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Uri Avnery: A batalha pela Segunda República Israelense

Muitas importantes lutas em Israel clamam à consciência das pessoas. Dentre outras, listadas ao acaso:

A luta pela preservação do meio ambiente e o futuro do planeta.

A luta pela democracia, contra tendências fascistas.

A luta por direitos humanos e direitos civis.

A luta feminista.

Por Uri Avnery

A luta pelos direitos de gays e lésbicas.

A luta por justiça social e solidariedade social.

A luta por direitos iguais para cidadãos árabes israelenses.

A luta contra a discriminação dos judeus orientais.

A luta pela separação entre religião e Estado.

A luta pelos direitos dos animais.

Etc. etc. etc.

O que têm em comum todas essas causas?

Todas elas são parte de uma visão de mundo liberal, “progressista”.

Cada uma e todas essas lutas merecem devoção sincera, sobretudo entre os jovens.

Mas, afinal de contas, todas essas lutas servem hoje como substitutas da batalha principal – a luta pela paz com o povo palestino.

Há risco de que essas lutas convertam-se em algo semelhante a “cidades-refúgio” para jovens idealistas, que aspiram a dedicar-se a uma causa nobre, mas não têm qualquer vontade de engajar-se na luta principal.

Dado que cada uma dessas lutas e todas são, sim, importantes, e visam a uma boa causa, nada se pode dizer contra esses ativismos e ativistas. Há muitas organizações que operam nesses campos, e milhares de pessoas maravilhosas – homens e mulheres, velhos e jovens – devotam-se a essas causas. Eu também me alistaria sem resistir a qualquer delas, não fosse…

Não fosse o fato de que todas essas causas – juntas ou separadamente – estão hoje drenando a vida e a energia da luta pela paz.

Do meu ponto de vista, a paz é o objetivo superior a todos os demais, pela suficiente razão de que o sucesso de todas as demais lutas depende do resultado da luta pela paz.

A guerra sem fim contra os palestinos cria uma realidade de ocupação e opressão, de morte e destruição, de brutalidade e crueldade, de degeneração moral e de bestialidade geral. Que tipo de ideal pode ser alcançado nessa situação? O feminismo, por exemplo, poderia realizar suas melhores aspirações num país tomado pelo mais irracional e absoluto militarismo chovinista? Que animais se poderão salvar da tortura, quando a rotina é torturar seres humanos? Rios, florestas, pássaros e leopardos podem ser salvos, se chovem bombas de fósforo branco sobre quarteirões inteiros e famílias inteiras?

A questão principal, é claro, é: por que pessoas conscientes tanto se dedicam a fugir do problema da paz? Por que tantos tanto fazem para não lutar pela paz?

A resposta é clara: “paz” virou palavrão; pacifistas viraram perigosos delinquentes, em Israel. Gente decente não quer ser vista em companhia da paz e dos pacifistas. “Paz” é palavra que não se pronuncia entre israelenses polidos.

E as pessoas fazem os mais complicados malabarismos verbais, verdadeiras acrobacias, para dizer-sem-dizer, se o assunto aproxima-se de “paz”. Políticos falam sobre “o fim do conflito”, “status permanente”, “acordo político”, só para evitar a palavra tabu.

Por quê?

Primeiro, porque a palavra “paz” foi tão repetida, que praticamente perdeu todo o conteúdo. Foi tantas vez mal empregada que se consumiu, gastou-se. Parafraseando o filósofo britânico Samuel Johnson: “A paz é o último refúgio dos canalhas”. Ou, como no slogan do império do mal de 1984, de George Orwell: “Guerra é Paz”.

A esperança de paz foi tantas vezes erguida e tantas vezes espatifada, que a própria esperança gera suspeita e temor. O que aconteceu à maior esperança de todas, o Acordo de Oslo e o histórico aperto de mãos de 1993? O que aconteceu à jornada triunfal de Ehud Barak a Camp David, em 2000? Não se pode perguntar às pessoas da rua o que acham que aconteceu lá, quem são os culpados. O homem da rua vê o que vê: tanto esperamos pela paz, e veio a guerra.

As coisas chegaram a tal ponto, que até os movimentos pela paz têm medo de incluir a palavra em seus documentos políticos. Até os pacifistas procuram sinônimos.

Já praticamente todos aceitam que, para abordar os jovens, não se deve falar de paz. Deus nos livre! Os jovens estão convencidos de que a guerra é estado permanente, que a paz não passa de ilusão, de frase vazia, coisa de velhos. Os jovens sentem-se condenados, sentem que eles e seus filhos e os filhos de seus filhos (se sobreviverem e se permanecerem em Israel) têm e terão de ir à guerra, sempre, sempre, até o final dos tempos. Portanto, não perdem tempo nem energia em ‘conversas de paz’. Melhor cuidar de salvar os últimos leopardos do deserto da Judeia, ou as águias das Colinas de Golan, do que cuidar de pombas da paz que nenhum jovem israelense jamais viu.

