José Graziano: Equilibrar ajuda ao Haiti e incentivo à produção
Há pouco mais de um mês do dramático terremoto que, em janeiro, pode ter matado cerca de 200 mil pessoas, a opinião pública mundial não pode – nem deve – esquecer o Haiti. É justamente agora que o relógio da sobrevivência cobra maior agilidade e decisão para reconstruir o que desabou e resgatar a sociedade de uma nefasta espiral de privação e empobrecimento.
Por José Graziano da Silva*, em Valor Econômico
Publicado 26/02/2010 11:15
A solidariedade internacional não pode permitir que se abra uma clivagem entre o socorro emergencial e a obra da reconstrução. Imobilizar uma sociedade numa rotina de doações equivale a envenená-la de boas intenções. Esse processo precisa ser liderado pelo próprio Haiti e executado com o apoio da comunidade internacional, já que hoje o país não tem recursos para reerguer-se sozinho.
A melhor forma de envolver os cidadãos haitianos nesse processo é multiplicar iniciativas que propiciem alguma reativação do mercado de trabalho local. Recursos dirigidos ao pagamento de frentes de trabalho, por exemplo, aumentam a circulação de moeda gerando um efeito multiplicador nas pontas da oferta e da demanda.
A estrutura informal da sociedade, ao contrário do que aconteceu com sua face institucional, não foi completamente devastada. O Haiti possui, por exemplo, uma versão feminina dos nossos antigos mascates. São as "Madame Sara", uma rede ambulante de comércio constituída de mulheres que tradicionalmente vendem alimentos, roupas e outros utensílios nas ruas. Faltam-lhes hoje suprimentos e compradores, mas o circuito não foi extinto.
Fundamentalmente, é preciso valorizar a metade do Haiti que não foi destruída., em vez de simplesmente substituí-la por novos projetos. Por melhores que sejam as boas intenções, muitas vezes elas carecem de enraizamento e ramificação em uma sociedade ferida na própria auto-estima. Impedir que a inércia transforme o Haiti num campo de refugiados de absoluta dependência em relação ao exterior, talvez seja uma das maiores contribuições internacionais para restaurar a frágil soberania desse povo sofrido.
A convergência entre a ação humanitária e a tarefa da reconstrução nacional vale especialmente para a decisiva frente da segurança alimentar. A assistência emergencial precisa ser equilibrada com o incentivo à produção própria de alimentos. Não trabalhar essas duas vias simultaneamente e apenas inundar o país de alimentos subsidiados, originários diretamente dos estoques dos países ricos é o caminho mais curto para matar uma agricultura pobre e promover o descarte de seus produtores, incapazes de competir com a "eficiência" importada.
O Haiti conhece dessa poção. A destruição da rizicultura nos anos 70 – quando o FMI obrigou o país a eliminar as tarifas que protegiam a produção local – explica o inchaço registrado em favelas como a de Citè Soleil, um dos núcleos mais devastados pelo abalo sísmico de janeiro.
Entre as aproximadamente 500 mil pessoas que deixaram Porto Príncipe desde o terremoto, muitas podem estar trilhando o caminho inverso do êxodo provocado pela destruição dos arrozais. O governo estima que um milhão de pessoas possam trocar a cidade pelos campos, mas poucos terão motivos para permanecer no interior se a economia rural for abalroada pela segunda vez, agora pelo excesso de ajuda concentrada na capital.
Para evitar isso, é crucial associar a ajuda humanitária a incentivos ao plantio da nova safra. Um bom ponto de partida inclui a remonetarização da economia com frentes de trabalho e a instituição de cupons de alimentação vinculados à aquisição de produtos no mercado local.
A compra da colheita direto do produtor – como é feito com sucesso no Brasil – e sua destinação às cidades intermediárias e polos rurais de atração migratória é outra providência que incentiva o novo plantio e inibe a diáspora em busca de ajuda na capital. Alternativas de ocupação não agrícola (construção civil, reparos de estradas vicinais, recuperação de reservatórios de água etc.) devem ser contempladas nesse anel intermediário do território de modo a consolidar um espaço ordenado de atração, emprego, fixação e comércio.
A solidariedade internacional deve contemplar medidas concretas de ampliação do fôlego externo do Haiti: a suspensão da dívida junto a bancos e governos é o piso básico dessa arquitetura; não menos decisiva – em termos de futuro – é a liberação do acesso de suas exportações aos mercados mundiais. O Brasil dá um exemplo. O governo Lula está decidido a abolir alíquotas para 49 países pobres, entre eles o Haiti. O Itamaraty vislumbra a possibilidade de levar investidores brasileiros para implantar projetos na ilha, sobretudo unidades têxteis voltadas para exportação, um setor em ascensão na incipiente base fabril do país antes do terremoto.
A prioridade zero, de qualquer forma, é devolver à agricultura familiar a centralidade que ela nunca deveria ter perdido na agenda econômica e social de economias pobres como a do Haiti. Março é o início das águas no Caribe: nunca uma semeadura foi tão importante quanto essa. Embora os habitantes de áreas rurais também tenham sido afetados pelo terremoto, ainda há tempo para salvar a atual colheita e preparar o próximo plantio.
Se antes do terremoto a agricultura respondia por 25% do PIB, agora sua fatia terá que crescer substancialmente para incorporar parte do êxodo urbano e contrabalançar o vácuo econômico generalizado. Nessa corrida contra o relógio, a FAO trabalha em estreita cooperação com o governo local e os organismos internacionais. Nesse momento, suas energias convergem para uma mesma prioridade: alcançar os agricultores familiares dotando-os de insumos e ferramentas que potencializem sua capacidade de responder depressa aos estímulos à produção.
Entre outras iniciativas, a FAO canalizou fundos da União Europeia para pequenas obras de infraestrutura, diversificação produtiva e armazenamento de água que beneficiam cerca de 300 mil localidades rurais. A reinvenção do futuro, como em tantos outros países pobres do planeta, terá que retificar o curso do passado no Haiti. Corrigir os dogmas e equívocos que contribuíram para definhar a sociedade e o Estado é a grande tarefa da vontade política nacional e internacional. A hora é agora.
*José Graziano da Silva é Representante Regional da FAO na América Latina e Caribe
Fonte: Valor Econômico