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Rabelo: maior desafio comunista é retomar processo revolucionário

Ao ser entrevistado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) no final do ano passado, o presidente do PCdoB, Renato Rabelo, fez um balanço da aplicação da teoria marxista-leninista ao longo da história. Ele colocou que “é possível construir outro tipo de Estado, dirigido pelos trabalhadores, que se coloque decididamente do lado do povo”, e que, para isso, o maior desafio da ideologia comunista na atualidade é “retomar o processo transformador revolucionário”.

Renato Rabelo - Maurício Moraes

Unesp: O comunismo é a melhor opção de ideologia para o mundo?
Renato Rabelo: Exatamente agora, quando estamos vivendo a terceira maior crise do capitalismo, voltou-se a falar muito de Karl Marx. Seus livros passaram a ser novamente procurados em vários países, inclusive na Alemanha, onde nasceu. A ideologia comunista, assim chamada, foi estruturada a partir justamente do pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, na metade do século XIX. Estas ideias, por sua vez, se desenvolveram num ambiente em que houve aprofundamento e florescimento da ciência social. Darwin, Hegel e outros gigantes do pensamento humano criaram nesse período suas teorias. Neste contexto, Marx e Engels elaboraram a teoria revolucionária socialista e comunista, que propunha o fim da exploração do homem pelo homem. Foi então que Marx escreveu sua obra máxima, O Capital, onde analisou detalhadamente a estrutura do sistema capitalista, suas contradições e perspectivas. A primeira experiência concreta de socialismo surgiu com a Revolução Socialista de 1917, na velha Rússia, sob direção do líder Vladimir Lênin. Ficou provado que era possível substituir o capitalismo por um sistema mais avançado, o socialismo, inaugurando o surgimento de Estados e sociedades socialistas, que acabou condicionando a dinâmica do século XX e moldou sua geopolítica mundial. Dentro desta concepção o comunismo seria uma fase superior e avançada do socialismo, etapa que ainda não foi possível ser atingida. A primeira experiência de implantação do socialismo na União Soviética revelou, entretanto, insuficiências próprias de um estágio novo de desenvolvimento da humanidade. Mas várias experiências de construção do socialismo estão em andamento, como é o caso da República Popular da China — que agora em outubro comemora 60 anos de implantação — o exemplo da República Socialista do Vietnã, da República Democrática Popular da Coreia, a República de Cuba e do Laos, entre outros.

Unesp: Por quê?
RR: A crise que enfrentamos atualmente demonstra de forma cabal a impossibilidade de o capitalismo permitir o pleno desenvolvimento humano em todos os seus múltiplos aspectos. O capitalismo já foi no passado um sistema que contribuiu decisivamente para o progresso da humanidade, desenvolvendo as forças produtivas a partir do mercantilismo. Hoje, entretanto, não é possível incorporar o conjunto da humanidade ao sistema capitalista, que por sua natureza intrínseca está destinado a buscar o lucro máximo. Objetiva e subjetivamente criaram-se os limites que impõem questionamentos recorrentes ao sistema e que demonstram a natureza anti-civilizatória do capitalismo no mundo. Trata-se de um sistema esgotado historicamente — embora ainda seja dominante política e ideologicamente. Sua própria dinâmica faz emergir a necessidade de outro sistema, que lhe seja superior, posto que resolve a contradição entre produção social e apropriação privada. Está superado o sistema cujo Estado que lhe corresponde age sempre a favor do privado em detrimento do público e do social, alternando sua ação entre intervir fortemente na economia, ajudando os monopólios nos momentos de crise, e retirando-se dela quando a oligarquia financeira já foi salva. É possível construir outro tipo de Estado, dirigido pelos trabalhadores, que se coloque decididamente do lado do povo.

Unesp: Qual é o objetivo principal do seu partido?
RR: O objetivo essencial do Partido Comunista do Brasil é alcançar a etapa de transição do capitalismo ao socialismo, nas condições do Brasil e do mundo contemporâneo. O socialismo, como já disse, tem como propósito primordial resolver a contradição essencial do capitalismo: produção cada vez mais social em conflito crescente com a forma de apropriação privada e concentrada do capital, da renda e da riqueza. O socialismo, como sociedade superior, deve distribuir os bens e a riqueza conforme o resultado objetivo do desenvolvimento científico e tecnológico, do salto das forças produtivas, que o capitalismo por sua própria natureza se tornou incapaz de colocar a serviço da humanidade, mas apenas em mãos de uma minoria. O socialismo é uma sociedade de alta produtividade do trabalho, acima do nível da sociedade capitalista, onde primordialmente se alcançará maiores avanços civilizacionais. Entretanto, a experiência histórica acima descrita demonstra que a concretização de uma nova formação social e econômica não pode seguir um modelo único. Adota, em cada realidade concreta, formas nacionais particulares de sua cultura, sua economia e sua formação política, em função também da correlação de forças do sistema de poder mundial. O PCdoB — junto com seus aliados — luta pela construção de uma nova formação política, econômica e social avançada. Somente o socialismo é capaz de sustentar a soberania da nação, a valorização do trabalho, no esforço comum da edificação de uma nação democrática, solidária, que abra caminho para um maior avanço civilizacional.

