Valton Miranda Leitão – A Nau dos Insensatos

O escritor alemão do século XV Sebastian Brant escreveu um poema satírico sobre a insensatez do homem que vagueia num navio fantasmagórico rumo ao abismo.

Artigo Nau

Naqueles tempos, alguns navios eram realmente usados como prisões ou hospícios que navegavam nos rios europeus. Quando Erasmo de Roterdan escreveu o seu Elogio da Loucura, contrastando a sabedoria do delírio com a loucura da sanidade, pensava também na insensatez humana que seu amigo e contemporâneo Thomas Morus negava escrevendo a Utopia.

Nessa ilha utópica, os homens eram felizes, não havia miséria nem corrupção e os governantes somente tinham que administrar criaturas bondosas, cordiais, sensatas que cooperavam sem vacilação para a felicidade coletiva. Dessa forma, Morus descentrava o homem da sua maldade intrínseca para um lugar hiperbólico, no qual a humanidade é essencialmente bondosa.

Quando Freud escreveu O Mal Estar na Civilização, não poderia imaginar que o utopismo de Morus seria praticamente liquidado pela combinação nefanda da agressividade destrutiva do homem com sua invenção do lucro capitalista, que chega ao apogeu na sociedade de consumo. A combinação demoníaca, que tem em Plutão seu gênio maligno, não se detém diante de nada na sua marcha insensata, pois os enormes prejuízos do último colapso neoliberal e a ameaça de destruição pelo aquecimento do planeta, apenas aumentaram a ganância do sistema do capital.

Freud numa passagem pessimista do seu livro, diz: “… o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”. O criador da psicanálise está se referindo ao aumento constante do sofrimento da humanidade ao tentar dominar a natureza e construir normas jurídico-políticas, sendo, entretanto, incapaz de controle sobre seu inconsciente. Por outro lado, o gigantesco navio do Capital Global feericamente iluminado, carrega no seu bojudo ventre a minoria arrogante e gananciosa da humanidade, enquanto a maioria deslumbrada aplaude em cada porto o travestido representante do deus do ouro.

O fracasso da conferência do clima em Copenhague está estreitamente relacionado com esta dinâmica que impulsiona a humanidade atual. A psicose paranóica dominante na cultura ocidental contemporânea escanteou as neuroses individuais e coletivas, fazendo aliança com o individualismo narcísico, tomando o comando do transatlântico fantasma. A fantasmagoria visível não denuncia facilmente a destruição invisível que carrega. A invisibilidade destas complexas relações é talvez o maior problema para o controle das emissões de gases que produzem o efeito estufa (CO2 e Metano).

Apesar do conhecimento de que o derretimento das geleiras polares, o aumento da temperatura oceânica, o incremento da temperatura média no planeta, a destruição das florestas, os tremores de terra, os furações e tufões serem fenômenos mutuamente geradores de destruição, não se consegue responsabilizar claramente os autores do desastre. Os países ricos dizem que não podem pagar a conta porque sua grande riqueza lhes foi dada por Deus, esquecendo naturalmente seu sujo passado colonial, enquanto os do meio campo, como o Brasil, gritam que é preciso destruir um pouco mais de floresta para ficar mais rico, e os pobres africanos afirmam que os leões, hipopótamos e os elefantes estão em extinção.

Nessa geléia, geral falando para uma assembléia aturdida, Hugo Chavez dá o diagnóstico: o fantasma do capitalismo ronda esta conferência. A ciência, dividida entre os que majoritariamente aceitam a destrutividade da ação humana e os geofísicos e astrônomos em minoria que acreditam na tendência da terra a orbitar elipticamente em torno do sol como responsável pela próxima glaciação daqui a 200 anos, favorece a indefinição para uma urgente tomada de decisão. Portanto, entre o crematório e a geleira sentimos que existe algo de podre no reino da Dinamarca. Freud caso vivo diria: alea jacta est (a sorte está lançada).

Valton Miranda Leitão é médico psicanalista

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