seu Geraldo não disse quase nada, embora tenha revelado quase tudo. Com as marcas do tapete de borracha nas costas, o ajudante geral é o símbolo deste momento que Ribeirão vive – ou tanta viver. E símbolo só é símbolo quando tem compromisso com o seu tempo. E vivemos um tempo de silêncio por aqui.

Disseram que a cidade haveria de crescer e a prosperidade poderia chegar com rapidez para todos. Ao invés do crescimento e da prosperidade convivemos com uma cidade cada vez mais brutalizada pela injustiça social e pela violência do poder. E, agora, para aumentar nossa miséria, convivemos com a violência dos tapetes de borracha nas costas, que em todas as manhãs, de todos os dias insistem em açoitar e deixar as marcas em todos nós.

Vivemos, por aqui, um tempo democrata de silêncio. Um tempo, onde a crendice toma conta de uns e a selvageria se apodera de outros. É um tempo que alguns imaginam sem lei e completamente afastado dos códigos morais. De um lado a covardia, de outro o medo. Tudo se confunde.

Por Djalma Batigalhia, de Ribeirão Preto