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Perpétua Almeida: O Enigma da Esfinge

Estou na Antártida, a convite da Marinha Brasileira, para conhecer a nossa Estação de Pesquisa que estuda o impacto das mudanças ambientais e suas conseqüências para as Américas, inclusive para nossa Amazônia. Aqui, no continente gelado (depois que a temperatura baixou a mais de 6° negativos, parei de verificar o termômetro), comecei a refletir sobre a emancipação feminina.

Perpétua Almeida*

Mulheres - Câmara dos Deputados

A distância de casa possivelmente contribuiu para a reflexão. Afinal esta é a primeira vez que passo um 8 de março longe das minhas companheiras.

Contactei o gabinete para ter certeza que não esqueceram de enviar os documentos, sempre urgente, dos estudantes de medicina na Bolívia; liguei para meus filhos, para saber se estão estudando, Pablo está numa semana de provas. Falei com Edvaldo para ficar ligado neles nessa semana que fico fora; para a secretária, pois havia esquecido de pedir para fazer a feira e arrumar o quarto de hospedes, teremos visitas. Disparei e-mails e mensagens falando da viagem e para saber se no PCdoB deram continuidade nas conversas em torno da nossa “chapa própria” para deputado estadual. Nossa, lembrei agora que amanhã, bem cedo, preciso pedir para secretária desmarcar minha consulta médica. Tudo isso enquanto tento apreender, o que posso, das explicações sobre a revolução tecnológica aqui implantada, que foi aqui que detectaram o aumento da temperatura global, o efeito estufa, o aumento no buraco da camada de ozônio etc. Bem, tento acompanhar os relatórios que me são apresentados, ao mesmo tempo em que o olho comprido se estica na esperança de ver um urso polar ou um pingüim.

E aí, percebo que a mudança da paisagem não alterou a minha rotina, continuo fazendo ou, pelo menos, pensando em fazer mil coisas ao mesmo tempo.

Da mesma maneira que milhões de mulheres, eu sei.

Começo a pensar que nossa emancipação nos algemou, nos sufocou, nos botou correndo contra um tempo cada vez mais escasso, para darmos conta dos afazeres cada vez mais numerosos.

Parece até que deixamos de ser escravas do lar para nos transformarmos em verdadeiras “lançadeiras”, cativas da culpa.

Culpa por, mesmo correndo, não poder acompanhar o crescimento dos filhos como gostaríamos; por não saber se agiu certo quando deixamos a filha adolescente sair com o namorado; culpa quando o casamento não vai bem; culpa por não cuidar da casa, do jardim e das roupas; por ter perdido aquele curso “fundamental” para nosso crescimento profissional; por ter descuidado da dieta logo naquela semana da festa; por desistir da academia; por ter faltado a um compromisso profissional porque o cansaço tomou de conta do corpo inteiro.

E, finalmente a culpa por sentir culpa.

O fluxo condutor desse pensamento me leva a tentar decifrar o enigma da mulher contemporânea – seríamos, eu e minha companheiras, uma esfinge com a cabeça de Janus – com uma face voltada para o passado e outra para o futuro? Os quatro olhos atônitos em busca de respostas que, a meu ver, só podem ser encontradas dentro de nós mesmas.

Na dúvida entre o prosseguir nesse ritmo alucinante de uma tripla jornada de trabalho e o retroceder para a impossível tranqüilidade não menos opressora da submissão, tenho a certeza de que a mudança e um futuro melhor estão em nossas mãos: na maneira como estamos preparando e educando as próximas gerações. Como as nossas filhas e netas do futuro vão enfrentar os desafios da vida, do companheirismo, do dividir tarefas, sem perder a garra, o carinho, a sensibilidade, a sensualidade? Ou despertamos agora ou elas também terão a mesma sobrecarga que atiramos sobre os nossos ombros. Esta é uma marcha enérgica em direção ao futuro.

Na educação do futuro pode estar a libertação do presente se conseguirmos reinventar a emancipação numa espécie de Lei do Ventre Livre Permanente, ou seja, filhos livres das cargas que arrastamos até aqui.

E então, que venham nossas sucessoras – nem Evas nem Liliths, mas Marias, Anas e Raimundas. Mulheres que não precisem exaurir todas as energias as custas do bem estar físico e mental, porque viverão entre pessoas que aprenderam, desde cedo, que ninguém precisa testar seu valor. Num mundo em que a aceitação dê o tom poderão finalmente ser mulheres sim, com muito gosto.

A luta, então, terá valido a pena, companheiras!

* Perpétua Almeida é deputada federal pelo PCdoB do Acre