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O Brasil no futuro da crise mundial

A negociação para liberalização comercial conhecida como rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e as negociações sobre clima de Copenhague, no ano passado, mostraram Estados nacionais incapazes de fixar regras consensuais capazes de sobrepor-se à anarquia internacional.

Por Sergio Leo, no jornal Valor Econômico

Curiosamente, saiu de outro ambiente, o das finanças internacionais, mais apegado ao livre jogo das forças de mercado, o maior avanço de 2009 nas articulações estatais de regulação e controle. Fortalecido pela crise financeira, o centro desse avanço foi o G-20, com algumas das mais influentes economias desenvolvidas e em desenvolvimento.

A incapacidade dos países para reduzir as distorções no comércio internacional e para estabelecer um novo modelo de desenvolvimento menos agressivo às condições de vida na Terra levantaram enorme discussão sobre a falência do multilateralismo – e a constatação de que, na prática, parte da carência de decisões da comunidade internacional nasce da perda de força das grandes potência e da necessidade de abrigar os interesses de potências emergentes.

Se, no comércio e na discussão sobre mudança do clima, a incorporação de uma nova elite negociadora resultou em impasses ainda não resolvidos, as discussões sobre a crise financeira vêm estabelecendo novas formas de relacionamento entre o mundo desenvolvido e o em desenvolvimento.

Saiu da retórica – ainda que em passos acanhados – a discussão sobre mudanças no equilíbrio de poder no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial; países em desenvolvimento – o Brasil incluído – participam agora de organismos responsáveis por estabelecer normas bancárias e do mercado de valores; governos antes submetidos unilateralmente a modelos de supervisão estão engajados na formulação de um novo sistema de avaliação mútua de políticas econômicas e financeiras.

Os impasses na OMC e na ONU se deram, em parte, porque ruiu o antigo sistema de decisões no qual um pequeno grupo de países, desde o pós-guerra, estabelecia as normas de governabilidade mundial (a rodada de Doha, por exemplo, se encaminhava para um acordo tímido, acertado entre Estados Unidos e União Europeia, quando as demandas dos países pobres e em desenvolvimento brecaram a possibilidade de decisões sem concessões significativas dos países desenvolvidos). A saída dos impasses, segundo os analistas, só se dará com a formação de consenso em um grupo pequeno, maior que os anteriores, mas capaz de traduzir as demandas de um conjunto maior de nações.

A nova articulação internacional na finanças, em busca de saída da crise, é tocada também por um grupo pequeno do qual o Brasil faz parte. O G-20 saiu-se mal em sua primeira tentativa de concerto de nações, no fim de 2008, quando seus integrantes comprometeram-se a não baixar nenhuma medida protecionista nos meses seguintes. Três meses depois, quase todos os países haviam descumprido a promessa. Neste ano, o grupo enfrentará seu maior desafio: encontrar uma solução para o impasse entre EUA e China (que condensa um impasse maior, entre economias com grandes superávits em suas contas externas e os países deficitários).

Os Estados Unidos acusam a China, com sua moeda desvalorizada, de contribuir para prolongar a crise, ao gerar enormes superávits comerciais e financeiros que alimentam a liquidez global, a disponibilidade de dinheiro para inflar bolhas especulativas. A China acredita que a atual estagnação japonesa nasceu da valorização do yen em relação ao dólar nos anos 80, por motivos semelhantes aos apontados hoje contra ela, e acusa os EUA de fugir às responsabilidades, por serem os americanos os maiores responsáveis pelo excesso de liquidez internacional, com seus juros baixíssimos e seu consumismo movido pelo crédito sem freios.

Enquanto não enfrenta testes decisivos, o G-20, pelo menos, contribuiu para ampliar a articulação entre os formuladores de política. Ainda que, na prática, cada governo tenha saído individualmente socorrendo suas próprias economias, houve preocupação em evitar que as medidas nacionais tivessem significativas repercussões negativas sobre as outras economias. No ano passado, toda grande decisão de política econômica no países que formam o G-20 foi seguida imediatamente por contatos de alto nível e teleconferências, para intercâmbio de informações e esclarecimentos – como puderam constatar, no Brasil, as autoridades do Banco Central e do Ministério da Fazenda.

Ao lado do diálogo, os países, em abril, decidiram, por consenso, aumentar o capital disponível no Fundo Monetário Internacional, para socorrer economias em dificuldades. Neste ano, uma sucessão de reuniões de técnicos, autoridades e governantes deve terminar, em novembro, com um encontro dos chefes de Estado do G-20, no qual se espera decidir a nova redistribuição de 5% das cotas – e poder de decisão – dos sócios do FMI, com perda para países europeus e ganhos (pequenos, ainda) para países em desenvolvimento, como o Brasil, que já passaram a ter representação no Comitê da Basileia de Supervisão Bancária e na instituição que coordena as comissões de valores do mundo.

Já na próxima reunião anual do FMI, em abril, os ministros de Fazenda dos países do G-20 deverão discutir uma proposta americana aceita até pelos chineses na cúpula de setembro do G-20, em Pittsburgh, para um mecanismo de avaliação de política econômicas do grupo e elaboração de propostas e prognósticos. Mais uma vez o tema da subvalorização da moeda chinesa estará em debate, assim como as ameaças permanentes levantadas pelo atual excesso de liquidez nos mercados internacionais. É uma discussão que merece ganhar maior atenção dos analistas de política externa no Brasil.