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As compras globais da China e a mudança da geopolítica mundial

Pensai nisso como a história de dois países. Quando se trata de procurar os recursos que fazem funcionar as sociedades industriais, a China é hoje a viciada em consumo do planeta Terra, enquanto os Estados Unidos estão quietos.

Por Michael T. Klare*
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Duramente atingidos pela recessão global, os Estados Unidos sofreram um notório declínio no consumo de petróleo e de outros materiais industriais importantes. A China não. Com os efeitos esperados da paralisante recessão se arrastarão nos EUA por muitos anos, os analistas prevêem uma lenta recuperação no tocante ao consumo de recursos. A China não.

De fato, os chineses já estão a viver com um aumento incisivo na utilização de petróleo e de outros produtos. Mais do que isso, antecipando o tipo de consumo voraz de recursos que vai acompanhar o crescimento futuro e preocupadas com a disponibilidade de fornecimentos adequados, firmas gigantes chinesas de energia e de fabrico – muitas delas do Estado – estão numa verdadeira orgia de compras quando se trata de fechar fornecimentos de recursos para o século XXI. Adquiriram campos petrolíferos, reservas de gás natural, minas, oleodutos, refinarias e outros ativos de recursos num consumo desenfreado de proporções quase sem precedentes.

Como a maioria dos outros países, a China sofreu alguns efeitos perniciosos da Grande Depressão de 2008. As suas exportações diminuíram e o crescimento econômico previamente explosivo desceu dos seus níveis excepcionais. Graças a um pacote bem estruturado de estímulos de 586 mil milhões de dólares, contudo, os piores efeitos provaram ser notavelmente de vida curta e o crescimento depressa voltou ao seu prévio ritmo de octanas elevadas. Desde os começos de 2009, a China teve saltos significativos em compras de automóveis e construção de casas – juntamente com preocupações acerca da criação de uma bolha imobiliária – entre sinais do retorno da prosperidade. Tudo isto, por sua vez, gerou uma elevada procura de petróleo, aço, cobre e outros materiais.

Vejamos o petróleo. Nos Estados Unidos, o consumo de petróleo declinou realmente 9% nos últimos dois anos, de 20,7 milhões de barris por dia em 2007, para 18,8 milhões em 2009. Em contraste, o consumo de petróleo da China subiu no mesmo período de 7,6 para 8,5 milhões de barris por dia. De acordo com as mais recentes projeções feitas pelo Departamento de Energia dos EUA, isto não foi por sorte. A procura chinesa por petróleo deve continuar a subir por todo o resto deste ano e em 2011, enquanto o consumo americano continua quase estacionário.

Como os Estados Unidos, a China obtém certa quantidade de petróleo de poços nacionais, mas tem de adquirir uma quota crescente dos seus fornecedores estrangeiros. Em 2007, o país produziu 3,9 milhões de barris por dia e importou 3,7 milhões de barris, mas essa proporção está rapidamente a mudar. Em 2020, está projetada uma produção de apenas 3,3 milhões de barris e importar 9,1 milhões. Esta situação apresenta marcadamente uma «vulnerabilidade estratégica» e, por isso, deixa os líderes chineses extremamente inseguros. Em resposta, como fizeram os americanos em décadas anteriores, começaram a ganhar controle de fontes energéticas estrangeiras – e, de igual modo, muitos outros materiais vitais, incluindo gás natural, ferro, cobre e urânio.

China Armazena Energia

As companhias de energia chinesas começaram inicialmente a comprar firmas estrangeiras e sociedades de perfurações de capital de risco (ou, pelo menos, ações nelas) no início do século XXI. Três grandes companhias petrolíferas do Estado chinês – a China National Petroleum Corp. (CNPC), a China National Offshore Corp. (CNOOC) e a China Petroleum & Chemical Corp. (Sinopec) – estão à frente do processo. Estas empresas, ou as suas parcialmente privatizadas subsidiárias – PetroChina, no caso de CNPC e CNOOC Internacional no caso da CNOOC – começaram a absorver ativos estrangeiros de energia em Angola, Irã, Cazaquistão, Nigéria, Sudão e Venezuela.

No total, estas aquisições continuavam a ser minimizadas à vista daquelas que estavam a ser feitas pelas firmas gigantes do Ocidente, como a ExxonMobil, Chevron, Royal Dutch Shell e BP. Contudo, representavam algo de novo: uma presença crescente chinesa num universo que fora dominado pelas principais empresas ocidentais.

