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Cúpula dos Povos sobre clima reúne multidão

Um gigantesco ato no estádio Sebastián Ramírez de Tiquipaya, a 12 quilômetros de Cochabamba, na Bolívia, dará início nesta terça-feira (20) à Cúpula Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos da Mãe Terra. A grande afluência de representantes de estados, movimentos sociais, cientistas e de outras organizações que chegaram para o evento obrigaram os organizadores a mudar na última hora a sede da inauguração.

O ginásio esportivo da Universidade Univalle, com uma capacidade de quatro mil pessoas, se tornou insuficiente para abrigar os quase 19 mil participantes que chegaram a esta cidade boliviana. Cerca de 130 países tratarão, durante o evento, de diversas propostas sobre o aquecimento global: que não sejam os afetados que paguem a conta, que os capitalistas transfiram tecnologia gratuitamente, que sejam aprovados os Direitos da Mãe Terra.

De acordo com o programa oficial, o presidente Evo Morales daria as boas-vindas indispensáveis a todos os participantes durante a manhã, bem cedo. A partir das 10h30 seria celebrado no ginásio o painel "Descobertas científicas sobre mudança climática", do qual participarão reconhecidos especialistas nacionais e estrangeiros. Durante a tarde, haverá painéis simultâneos no ginásio e no auditório de cultura de Univalle, e no Grande Salão do Hotel Regina, a outra subsede da reunião.

Neste sentido, destaca-se a discussão sobre causas estruturais da mudança climática, da qual participará o vice-presidente boliviano, Alvaro García. Outros três painéis muito importantes fecham o dia, referidos aos novos modelos para estabelecer a harmonia com a natureza, a constituição do tribunal climático e a necessidade de um referendo mundial sobre o tema.

Dessas discussões devem se concretizar iniciativas reais em defesa do meio ambiente, para levá-las à próxima Cúpula da ONU sobre mudança climática, prevista para o final deste ano em Cancún, México.

Emblematicamente, a Cúpula Mundial dos Povos foi convocada por Evo Morales, um representante legítimo de povos desassistidos da América Latina, um líder sindicalista, de etnia indígena aymará, tradicionais cultivadores de coca. É o ambiente mais propício para fortalecer a voz dos que não têm voz, dos excluídos, que se transformam agora em vítimas daqueles que acumularam o poder e a riqueza durante tanto tempo.

Quem acompanhou a conferência de Copenhague pela grande mídia não tomou conhecimento dos debates e propostas feitas pelas organizações sociais, que também se reuniram paralelamente à COP-15. Mas elas existiram e pode-se dizer que a Conferência de Cochabamba é uma de suas conseqüências. E talvez seja uma oportunidade para que a grande imprensa dê mais espaço para as questões centrais que envolvem as mudanças climáticas.

Segue abaixo artigo do escritor uruguaio Eduardo Galeano sobre o evento, publicado no jornal Página/12 nesta segunda (19):

Mensagem de Galeano à Cúpula dos Povos

Lamentavelmente, não poderei estar com vocês.

Um pedaço de pau se atravessou na minha roda, o que me impede de viajar.

Mas quero acompanhar de alguma forma essa reunião de vocês, essa reunião dos meus, já que não tenho mais remédio do que fazer o pouquinho que posso e não o muitinho que quero.

E por estar sem estar estando, pelo menos lhes envio estas palabras.

Quero lhes dizer que tomara que se possa fazer todo o possível, e o impossível também, para que a Cúpula da Mãe Terra seja a primeira etapa rumo a uma expressão coletiva dos povos que não dirigem a política mundial, mas a padecem.

Tomara que sejamos capazes de levar adiante essas duas iniciativas do companheiro Evo, o Tribunal da Justiça Climática e o Referendo Mundial contra um sistema de poder fundado na guerra e no esbanjamento, que despreza a vida humana e põe bandeira de leilão em nossos bens terrenos.

Tomara que sejamos capazes de falar pouco e fazer muito. Graves danos nos fez, e continua fazendo, a inflação palavrária, que, na América Latina, é mais novica do que a inflação monetária. E também, e principalmente, estamos fartos da hipocrisia dos países ricos, que estão nos deixando sem planeta, enquanto pronunciam pomposos discursos para dissimular o sequestro.

Há aqueles que dizem que a hipocrisia é o imposto que o vício para à virtude. Outros dizem que a hipocrisia é a única prova da existência do infinito. E a discursaria da chamada "comunidade internacional", esse clube de banqueiros e guerreiros, prova que as duas definições são corretas.

Eu quero celebrar, em troca, a força de verdade que irradiam as palavras e os silêncios que nascem da comunhão humana com a natureza. E não é por casualidade que essa Cúpula da Mãe Terra é realizada na Bolívia, essa nação de nações que está se redescobrindo a si mesmo ao término de dois séculos de vida mentida.

A Bolívia acaba de celebrar os 10 anos da vitória popular na guerra da água, quando povo de Cochabamba foi capaz de derrotar uma todo-poderosa empresa da Califórnia, dona da água por obra e graça de um governo que dizia ser boliviano e era muito generoso com o que era alheio.

Essa guerra da água foi uma das batalhas que essa terra segue lutando em defesa de seus recursos naturais, ou seja: em defesa de sua identidade com a natureza.

Há vozes do passado que falam ao futuro.

A Bolívia é uma das nações americanas onde as culturas indígenas souberam sobreviver, e essas vozes ressoam agora com mais força do que nunca, apesar do longo tempo da perseguição e do desprezo.

O mundo inteiro, aturdido como está, deambulando como cego em tiroteio, teria que escutar essas vozes. Elas nos ensinam que nós, os humaninhos, somos parte da natureza, parentes de todos os que têm pernas, patas, asas ou raízes. A conquista europeia condenou por idolatria os indígenas que viviam essa comunhão, e por crer nela foram açoitados, degolados ou queimados vivos.

Desde aqueles tempos do Renascimento europeu, a natureza se converteu em mercadoria ou em obstáculo ao progresso humano. E até hoje esse divórcio entre nós e ela persistiu, a tal ponto que ainda há gente de boa vontade que se comove com a pobre natureza, tão maltratada, tão ferida, mas vendo-a a partir de fora.

As culturas indígenas a veem a partir de dentro. Vendo-a, me vejo. O que faço contra ela é feito contra mim. Nela me encontro, minhas pernas são também o caminho que as anda.

Celebremos, pois, essa Cúpula da Mãe Terra. E tomara que os surdos escutem: os direitos humanos e os direitos da natureza são dois nomes da mesma dignidade.

Voam abraços de Montevidéu.

 

Com agências