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Robert Fisk: A barbárie que segue o ataque dos EUA ao Paquistão

É muito desconhecida a guerra que os EUA levaram ao Paquistão e a barbárie que a acompanha. Alí, “nas áreas tribais, os drones – aviões-robô armados não tripulados – dominam tudo. Mês passado, só numa noite, mataram 14 homens em Datta Khel, no norte do Waziristão. Os drones voam em grupo, e quatro ou cinco deles sobrevoaram a vila; cada um deles lançou um míssil contra um caminhão; que foi partido ao meio e seus seis homens despedaçados" conta Robert Fisk, no jornal britânico The Independent.

O Paquistão é uma emboscada. O calor do meio-dia também embosca quem viva em Peshawar, capital da Província Fronteira Noroeste. Desfiladeiros de fumaça sobem, cinzentos, das altas muralhas da fortaleza de Bala Hisar [1]. “Quartel-general da Força de Fronteira”, lê-se sobre o portal da entrada. Percebo o velho canhão britânico sobre a colina – e as novíssimas máquinas de artilharia antiaérea por trás dele, canos abaixados, mira sobre nós, qualquer um que chegue a essa vasta metrópole da dor. Há soldados em todas as esquinas, cinturões de munição ao ombro, metralhadoras sobre tripés por trás de pilhas de sacos de areia, a mira dos AK-47s apontando impessoalmente entre os riquixás, caminhões de lixo e ônibus com homens pendurados por todos os lados. Há barbas que chegam à cintura. Os soldados também têm barbas, mas mais curtas.

Estou sentado num modesto apartamento térreo no antigo acampamento britânico. Um jovem jornalista de Peshawar senta-se ao meu lado, falando em voz baixa e furiosa, como se houvesse alguém à espreita, sobre os aviões-robôs não-pilotados dos norte-americanos que, ultimamente, matam aos milhares ao longo da fronteira afegã. “Eu estava em Damadola quando os drones apareceram. Mataram mais de 80 adolescentes – todos estudantes – e, sim, estavam estudando o Corão; e, sim, a escola madrasah, escola islâmica, era dirigida por um comandante Talibã. Mas… 80 adolescentes assassinados?! Muitos dos adolescentes mortos vieram de Bajaur, que já fora atacada. Os pais deles logo chegaram. Depois, as mães. Mas os corpos estavam em pedaços. Tantas crianças, alguns de 12 anos. Não conseguimos n em preparar os cadáveres.”

O repórter – sem nomes, claro, porque tem de trabalhar em Peshawar – estava na área tribal de Bajaur, para cobrir negociações entre o governo e os Talibã. “Os aviões-robôs sobrevoaram durante meia-hora, observando,” ele conta. “Em seguida, surgiram dois helicópteros paquistaneses armados. Depois, o governo disse que os helicópteros haviam atacado. Não. Foram os drones norte-americanos.”

Agora, num jardim em Islamabad, leve, com carvalhos brilhantes e grandes aves que crocitam dos galhos, abaixo dos quais estão sentados dois servidores de organizações humanitárias, ambos europeus, que passaram semanas no vale Swat, durante e depois do ataque o exército paquistanês contra os Talibã. “Foram dúzias – talvez centenas de ataques – todos pelo exército. Os soldados matavam para vingar-se, não há dúvidas. Muitas pessoas que nos informaram que haviam sido presas foram depois encontradas mortas. O que significa isso? EUA e britânicos sabiam de tudo, claro que sabiam, tiveram contato com o governo. Mas o que faz o exército? Numa vila, dois cadáveres ficaram expostos na rua durante dois dias – para mostrar à população o que acontece com quem apóia os Talibã. O que quer o exército? Esperam controlar o Paquistão com gestos desse tipo?”

Cerca de 70% do exército paquistanês é composto de nativos da região do Punjab; 80% dos oficiais da reserva são punjabs. Antes de que os Talibã passem a ser vistos como guerrilheiros libertadores, ouçamos o que diz sobre o vale Swat um dos mais loquazes jornalistas paquistaneses, Owais Tohid, que fala da cidade de Mingora. Leiam e como se diz, engulam, se puderem, com casca e tudo. “O sangue encobre todas as lembranças de Ziarat Gul[2]: sua irmã foi assassinada pelos Talibã e seu corpo foi deixado na chowk [praça] de onde falo. (…) Há um ano, a irmã de Gul, Shabana, caiu, morta com três tiros, aos pés dos homens de turbante.” Shabana era conhecida porque, como muitas moças nas áreas tribais, dançava e cantava em casamentos, ao som das harmônicas e rababs[3] tocados pelos homens.