A esquerda israelense vive muito orgulhosa por a solução “Dois Estados para Dois Povos”, que nasceu como visão de um punhado de malucos, ser hoje consenso mundial. Que grande vitória! Sim, mas é vitória que mal se vê, agora que o slogan “Não temos parceiros para a paz” foi convertido em credo nacional em Israel.

Em termos contemporâneos, a paz é out; o resto é in.

Essa semana, o jornalista Gideon Levy observou, em entrevista na televisão, que no atual parlamento de Israel não há nenhum judeu para o qual a paz seja o principal objetivo político.

Algumas pessoas lembram, nesse contexto, o nome de Nitzan Horowitz, novo membro da facção Meretz. Horowitz trabalhou durante anos como comentarista de assuntos internacionais de um canal de televisão e contagiava o público com o entusiasmo com que falava de todas e quaisquer lutas pela paz e pela liberdade em todo o mundo. Seu estilo passional e a tendência a identificar-se com os excluídos e mais fracos tornaram-no amado do público telespectador.

Mas, desde que foi eleito, foi como se a velha chama estivesse extinta. Atualmente, está empenhado na guerra do preço dos livros nas livrarias. E a paz?! E a ocupação? Nem uma palavra sobre esses assuntos. Silêncio sepulcral.

O mesmo vale para todos os deputados da facção Meretz a qual, nos bons tempos, foi a vanguarda dos sionistas que trabalhavam pela paz no Parlamento. De lá para cá, tudo mudou para pior. No esforço para recuperar alguma força, os membros do Meretz fazem o que podem para que ninguém pense em paz e temas relacionados à paz. Quando parece completamente impossível, sussurram rapidamente a palavra “paz”, quase mecanicamente, como judeu que beija o Mezuzah sem vê-lo, ou cristão que faz o sinal da cruz a santo distante – e logo mudam de assunto.

Uma história interessante. Quando Shulamit Aloni fundou o partido em 1973, às vésperas da guerra do Yom Kippur, era conhecida principalmente como ativista na luta por respeito aos direitos civis. Engajara-se, principalmente, na luta pelos direitos das mulheres e contra a coerção religiosa. A paz era alvo secundário em sua agenda. Mas como líder do Meretz, ela gradualmente se convenceu de que nenhum dos seus alvos poderia jamais ser alcançado em atmosfera de guerra; e a paz passou a ser o centro de todas as suas campanhas e lutas e ideias. O partido cresceu e converteu-se no principal grupo sionista que trabalhava a favor da paz com os palestinos.

Nos últimos anos esse processo retrocedeu, como vídeo de volta ao início. A paz praticamente desapareceu da agenda do Meretz. O Meretz voltou a ser partido que defende direitos civis, ao mesmo tempo em que perde espaço no Parlamento: das 12 cadeiras que teve, só conservou três.

A direita israelense, financiada por bilionários da direita norte-americana, muitos judeus e muitos cristãos evangélicos, lançou essa semana violento ataque contra o grupo liberal New Israel Fund, conhecido por suas gordas doações a todas as lutas listadas acima.

Digo e assino: nosso grupo, Gush Shalom [Grupo da Paz] jamais recebeu um centavo daquelas doações. Aquele Fundo foge dos movimentos pela paz como das sete pragas. Pois nem assim o New Israel Fund conseguiu salvar-se. Foi processado por direitistas. Está provado que mesmo que os militantes cuidem ‘apenas’ de direitos humanos, sem nenhuma ação pela paz, nem assim conseguem safar-se. A cidade das muitas causas onde ninguém fala a favor da paz e onde tantos tentam proteger-se sob tantas e tão variadas bandeiras, não dá garantias reais a ninguém.

A causa da paz voltará inevitavelmente ao centro do palco, porque nessa causa decidir-se-á o destino de Israel – como indivíduos e como Estado. Não há outro caminho, nem qualquer escapatória.

Claro, não se pode desistir de nenhuma das demais lutas, por mais que a luta pela paz e pelo fim da ocupação deva ser a primeira e a principal das nossas lutas.

Espero ansioso o dia em que as organizações engajadas em todas essas lutas setoriais unam todos os seus maravilhosos e dignos ativistas, o entusiasmo, os talentos e a coragem de todos, sobretudo a excepcional capacidade para devotar-se a uma ideia – em uma única força que lute por Outra Israel, cuja principal bandeira seja a paz. Num único e grande movimento, as várias causas juntas, como complemento e alimento umas das outras, e todas pela paz e pelo fim da ocupação de terras palestinas.

Assim, afinal, poderemos lutar a batalha decisiva: a luta pela Segunda República Israelense.

Fonte: Vi o Mundo