Unesp: Com a queda da URSS, o comunismo cedeu espaço ao capitalismo. Quais são os planos para o fortalecimento do comunismo no século XXI?
RR: A União Soviética enfrentou o desafio de ser uma experiência inédita na história mundial. Mesmo sob circunstâncias adversas, o socialismo conheceu um processo de edificação. O seu legado, nesta fase inaugural é muito precioso. A primeira grande conquista da URSS foi de ter se transformado de país atrasado, no curso de 20 anos, numa grande economia industrial. Esse processo foi massivo e acelerado, sustentado durante décadas, por índices de crescimento econômico entre os mais elevados do mundo. Para além da igualdade jurídica que a democracia burguesa apenas formalmente proclama, a democracia socialista canalizou considerável parte da riqueza produzida para a elevação da qualidade de vida material e cultural do povo. Quanto aos direitos políticos, a URSS consagrou o sufrágio universal pleno em sua Constituição de 1936. As mulheres adquiriram o direito de voto já em 1917. Durante a Segunda Guerra Mundial — com uma nova base industrial, seus trabalhadores e suas nacionalidades com motivos de sobra para defendê-la — a URSS enfrentou vitoriosamente a peste nazi-fascista, derrotando os exércitos de Hitler. No entanto, não houve capacidade — por parte dos dirigentes soviéticos da época — de conceber que se esgotara o modelo ultra-centralizado que proporcionara a industrialização acelerada, no período anterior à Segunda Guerra. Enquanto isso o capitalismo ganhou impulso com uma nova revolução técnico-científica aumentando o contraste entre os dois sistemas, com vantagem para o capitalismo. Com a queda do crescimento econômico, em quantidade e qualidade, o padrão de vida do povo deixou de se elevar e a confiança no socialismo é afetada. Prevaleceu, também, um rígido sistema político-institucional que conteve a expansão e o florescimento da democracia socialista. O Estado agigantou-se e se tornou impermeável ao controle social. O Partido se fundiu com ele e exerceu tutela sobre as organizações dos trabalhadores. Este ambiente trouxe inclusive conseqüências negativas para o avanço das ciências, da cultura, e do próprio marxismo. O marxismo-leninismo, elevado à condição de doutrina oficial de Estado, estancou sua evolução vitimado pelo dogmatismo. O ciclo inaugural do socialismo representado pela URSS representa a “infância” da existência histórica do socialismo. Deram prosseguimento a esta existência — em novas bases — os países que resistiram e mantiveram a perspectiva e o compromisso de construí-lo. Agregaram-se a essa trajetória as jovens experiências na Ásia e na América Latina, como na China, Vietnã, Laos, Coreia e Cuba. Mais recentemente três países da América do Sul se auto-proclamaram em processo de transição do capitalismo para o socialismo, como a Venezuela, o Equador e a Bolívia. A este rol se agrega a experiência democrática avançada na África do Sul. Os partidos comunistas — enquanto centros dirigentes de processos revolucionários — são importantes para o êxito do fortalecimento desta concepção socialista e comunista, mas também estão sujeitos a processos de degeneração e descaracterização. Por isso é fundamental a construção de partidos que tenham vínculo com os trabalhadores, liderança política entre o povo e hegemonia entre as forças políticas avançadas. Este é o desafio do comunismo no século XXI.

Unesp: O Manifesto Comunista foi publicado há mais de um século. Os preceitos de Marx e Engels ainda cabem ao atual panorama capitalista mundial?
RR: Como mencionei no início desta entrevista, Karl Marx voltou a ser debatido na atualidade. O Manifesto Comunista foi escrito e muito divulgado pelo mundo inteiro, e ainda hoje conserva sua capacidade de analisar o fenômeno do capitalismo. Naquele texto, Marx e Engels fizeram uma síntese do regime capitalista que sucedeu ao feudalismo, identificando o progresso econômico e o ascenso científico que proporcionou em relação às formações anteriores. Mas denunciaram claramente que a partir de certo grau de desenvolvimento as relações de produção da sociedade burguesa deixaram de corresponder às forças produtivas em crescimento e tornaram-se freio ao seu progresso. Os sintomas destas contradições, dizia o Manifesto, eram as crises econômicas que abalavam todo o sistema capitalista. Muito tempo depois, Lênin insistiu, em 1917, que Marx usou a palavra “socialismo” para se referir ao primeiro estágio do comunismo, caracterizado pela propriedade comum dos meios de produção, a ausência de classes econômicas, mas que mesmo assim seria uma fase ainda incapaz de satisfazer plenamente todas as necessidades materiais do povo. Por isso seria inevitável a luta para avançar neste processo e conquistar estágios mais elevados da sociedade humana.

Unesp: Qual é o maior desafio do comunismo atualmente?
RR: O maior desafio da ideologia comunista na atualidade é retomar o processo transformador revolucionário inaugurado no início do Século XX, nas condições da contemporaneidade, onde o capitalismo demonstra a incapacidade de conduzir a humanidade ao pleno desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Para isso será necessária a união dos trabalhadores com todo o povo para derrotar política e ideologicamente o capitalismo e construir, assim, um novo Estado de base democrática e popular.

Fonte: Blog do Renato