Owais Tohid prossegue. “Sobre o cadáver, jogaram notas de dinheiro, CDs com gravações de suas danças, fotos dela. Numa poça de sangue; ninguém pode aproximar-se do cadáver até o dia seguinte. Gul, o pai e dois primos foram os únicos que, no dia seguinte, fizeram as orações rituais e enterraram o corpo.” Shehnaz, amiga de Shabana e também bailarina conhecida, testemunhou o crime: “Apaguei a luz e espiei por um buraco na parede; vi que a porta fora arrombada. Shabana estava sentada no chão, cercada por Talibãs armados com Kalashnikovs e fuzis lança-mísseis. Alguns tinham espadas. Ouvi Shabana suplicar que não a matassem, “Não me matem, não me matem”. Mas um dos Talibã disse ‘Você foi avisada. Oferecemos nosso mujahid para casar com você. Mas você preferiu sua dança’. Shabana continuou a suplicar …” E Shehnaz ouviu os tiros.

Por inverosímeis que pareçam, muitas dessas narrativas são verdadeiras. Não distante de Peshawar, mês passado, um grupo de dança voltava de uma festa em Hindko Damaan, quando foram cercados por homens armados, às 3h da madrugada. Afsana, uma das moças, estava com duas irmãs, Salma e Sana, no carro; e o padrasto Azizur Rahman as acompanhava. O irmão seguia noutro carro, adiante. Ele começou a discussão com homens armados que os pararam na estrada e pediram dinheiro. Por causa dessa briga, Afsana foi morta. Acabava de divorciar-se e dançava para sustentar a família. Três outras moças foram assassinadas nos arredores de Peshawar na última quinzena.

Os aviões-robôs, drones dos EUA

Nas áreas tribais, os drones – aviões-robô armados não tripulados – dominam tudo. Mês passado, só numa noite, mataram 14 homens em Datta Khel, no norte do Waziristão. Os aviões-robôs voam em grupo, e quatro ou cinco deles sobrevoaram a vila; cada um dos drones lançou um míssil contra um caminhão; o caminhão foi partido ao meio e os seis homens foram despedaçados. Quando os moradores da região acorreram para socorrer os feridos, os aviões-robôs atacaram novamente; mais oito mortos.

É frequente os aviões-robôs voltarem ao local dos primeiros ataques, para atacar quem apareça para socorrer feridos. Essa ‘tática’ foi desenvolvida pela Força Aérea de Israel, em Beirute, em 1982: uma bomba; 12 minutos depois, a segunda bomba, para matar quem apareça atraído pelo barulho da primeira; quase sempre as equipes médicas ou simples socorro civil. Agora, nas vilas do Waziristão, os habitantes aprenderam a esperar pelo menos meia hora – ouvindo gemidos e berros dos feridos e agonizantes – antes de se aproximarem para ajudar os feridos e recolher os cadáveres.

Os aviões-robôs, os “drones” – Predators e Reapers, ou “Sombras”, como os norte-americanos os chamam, porque acompanham os soldados nas ações – alcançaram proporções míticas na mente dos paquistaneses, uma modalidade de colonização por naves espaciais, um imperialismo que desce dos céus, como o descreveu brilhantemente A.H.Khayal no diário The Nation, perguntando de onde vêm os robôs aéreos armados:

“As massas são miseravelmente ignorantes. Não sabem que os aviões-robôs sem piloto não são seres desse mundo. De fato, são seres só espirituais. Decolam sem pista. Vivem no espaço sideral, onde ninguém os vê, muito além das fronteiras terrestres internacionais entre Afeganistão e Paquistão.

Quando têm fome, aqueles espíritos sem corpo voam, matam e alimentam-se de afegãos inocentes, mulheres, crianças. Devoram os cadáveres e voltam para suas tocas siderais, para a sesta. Até que acordam outra vez com fome, voam outra vez, matam outra vez, devoram mais cadáveres de mulheres e crianças. E voltam, outra vez, para seus hangares espaciais invisíveis. É assim todos os dias, há anos!”

É verdade. Assim é, há anos. Mas de onde vêm os aviões-robôs? Quando o presidente Hamid Karzai voou a Islamabad mês passado, todo o gabinete paquistanês curvou-se em homenagem a esse sátrapa eleito pelos EUA em eleições fraudadas. Muitos são paquistaneses para os quais nada há aí de anormal. O seu próprio presidente, Asif Ali Zardari – mais um dos sátrapas corruptos que Washington sempre tem para distribuir a mancheias – não passou duas semanas nos EUA, tentando conseguir grande aumento na ajuda de $7,8 bilhões de dólares que o Congresso, ano passado, aprovou para o Paquistão? “Houve tempo em que os EUA não acreditavam em vocês” – discursou o primeiro-ministro do Paquistão, Yousuf Gilani, no Parlamento do Paquistão. “Éramos aliados, mas não confiavam em vocês. Agora, os EUA acreditam em vocês. Temos hoje condições de conduzir um diálogo estratégico.”

