Valton Miranda Leitão – A Nau dos Insensatos
O escritor alemão do século XV Sebastian Brant escreveu um poema satírico sobre a insensatez do homem que vagueia num navio fantasmagórico rumo ao abismo.
Publicado 13/01/2010 11:56 | Editado 04/03/2020 16:34

Naqueles tempos, alguns navios eram realmente usados como prisões ou hospícios que navegavam nos rios europeus. Quando Erasmo de Roterdan escreveu o seu Elogio da Loucura, contrastando a sabedoria do delírio com a loucura da sanidade, pensava também na insensatez humana que seu amigo e contemporâneo Thomas Morus negava escrevendo a Utopia.
Nessa ilha utópica, os homens eram felizes, não havia miséria nem corrupção e os governantes somente tinham que administrar criaturas bondosas, cordiais, sensatas que cooperavam sem vacilação para a felicidade coletiva. Dessa forma, Morus descentrava o homem da sua maldade intrínseca para um lugar hiperbólico, no qual a humanidade é essencialmente bondosa.
Quando Freud escreveu O Mal Estar na Civilização, não poderia imaginar que o utopismo de Morus seria praticamente liquidado pela combinação nefanda da agressividade destrutiva do homem com sua invenção do lucro capitalista, que chega ao apogeu na sociedade de consumo. A combinação demoníaca, que tem em Plutão seu gênio maligno, não se detém diante de nada na sua marcha insensata, pois os enormes prejuízos do último colapso neoliberal e a ameaça de destruição pelo aquecimento do planeta, apenas aumentaram a ganância do sistema do capital.
Freud numa passagem pessimista do seu livro, diz: “… o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”. O criador da psicanálise está se referindo ao aumento constante do sofrimento da humanidade ao tentar dominar a natureza e construir normas jurídico-políticas, sendo, entretanto, incapaz de controle sobre seu inconsciente. Por outro lado, o gigantesco navio do Capital Global feericamente iluminado, carrega no seu bojudo ventre a minoria arrogante e gananciosa da humanidade, enquanto a maioria deslumbrada aplaude em cada porto o travestido representante do deus do ouro.
O fracasso da conferência do clima em Copenhague está estreitamente relacionado com esta dinâmica que impulsiona a humanidade atual. A psicose paranóica dominante na cultura ocidental contemporânea escanteou as neuroses individuais e coletivas, fazendo aliança com o individualismo narcísico, tomando o comando do transatlântico fantasma. A fantasmagoria visível não denuncia facilmente a destruição invisível que carrega. A invisibilidade destas complexas relações é talvez o maior problema para o controle das emissões de gases que produzem o efeito estufa (CO2 e Metano).
Apesar do conhecimento de que o derretimento das geleiras polares, o aumento da temperatura oceânica, o incremento da temperatura média no planeta, a destruição das florestas, os tremores de terra, os furações e tufões serem fenômenos mutuamente geradores de destruição, não se consegue responsabilizar claramente os autores do desastre. Os países ricos dizem que não podem pagar a conta porque sua grande riqueza lhes foi dada por Deus, esquecendo naturalmente seu sujo passado colonial, enquanto os do meio campo, como o Brasil, gritam que é preciso destruir um pouco mais de floresta para ficar mais rico, e os pobres africanos afirmam que os leões, hipopótamos e os elefantes estão em extinção.
Nessa geléia, geral falando para uma assembléia aturdida, Hugo Chavez dá o diagnóstico: o fantasma do capitalismo ronda esta conferência. A ciência, dividida entre os que majoritariamente aceitam a destrutividade da ação humana e os geofísicos e astrônomos em minoria que acreditam na tendência da terra a orbitar elipticamente em torno do sol como responsável pela próxima glaciação daqui a 200 anos, favorece a indefinição para uma urgente tomada de decisão. Portanto, entre o crematório e a geleira sentimos que existe algo de podre no reino da Dinamarca. Freud caso vivo diria: alea jacta est (a sorte está lançada).
Valton Miranda Leitão é médico psicanalista
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