Eis que então chega a Grande Recessão. Desde 2008, que as empresas ocidentais, na sua maior parte, tinham relutância em fazer investimentos vultosos em sociedades petrolíferas estrangeiras de capital de risco com receio de um prolongado declínio em vendas globais. Contudo, as empresas chinesas simplesmente aceleraram os seus esforços de compras. Foram pressionadas por executivos governamentais, que consideravam o momento como perfeito para a aquisição de recursos cruciais valiosos para um futuro potencialmente esfomeado de energia a preços de saldo e rateio.

«A crise financeira internacional… é igualmente um desafio e uma oportunidade», insistia Zhang Guobao, chefe da Administração Nacional de Energia, no princípio de 2009. «O abrandamento… reduziu o preço dos recursos energéticos internacionais e dos ativos e favorece a nossa busca por recursos estrangeiros».

Como uma questão de orientação, o governo chinês trabalhou duramente para facilitar a investida acelerada para controlar recursos energéticos estrangeiros. Entre outras coisas, concedeu empréstimos de longo prazo a juros baixos às principais firmas chinesas de recursos que procuravam participações estrangeiras, assim como a governos estrangeiros que permitiam que companhias chinesas participassem em explorações dos seus recursos naturais. Em 2009, por exemplo, o Banco de Desenvolvimento da China (BDC) aceitou emprestar a CNPC 30 bilhões de dólares por um período de cinco anos, para apoiar os seus esforços de aquisição de ativos no estrangeiro. De igual modo, o BDC emprestou 10 bilhões de dólares a Petrobras, empresa petrolífera brasileira controlada pelo Estado, para desenvolver campos profundos no mar em retorno duma promessa de fornecer à China para cima de 160.000 barris de óleo brasileiro por dia.

Estimulada desta maneira, e apoiada com fluxos infindáveis de dinheiro, a CNPC e as outras empresas chinesas gigantes empreenderam uma orgia global, adquirir ativos de recursos de todos os tipos que se possam imaginar, numa profusão assombrosa na Ásia Central, África, Médio Oriente e América Latina.

Uma lista parcial de alguns dos mais importantes negócios recentes incluem:

– Em abril de 2009, a CNPC formou uma sociedade mista com Kazmunaigas, uma companhia do Estado rico em energia do Cazaquistão na Ásia Central, a fim de comprar a firma de energia JSC Mangistaumunaigas (MMG) por 3,3 bilhões de dólares. Isto foi apenas o último de uma série de negócios que dão à China o controle de cerca de um quarto da produção petrolífera crescente do Cazaquistão Um empréstimo de 5 bilhões de dólares do Banco de Exportação-Importação da China tornou este último negócio possível.

– Em outubro de 2009, um consórcio liderado por CNPC e pelo peso pesado BP, ganhou um contrato para desenvolver o campo petrolífero da Rumaila no Iraque, potencialmente um dos maiores reservatórios mundiais num país com um terço das maiores reservas do planeta. Por este contrato, o consórcio irá investir 15 bilhões de dólares para aumentar a produção diária da Rumaila de 1,1 para 2,8 milhões de barris, duplicando a produção do Iraque. CNPC detém 37% das ações do consórcio; BP tem 38% e o Governo do Iraque os restantes 25%. Se o consórcio tiver sucesso, a China terá acesso a uma das mais promissoras fontes futuras de petróleo do mundo e a uma base para outras participações na subdesenvolvida indústria petrolífera do Iraque.

– Em novembro de 2009, Sinopec juntou-se à firma estatal do Equador Petroequador, numa sociedade de capital de risco 40 por 60 (com a Petroequador sendo o maior acionista) para desenvolver dois campos petrolíferos na Província Oriental Pastanza. Sinopec é já o maior produtor do Equador, tendo-se juntado à CNPC para adquirir os ativos energéticos equatorianos da EnCana Corp do Canadá em 2005 por 1,4 mil milhões de dólares.

– Em dezembro de 2009, a CNPC adquiriu uma percentagem no bloco de petróleo 3 em Boyaca no Orinoco, um grande depósito de petróleo extra pesado na parte leste da Venezuela. Nesse mesmo mês a CNOOC entrou numa sociedade de capital de risco com a companhia estatal Petróleos de Venezuela S.A. para desenvolver o bloco 8 Junin na mesma região. Estas movimentações são vistas como parte de um esforço estratégico pelo presidente venezuelano Hugo Chávez para aumentar as exportações de petróleo do seu país para a China e reduzir a sua dependência de vendas para o mercado americano.