Foi o que bastou para provocar cólicas nos paquistaneses médios. Depois, Hillary Clinton chegou, em novembro passado, para recriminar os estudantes paquistaneses por seu antiamericanismo – e para intimidar o governo do Paquistão, dizendo que não havia dúvidas de que conheciam os esconderijos dos top man da al-Qa’ida nas áreas tribais –, e o ministro do Exterior Shah Mehmood Qureshi partiu para Washington, semana passada, com seu comandante do Exército general Ashfaq Kayani, carregando o maior chapéu de pedir esmolas da história do Paquistão.

O presidente Barack Obama quer achar uma saída estratégica para escafeder-se do Afeganistão e percebeu – pelo menos! – que só o Paquistão pode dar-lhe a saída de que tanto precisa. Mas Obama também precisa apoiar a Índia, como escudo contra a China; e os paquistaneses sabem que os agentes de Delhi só fazem tentar controlar o Afeganistão.

Mas o que surpreendeu os paquistaneses na visita de Karzai não foram as tiradas sobre o amor fraternal que une afegãos e paquistaneses – “a Índia é nação amiga, mas o Paquistão é como nosso irmão gêmeo”, disse ele –, mas a surpreendente informação segundo a qual os ataques devastadores contra o Paquistão, pelos aviões-robôs não pilotados dos EUA, não estavam sendo lançados de dentro do Afeganistão.

“Não somos responsáveis por esses ataques” – disse Karzai. “Os ataques dos robôs não-tripulados são lançados por um poderoso país soberano, os EUA, aliados muito íntimos do Paquistão. Os aviões-robôs não decolam de nosso território; apenas voam em nosso espaço aéreo, e não temos meios para impedir que o façam.” Karzai parecia intimidado, como se se desculpasse, estranhamento solidário a Gilani ante o número crescente de mortos civis.

Dessa vez, Karzai não mentia. Disse a verdade. Os aviões-robôs são lançados da base aérea de Candahar, para atacar Talibãs afegãs e paquistaneses dentro da fronteira internacional. Sim! Os aviões-robôs não tripulados que atacam paquistaneses são lançados… do Paquistão.

Os norte-americanos lançam seus aviões-robôs de uma base da Força Aérea do Paquistão em Terbile, 50 milhas a oeste de Islamabad. Os oficiais dos EUA chegaram a pensar em usar o campo de pouso de Peshawar – a rota usada pelos velhos aviões-espiões U2, com os quais Gary Powers decolou para a URSS durante a Guerra Fria –, e os Talibã gastaram semanas tentando descobrir de onde os EUA comandavam os aviões-robôs. Acabaram por decidir que o controle central dos aviões-robôs dos EUA funcionaria na cobertura do Marriott Hotel em Islamabad.

Estavam errados. Havia oficiais, sim, hospedados no Marriott, mas não o pessoal da Força Aérea. Mas essa foi a razão pela qual o Marriott foi atacado por um suicida-bomba em 2007, e depois, outra vez, por um caminhão carregado de explosivos dia 20/9/2008: não porque o presidente Zardari tivesse discursado (seu primeiro discurso ao Parlamento) a algumas centenas de metro dali; mas, sim, porque os Talibã tentavam destruir o ‘cérebro’ que comandava os aviões-robôs. Morreram mais de 54 civis, a maior parte dos quais paquistaneses, e 266 ficaram feridos. E os ataques de aviões-robôs continuaram, mesmo depois da posse de Barack Obama.

Os Talibã contra o exército do Paquistão

A guerra dos Talibã, contudo, está hoje dirigida contra o exército paquistanês – por mais que as autoridades tentem convencer a população de que os Talibãs têm atacado alvos exclusivamente civis.

Dia 8 de março, atacaram um centro de torturas da polícia em Lahore; foi um sinal. Nove policiais foram mortos, num prédio conhecido pelas sessões noturnas de tortura – moradores locais reclamaram várias vezes de gritos vindos dos porões, não por causa da violência policial, mas porque os gritos os convertiam em alvos para ataques dos suicidas-bomba. Medo justificado. O pior ataque por suicida-bomba do ano acontecera numa quadra de voleibol em Lakki Marwat, onde morreram 105 pessoas, a maioria policiais e soldados do Corpo de Fronteira do Exército.

Dia 4 de fevereiro, outro suicida-bomba – depois de longa operação de observação pelos Talibã paquistaneses – atacou um comboio militar na área de Koto no distrito do baixo Dir. Matou três meninas de escola, um policial do Corpo de Fronteira e três soldados dos EUA. Desde 11/9/2001, mais de 5.700 homens e mulheres foram mortos em ataques dos Talibã paquistaneses contra o exército paquistanês: é a vingança pelos ataques do exército no Swat e no Waziristão.

O duplo ataque-suicida contra dois veículos do exército em Lahore, capital do Punjab, dia 12/3, foi, portanto, o mais bem-sucedido e violento ataque dos Talibã contra os militares paquistaneses.

Os suicidas explodiram seus coletes ao lado de dois caminhões do exército – mataram 14 soldados – em plena cidade, desmoralizando as autoridades da segurança e forçando o ministro-chefe Shahbaz Sharif a suplicar, envergonhado, que os Talibã poupassem a capital; foi como se dissesse “Ataquem outra cidade!” Morreram 61 homens e mulheres – a maioria, claro, civis – e houve centenas de feridos.

Menos de 24 horas depois, outro suicida-bomba atacou um ponto de controle do exército na Província Fronteira Noroeste, em Saidu Sharif: 14 mortos, a maioria dos quais soldados e policiais.

A determinação dos Talibã paquistaneses contra o exército do Paquistão surpreendeu até os próprios militares. Quatro dias depois do ataque em Lahore, a polícia encontrou 1.500 quilos de explosivos e dois coletes-bomba na cidade de Iqbal, na capital do Punjab, além de granadas-de-mão de fabricação russa e munição para rifles. Dia seguinte, descobriram mais três toneladas de explosivos na mesma área. Amir Mir, o mais atentamente cuidadoso dos jornalistas paquistaneses, no caos que sempre é qualquer guerra, calculou que, nos primeiros 70 dias de 2010, em todo o Paquistão, morreram 321 paquistaneses e houve 500 feridos em 15 atentados por suicidas-bombas. Em 2009, foram ‘apenas’ 11 suicidas-bomba.

O Instituto para Estudos da Paz no Paquistão mantém registro de todos os atos de violência no país desde os ataques de 11/9/2001 nos EUA, e concluiu que, só em 2009, foram mortos 12.632 homens e mulheres – civis, soldados, militantes dos Talibã, inclusive vítimas de batalhas intertribais. Desses, 3.021 foram mortos por guerrilheiros; 6.329 em operações do exército paquistanês; 1.163 em confrontos exército-Talibã; 700 em confrontos de fronteira; e 1.419 em outros tipos de violência, inclusive ataques por aviões-robôs não tripulados.

 

O aumento no número de mortes nos últimos quatro anos no Paquistão é assustador. Em 2005, morreram 216 paquistaneses; em 2006, 907; em 2007, 3.448; em 2008, 7.997. Em 2009, o número total de vítimas de violência ligada à guerra em apenas cinco anos, saltou para mais de 25.000. Quando visitei Lahore, recentemente, pela segunda vez, senti como se a cidade vivesse sob lei marcial, soldados e pontos de controle praticamente em cada esquina, as pontes, as escolas e os antigos prédios dos ministérios britânicos cercados por soldados com escudos e capacetes de aço.

 

Em apenas duas semanas em março – e distante de Lahore – a violência alcançou proporções épicas. Dia 14 de março, quatro homens foram mortos na área tribal de Khyber. Em Quetta, dia 17 de março, um policial aposentado, um membro de uma “organização sectária” e dois operários de construção foram mortos ou a tiros ou em explosões. Dia seguinte, 10 homens da tribo Mehsud – muito provavelmente militantes – foram mortos num ataque por cinco aviões-robôs dos EUA. Num subúrbio de Peshawar no mesmo dia, três soldados do Corpo de Fronteira foram mortos a tiro. Em Karachi no mesmo dia, dois líderes políticos, seu advogado e o motorista do táxi que os conduzia foram mortos em atentado à bala. Menos de 24 horas depois, um importante advogado quetta foi sequestrado. No fim da mesma semana, os Talibã paquistaneses anunciaram publicamente que matarão o ministro do Interior do Paquistão Rehman Malik. E out ros ataques acontecerão pelo país, disseram os Talibã, em resposta-vingança contra os ataques com aviões-robôs, os drones dos EUA: “Esperem a nossa resposta” – disse Azam Tariq, porta-voz dos Talibã.

Os militares paquistaneses responderam na velha toada. Os ataques dos Talibã seriam “claro sinal de frustração e desespero”. O diretor da CIA Leon Panetta declarou, da segurança de sua sala em Washington, que os ataques por aviões-robôs, e outros ataques não especificados, seriam “a operação mais agressiva em que a CIA jamais se envolveu em toda nossa história. A ofensiva da CIA na região tribal do Paquistão obrigou Osama bin Laden e seus comparsas a esconder-se (presumivelmente estariam escondidos já desde 2001!) –, o que deixou a Al-Qa’ida “desesperada, sem comando e sem meios para planejar operações sofisticadas”.