– No mesmo mês de dezembro, a CNPC assinou um acordo com o governo de Myanmar (Birmânia) para construir e dirigir um oleoduto que ligará a Ilha de Maday, na parte ocidental desse país, até Ruili, na província de Yunnan, no sudeste da China. O oleoduto de 740 quilômetros irá permitir que os navios-tanque chineses que vêm de África e do Médio Oriente possam descarregar as suas cargas em Myanmar no Oceano Índico, evitando assim os longos percursos para a costa leste da China via Estreito de Malaca e o Mar do Sul da China, áreas significantemente dominadas pela marinha dos Estados Unidos.

– Em março de 2010, a «CNOOC internacional» anunciou planos para comprar 50% de Bridas Corp, uma firma privada de energia argentina com petróleo e operações de gás na Argentina, Bolívia e Chile. A CNOOC pagará 3,1 bilhões de dólares pela sua participação em Bridas, que pertence à família do magnata argentino Carlos Bulgheroni.

– Em março, a PetroChina associou-se à petrolífera Shell para adquirir a Arrow Energy, um importante fornecedor australiano de gás natural derivado de metano de jazigo carbonífero. Cada uma das companhias paga cerca de 1,6 bilhões de dólares e irão formar uma sociedade mista 50 por 50 para gerir os títulos da Arrow.

E tudo isto é apenas no campo da energia. Empresas de minas e metais chinesas têm vindo a explorar o mundo em busca de promissoras reservas de ferro, cobre, bauxita e outros minerais industriais importantes. Em março, por exemplo, Aluminum Corp da China, ou Chinalco, adquiriu uma coparticipação de 44,65% no projeto Simandou de minério de ferro na Guiné. Chinalco pagará ao gigante mineiro anglo-australiano Rio Tinto, 1,35 bilhão de dólares por esta coparticipação. Não esquecer que Chinalco já possui uma quota de 9,3% no Rio Tinto, e foi impedida de adquirir uma quota maior devido aos receios australianos de que a China esteja a absorver demasiada energia do país e de indústrias de minerais.

Virando o Equilíbrio dos Recursos Mundiais

As companhias chinesas como CNPC, Sinopec e Chinalco não estão, de nenhum modo, sozinhas na procura do controlo de ativos de recursos estrangeiros valiosos. As principais firmas ocidentais, assim como companhias estatais na Índia, Rússia, Brasil e noutros países, também têm vindo a procurar esses ativos. Poucos, contudo, têm sido tão determinados ou concentrados como as firmas chinesas no ganho das vantagens que ofereciam os preços relativamente baixos que se seguiram à recessão global, e poucos tinham bolsos fundos disponíveis para fazê-lo, graças à boa vontade do Banco de Desenvolvimento da China e de outras agências governamentais que ofereciam apoios financeiros muito liberais.

Quando os EUA e outras nações ocidentais finalmente se recuperem da Grande Recessão logo irão descobrir que o tabuleiro de xadrez dos recursos globais esteve a pender fortemente a favor da China. Produtores de energia e minerais que antes dirigiam as suas produções – e, frequentemente, a sua fidelidade política – para os EUA, Japão e Europa vêem agora a China como um cliente importante. Como um sinal chamativo desta deslocação, a Arábia Saudita anunciou recentemente que tinha vendido mais petróleo à China no ano passado do que aos EUA, antes o seu maior e mais acarinhado cliente. «Acreditamos que isto é uma transição de longo prazo», disse Khalid A al-Falih, presidente e diretor executivo de Saudi Aramco, o colosso estatal de petróleo. «As tendências econômicas e demográficas estão a tornar tudo claro – está bem à vista. “A China é o mercado em expansão do petróleo.»

Para já, os líderes chineses estão a evitar qualquer sugestão de que as suas recentes aquisições de recursos estrangeiros envolvam compromissos militares ou políticos que possam produzir fricção com os EUA ou com outras potências europeias. Estas aquisições são apenas transações comerciais, insistem eles. Contudo, não se pode negar o fato destes crescentes vínculos chineses a recursos em países como Angola, Austrália, Brasil, Irão, Cazaquistão, Arábia Saudita, Sudão e Venezuela, virem a ter implicações geopolíticas que não serão facilmente ignoradas em Washington, Londres, Paris e Tóquio. Talvez mais do que quaisquer outros desenvolvimentos, a euforia de compras globais da China revela como o equilíbrio do poder mundial está a mudar-se do Ocidente para o Oriente.

Michael T Klare é professor de estudos de segurança mundial e paz no Hampshire College, em Amherst, Mass, este texto foi publicado em www.tomdispatch.com/ e no Diário.info, com tradução de João Manuel Pinheiro