O Paquistão com certeza merece coisa melhor que esse amontoado de sandices.

Incorporados [ing. embbeded] a grupos de combate do exército paquistanês, autores como Michael O’Hanlon lembram aos leitores norte-americanos no The New York Times, que a ajuda que os EUA já deu ao Paquistão desde 2001 (17 bilhões de dólares) cobre apenas metade do que o Paquistão gastou na “guerra ao terror”, batalha à qual o exército paquistanês está hoje completa e profundamente dedicado (ou O’Hanlon acredita que esteja). Mas isso não explica as legiões de soldados que se têm rendido aos guerrilheiros nos últimos 12 meses, nem explica o estranho jogo duplo que se faz nas forças de segurança paquistanesas – porque prendem altos dirigentes dos Talibã afegãos; mas são condenados por autoridades do governo de Hamid Karzai por quebrar o segredo das comunicações que há entre o governo afegão e seus inimigos. Já os EUA “sentiram-se extremamente gratos” pelas prisões de paquistaneses, disse o enviado do presidente Obama, Richard Holbrooke. Em outras palavras, os EUA controlariam os contatos com o Talibã afegão… Os EUA. Não o presidente Hamid Karzai.

Enquanto isso, os especialistas em ‘segurança’ que dominam a imprensa dos EUA semeiam suspeitas as mais alucinadas, pelos canais da ‘inteligência’ ocidental. Enquanto bombardeamos as regiões tribais com nossos aviões-robôs, nos dizem que temamos o roubo iminente de armas nucleares paquistanesas. “Terroristas”, conta o jornal de West Point, podem roubar armas atômicas e usá-las contra nós. Observem que essa ameaça nunca se aplica a nosso fiel aliado, a Índia. E contam-se histórias fantásticas sobre três ataques, por “terroristas” (sempre sem nomes, claro), contra instalações nucleares do Paquistão nos três últimos anos. Antes, contavam que “nacionalistas” muçulmanos estariam planejando sequestrar as armas atômicas do Paquistão. Hoje, o perigo são os “islâmicos”. De fato, o perigo real sempre está e esteve mais perto de casa.

70% da munição, dos veículos e da comida da OTAN no Afeganistão passam pelo Paquistão, além de 40% do combustível. Os ataques dos Talibã contra esses comboios – tanto na versão paquistanesa como na versão afegã do movimento (e não são a mesma coisa) – têm colhido inacreditáveis vitórias nos dois últimos anos, que a OTAN nunca divulgou. Homens armados já roubaram três helicópteros militares – desmontados, mas completos –, e um comboio de blindados Humvee norte-americanos, um dos quais foi usado por Hakimullah Mehsud, líder dos Talibã paquistaneses. Pelo menos 62 Humvees foram queimados só num ataque perto de Peshawar em 2008.

E tudo isso, é preciso lembrar, acontece contra a profunda corrupção da sociedade paquistanesa, do mais insignificante lustrador de sapatos ao presidente Asif Ali Zardari, viúvo de Benazir Bhutto, homem cuja venalidade é tão legendária que ninguém já nem a comenta. No último mês, só foi comentada uma vez – quando Zardari declarou, em conferência sobre o sufismo e a paz, que não temia a morte, que representava “nada além de uma fagulha no universo” e que deixaria seus órgãos doados em testamento. Em apenas duas horas, cinco pessoas – o motorista do meu táxi, um garçom de hotel, um livreiro em Islamabad, um agente paquistanês de organização humanitária e um advogado – disseram exatamente a mesma coisa, sobre tal gesto: “Zardari doou seus órgãos ao povo. Melhor se doasse seus dólares!”

Abençoada seja, penso eu, a imprensa paquistanesa, de gente brava, desiludida e insistente como toda a gente de toda a imprensa ocidental. A ‘máfia do petróleo’ que bombeou milhões de rúpias durante o governo de Musharraf, os quatro ministros do gabinete que vivem em casas do governo, mas cobram aluguel (sombras da própria Westminster), as imensas irregularidades financeiras no departamento educacional do Punjab, tudo isso foi manchete na imprensa do Paquistão. “O governo”, escreveu The News International dia 11 de março, “demitiu outro funcionário de integridade impecável, o Comissário Chefe de Islamabad Shahid Mehmood, nomeado há apenas 90 dias, depois de ele ter-se recusado a aceitar os “desejos” de alguns chefetes políticos.” Isso é imprensa! O infeliz Mehmood, como depois se descobriu, impediu que se concretizasse um negócio de venda de terras que envolvia um certo Asif Ali Zardari, presidente do Paquistão.

Os paquistaneses – em outras palavras, a maior parte dos 150 milhões de homens e mulheres que vivem na miséria nesse Estado nuclear – simplesmente já não acredita nas autoridades que se declaram autoridades governantes. Quando, mês passado, um aumento na tarifa de ônibus levou centenas – e depois, milhares – de jovens às ruas nos subúrbios de Islamabad, a polícia abriu fogo contra os manifestantes. O pessoal das embaixadas ficou preso em seus respectivos bunkers diplomáticos – os diplomatas dos EUA já são proibidos, até em melhores tempos, de sair, para comprar balas, que seja –, e o governo de Zardari, então, explicou que os agitadores seriam “importados”, trazidos “de regiões periféricas” para a capital.

Onde deve ir um forasteiro – autêntico, verdadeiro forasteiro, como eu –, para começar a entender esse país belo, ferozmente indignado, destroçado, inteligente, desesperadoramente superpopuloso, devastado de guerra?

Raza Kazim admite que já chegou aos 80, mas conserva um tique infantil, irritante, um modo de cruzar os dedos finos, enquanto fala e tenta definir seu amor pelo país, sua fé no valor do Paquistão. Tem de falar alto para fazer-se ouvir acima do zumbido do ar-condicionado, numa tarde de primavera excepcionalmente quente em Lahore, sob as árvores, no pátio de sua casa. Traz duas latas geladas de cerveja Murree e lamenta que eu não o acompanhe. É fácil entender por que liderou a primeira greve da história da escola indiana onde estudou.

“Sou dos que se beneficiou muito do Império Britânico por aqui”, diz ele. “Não era uma relação de amor-ódio. Era uma relação de amor contrariado. Meu coração foi conquistado pelo movimento “Deixar a Índia” [ing. Quit India], e eu vinha do campesinato. Naquele tempo, arregimentavam-se camponeses por duas rúpias. Eu acreditava na liberdade e em 1946, dei um salto de fé e sentimentos.”

Que fé e que sentimentos! Kazim é uma espécie de ‘guru’ – no sentido original da palavra, um conselheiro/oráculo mais velho, de gerações de políticos paquistaneses – e seu envolvimento na Congresso Nacional Indiano da Índia Britânica, então na Liga Muçulmana e depois no Partido do Povo do Paquistão [ing. Pakistan People’s Party (PPP)], transformou-o no Malcolm Muggeridge[4] – ou talvez Tony Benn[5] – do Paquistão.

Advogado e ex-comunista cuja filantropia produziu a Sanjan Nagar School Institute of Philosophy and Arts, e inventor de um instrumento musical de cordas criado para preservar a música clássica do sul da Ásia como forma de arte moderna, Kazim tem dois troféus que o qualificam para ser canonizado no Paquistão: foi sequestrado pelo serviço secreto do exército em 1984 e preso cinco vezes entre 1950 e 1985. Seu outro atributo é histórico; ainda diz que aconteceu “em 1947” e sorri quando entende que concordo com ele.

“Agosto de 1947 foi uma espécie de competição entre indus e muçulmanos”, recorda, os dedos começando a cruzar e descruzar sem descanso, a luz refletindo-se na calva, quando o crepúsculo traz para fora as grandes aves no jardim. “Quem daria melhor definição de liberdade? Jamais senti que a Índia estivesse sendo dividida. Foi como se o povo se dividisse em dois times. Quem faria mais pontos de liberdade?”

Freedom at midnight[6], lembrei. E a que preço? “Sim, houve sangue em Bihar, em Delhi, muito sangue no Punjab – mas foi ação e reação. Depois se espalhou para a área do Deccan. Eles (o novo Estado indiano) selecionaram soldados dos punjabs, cujos filhos pequenos haviam sido assassinados aqui e cujas mulheres foram sequestradas aqui, e os mandaram para a área do Deccan, onde esmagaram cabeças de crianças [muçulmanas] contra pilares. Sim, eu sei o que aconteceu naqueles trens.

“O que o capital político fez dessas matanças é outra história. Foi história ruim, mas foi outra história. Os eventos foram capitalizados. Mas a matança não começou com o Paquistão. O primeiro genocídio da história da Índia aconteceu no Punjab no ano 3.000 a.C. – foi conflito entre agricultores e pastores.

Kazim acalma-se. “Dia 13/9/1947, cheguei ao Paquistão como convidado do ministro indiano das comunicações. Cheguei com meus discos de gramofone, livros e poesia e duas mudas de roupa.” É história muito pós-colonial. Enquanto as massas esquartejam-se no chão, o avião de Kazim sobrevoa a carnificina e o depõe como testemunha do sofrimento das massas, na mais bela cidade do novo Paquistão, Lahore.

“As pessoas pensam sobre as propriedades tomadas dos indus e sikhs, mas o principal foram os empregos, os negócios, as oportunidades. O povo educado partiu levando tudo em caminhões – eram as pessoas que viriam a governar o país. Passou a ser sinal de patriotismo falsificar papéis de propriedade de casas na Índia. Foi visto como dever patriótico, porque os indianos tinham três vezes mais processos contra nós. Os burocratas de nível médio na Índia, passaram a burocratas de alto escalão no Paquistão”. Mohammad Jinnah, fundador do Estado, morto em 1948 – Kazim assistiu ao funeral – “tinha uma queda pelos aduladores. Não sabia selecionar melhor companhia.”

Eu já ouvira a mesma história, embora narrada com menos eloquência. O Paquistão estava criado, mas não havia sinais de sociedade em desenvolvimento ou de nação efetivamente criada. “Ainda não construímos uma sociedade”, diz Kazim. “As pessoas têm de ceder algo de sua vida pessoal e investir em nossa sociedade.” Uma pausa, e a voz de Kazim sobe de tom. “AINDA ESTAMOS EM 1947!” O Paquistão conquistou a liberdade, nos termos do Indian Independence Act [Lei de Independência da Índia] –, mas ainda não há qualquer tipo de Lei de Independência do Paquistão.”

Agora, outra sala, na área de Islamabad que os repórteres ainda chamam de “camarote” [ing. posh]. (Quando falam deles mesmos nas matérias que escrevem, vale lembrar, os jornalistas paquistaneses chamam-se “escribas”, em vez do nosso autodepreciativo “cães farejadores” [ing. hacks]. Mas o ar condicionado também é barulhento. Agora é outra estirpe, Aitzaz Ahsan, herói da ‘Longa Marcha” da primavera de 2009, que acabou por garantir a volta de Iftikhar Chaudhry ao posto de Chefe de Polícia, depois da abdicação do ditador preferido dos EUA, o general-presidente Pervez Musharraf. O novo livro de Ahsan, The Indus Saga and the Making of Pakistan [A saga hindu e a feitura do Paquistão], sugere que há duas regiões culturalmente diferentes que os britânicos chamavam “Índ ia”, que houve ordem social e política contínua na região – na porção que se tornou o Paquistão –, e que seria diferente do resto da Índia.

Na independência do Paquistão, a estrutura do Estado-Raj versus os cidadãos-nativos não mudou. Nas palavras de Ahsan, “os oficiais militares que, dia 14/8/1947, saudaram a bandeira verde com crescente e estrela, haviam saudado, na véspera, a bandeira britânica. Não podiam mudar tanto de um dia para outro. Outros, não eles, lutaram pela independência. Os ‘nativos’ permaneceram, sem direitos políticos reconhecidos, até 1970.”

Assim – e Kazim não concordaria com isso –, os paquistaneses amaram mais seus juízes que seus soldados, e os admiraram com um justo grau de ceticismo. E fizeram muito bem. Em 1954, o governador geral dissolveu o parlamento – ato inadmissível, nos termos da lei – mas os juízes confirmaram a dissolução. Em 1958, o comandante militar dissolveu a assembleia, rasgando a constituição. E a Suprema Corte do país endossou a imposição de Lei Marcial, sobre o argumento de que “um golpe de Estado bem-sucedido é método internacionalmente reconhecido e legal, para mudar de governo.” Em 1972, os juízes reverteram essa decisão, e decidiram que não havia lugar para um regime militar no Paquistão – mas só o fizeram depois da queda do regime militar.

Agora, o exército – guardião da nação paquistanesa, e segundo melhor amigo dos EUA na Região (depois da Marinha da Índia) – está sob ataque militar constante, ao mesmo tempo em que segue os políticos totalmente corruptos (e corrompedores) que dirigem a máquina do Estado sob a bandeira de uma ‘democracia’. Todos sabem que os Inter- Services Intelligence (ISI, o serviço secreto paquistanês) – os líderes parecem intercambiáveis com os comandantes do exército regular – continuam a proteger e guardar e comandar os Talibã afegãos. E continuarão a fazê-lo, enquanto os EUA ignoram o conflito entre Paquistão e Índia cujo objeto de disputa é a Caxemira.

Soldados norte-americanos morrem porque os islamófobos em Washington apoiam Israel, exatamente como o comandante dos EUA general David Petraeus sugeriu mês passado. Mas muitos soldados dos EUA morrem também por causa da Caxemira. Os paquistaneses – e essa é bandeira que realmente une todos os paquistaneses – entendem que os EUA apóiam a Índia e que, assim sendo, a Caxemira parece definitivamente perdida para o Paquistão. Assim sendo, por que admitiriam que os EUA – dinheiro e influência política – governem o Afeganistão?

Às vezes é muito difícil separar o que é agressão e o que é medo no Paquistão. No ocidente, tememos as bombas atômicas paquistanesas sem jamais ter examinado um mapa do país ao qual nos devotamos tão obcecadamente a tanto temer.

Todas as maiores cidades – Islamabad, Rawalpindi, Lahore, Karachi, Peshawar, Quetta – são próximas das fronteiras com a Índia ou com o Afeganistão. Ali se vê uma mistura de miséria e potência nuclear, nação inteligente – os paquistaneses anseiam por educação com a mesma ânsia sincera que se vê entre os palestinos –, com história que começou e terminou no instante da partição, todas as datas históricas marcadas por golpes militares e trocas entre potências imperiais e, agora, por ataques de aviões-robôs e suicidas-bombas.

Os suicidas-bomba

A aparição de suicidas-bomba foi um choque no Paquistão. Começaram no Líbano, mudaram-se para a Palestina, dali para o Iraque e, afinal, chegaram ao Afeganistão, de onde alcançaram o Paquistão. Do Mediterrâneo ao velho Império Britânico na Índia, esse rito de morte e magia viajou com velocidade inacreditável. Hoje, já está mesclado à imundície, à corrupção e às bombas atômicas do Paquistão.

Tentei, no Paquistão, definir o sofrimento que aflige esse país. A massiva perda de vidas, a miséria, a corrupção, as ameaças externas à própria sobrevivência da nação, o existencialismo islâmico e o poder do exército; talvez seja preciso um romance, para contar a história do Paquistão. Suspeito que seja preciso um Tolstoy, um Dostoyevsky.

Mas talvez o que mais me impressionou tenha sido a capacidade do Paquistão para ferir-se ele mesmo – simbolizada, temo, na última e mais terrível desgraça que aflige o país: o sequestro de crianças. Rouba-se uma menina ou menino, pede-se resgate em dinheiro à família e, se não pagam, a criança é morta. Quando Sahil Saeed, menino britânico-paquistanês, foi sequestrado, a polícia e a embaixada britânica ajudaram a resgatá-lo. Mas os jornalistas que cobriram o sequestro descobriram muitas outras famílias que sofreram sequestros até então não divulgados, como a família de Mahnoor Fatima, de seis anos, que foi sequestrada em outubro do ano passado e nunca mais foi vista. “É a diferença entre ricos e pobres”, disse a mãe de Mahnoor. No meu caso ninguém apareceu para consolar-me. Fazem tudo, aqui, pelos ricos e pelos britânicos; e nada pelos paquistaneses e pelos pobres.”

Perto de Peshawar, uma menina de três anos, Fariha, foi sequestrada numa festa de casamento, mês passado; os sequestradores exigiram 8.000 libras esterlinas para devolvê-la. A família não teve como pagar. Fariha foi morta e jogada num canal. Mais tarde, o pai, operário, levou o cadáver até o Peshawar Press Club para cobrar castigo para os assassinos. Em Faisalabad, dois dias depois, outra criança sequestrada, Samina Ali, de sete anos, foi encontrada morta numa vala, depois de os pais não terem conseguido reunir o dinheiro do resgate. Mais tarde, os pais reclamaram que a polícia cobrara taxa de 120 libras para liberar o corpo. Um menino sequestrado, de seis anos, identificado apenas como Sharjeel, também fora encontrado horas antes, morto, numa vala.

Nos primeiros dois meses de 2010, houve 240 sequestros no Paquistão – quase todos de crianças. Apenas 74 foram devolvidas vivas. Essa, não o número de ataques por suicidas-bombas ou o total da corrupção de políticos venais – é a pior estatística do Paquistão contemporâneo.

Notas:
[1] Há imagens e história em http://www.khyber.org/places/2005/FortBalaHisar-Peshawar.shtml (NT).
[2] Ziarat Gul (43) nasceu em Kabal, uma das vilas de agricultores que a guerra destruiu no vale Swat. Vive hoje num campo de refugiados em Mingora (em www.airra.org/documents/Swat%20Agri%20Losses.pdf )
[3] Para ver o instrumento, clique http://www.asza.com/afganreb.shtml
[4] Para saber quem foi, ver http://pt.wikiquote.org/wiki/Malcolm_Muggeridge.
[5] Para saber que é, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Tony_Benn
[6] Freedom at Midnight (1975) é título do livro de Larry Collins e Dominique Lapierre. Narra os eventos do movimento de independência da Índia, no período 1947-48.

*Jornalista, Robert Fisk é há muitos anos correspondente The Independent no Médio Oriente

Este texto foi publicado em The Independent de 6 de Abril de 2010, www.independent.co.uk/news/world/asia/shadow-lands-pakistan–a-nation-under-attack-1936507.html

Tradução de Caia Fittipaldi