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Ricardo Antunes não fica bem como pensador antissindical

O movimento sindical escolheu "o caminho de servidão ao Estado" e ficou "prisioneiro do imposto sindical". O 1º de Maio "hoje é tudo festa", "pão e circo". "O lulismo recuperou o getulismo sindical e o levou ao limite extremo" e o sindicalismo está há 20 anos "se tornando pelego". Lamentavelmente, as frases não são de algum deputado do DEM ou da Folha de S.Paulo, mas do pensador de esquerda Ricardo Antunes…

Por Bernardo Joffily


Antunes, sociólogo e professor da Unicamp (Universidade de Campinas, SP), tem mais de três décadas de muitos bons serviços prestados ao estudo, sob uma ótica marxista, do mundo do trabalho e dos trabalhadores. No governo Lula, porém, embananou-se no exame de uma realidade nova e mais multifacética que as da ditadura militar ou da ofensiva neoliberal. É o que mostra nesta entrevista, publicada nesta segunda-feira (3) no jornal Valor Econômico.

Leitura enviezada contra Getúlio e Lula

O tema do imposto sindical para as centrais foi escolhido pelo entrevistador, Renato Godoy de Toledo, para abrir a entrevista. Antunes respondeu que "o imposto sindical foi criado na primeira fase do governo Getúlio Vargas, como instrumento de controle dos sindicatos. Os sindicatos passam a depender do Estado, perdendo a autonomia e a capacidade de convencer seus associados de que é preciso se manter com recursos próprios".

E adiante concluiu: que "o lulismo recuperou o getulismo sindical e o levou ao limite extremo. Lula completou o processo de sujeição dos sindicatos ao Estado, iniciado por Getúlio".

É uma leitura duplamente enviezada: contra Getúlio e contra Lula. Encaixa-se bem num certo discurso uspiano-conservador, reincidente em camadas superiores (monetariamente superiores) da intelectualidade paulista, visceralmente anti-Var4gas e anti-Lula. Mas era de se esperar uma visão mais desobstruída do professor da Unicamp, que se doutorou com uma tese sobre "o confronto operário no ABC Paulista -1978-80".

A trajetória de Getúlio Vargas, da criação do imposto sindical, em 1934, ao seu suicídio 20 anos depois – acendendo uma rebelião "dos de baixo" que desarmou um golpe de direita – mostra um personagem mais complexo e ambíguo do que apontar a afirmação de Antunes.

Seis fases do movimento que Antunes não vê

Mas admita-se, para efeito de raciocínio, que a crítica ao sentido da criação do imposto é ao menos basicamente correta. Afinal, é fato que junto com o imposto sindical vieram instrumentos de incontestável tutela. Por exemplo, a imposição de um "estatuto padrão" e, pior, do direito do Estado intervir nas organizações dos trabalhadores, substituindo suas diretorias pelos famigerados "interventores" nomeados pelo Ministério do Trabalho.

Estabelecer uma linha reta entre essa política de governo, e o sindicalismo que daí derivou, e o cenário sindical de hoje é uma simplificação empobrecedora que Ricardo Antunes, usualmente atento à concretude da história, não merecia cometer.

O movimento sindical dos trabalhadores brasileiros viveu numerosas etapas, qualitativamente distintas, desde os idos do primeiro governo Vargas. Um esboço de periodização incluiria, pelo menos, seis fases distintas:

▄ 1945-1960: Acumulação de forças, em zigzague (decresce sob Dutra); culmina nas greves gerais paulistas de 1953-1954 (ou seja, no segundo governo Vargas).

▄ 1960-1964: Auge sindical sob o governo João Goulart (herdeiro de Getúlio); primeiras greves gerais nacionais, em 1962 e 1963; CGT (Comando Geral dos Trabalhadores); nascimento do sindicalismo rural e da Contag.

▄ 1964-1978: Paz dos cemitérios, imposta pela ditadura: intervenções em massa, metralhadoras contra as pouquíssimas greves remanescentes (Osasco, 1968), dedurismo; ao mesmo tempo, uma nova classe operária prepara as premissas da volta por cima.

▄ 1978-1989: Retomada e (com o fim da ditadura em 1985) auge da luta grevista e sindical;1ª Conclat (Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras), centrais sindicais, sucessivas greves gerais nacionais; Constituição de 1988, que restaura e alarga os direitos sindicais; Lula se projeta como a maior liderança dessa fase; e Antunes, que agora o desanca, como um dos seus melhores historiadores; 1989, ano da primeira candidatura presidencial do metalúrgico do ABC, marca também um recorde histórico do índice de grevistas.

▄ 1990-2002: Refluxo face à ofensiva neoliberal contra os trabalhadores; terrorismo patronal via desemprego; crise de identidade da classe; "informalização" (degradação) do trabalho; "flexibilização" dos direitos; dessindicalização; sindicalismo "de resultados", que assume o discurso da "globalização"; as greves rareiam, restringem-se à área estatal ou fragmentam-se por empresa.

▄ A partir de 2003: Renascimento, inicial, claudicante, mas incontestável; mais greves, inclusive no setor privado; aumento (incipiente mas real) dos salários e do emprego formal; unidade de ação (ainda que precária) das centrais; campanha pela redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais; e, por fim mas não por último, um ex-líder sindical na Presidência, que abre espaços e facilidades nunca vistas aos trabalhadores, dos quais o reconhecimento das centrais e a destinação a elas de uma fatia do imposto sindical.

Contorções de um professor em má companhia

Alheio a essa trajetória cheia de contradições e tropeços, mas também de combates e conquistas, Antunes presta-se a um papel que não faz justiça ao seu talento de pensador comprometido com os trabalhadores. Politicamente, é Psol; na esfera sindical, Conlutas. No fim da entrevista, chega a lamentar que Geraldo Alckmin não tenha vencido a última eleição presidencial:

"Se Geraldo Alckmin (PSDB) tivesse sido eleito em 2006, o repasse do imposto sindical certamente não teria passado. Seria um governo pior para os trabalhadores, certamente, mas, com isso, provocaria um movimento contrário muito forte no movimento sindical."

Em outra passagem, Antunes apercebe-se de que sua ojeriza ao repasse o coloca em péssima companhia – ao lado do que existe de mais reacionário e patronal no país. Quando o jornalista o aperta sobre a ação contra o repasse, em julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal), tenta uma saída pela tangente, cuja precariedade o internauta não terá dificuldades em enxergar:

"Não cabe ao Supremo dizer se o repasse fere ou não a Constituição […]. Esta é uma questão política. Tanto é que quem entrou com pedido contra o repasse foi o DEM. É o Estado transferindo recursos às centrais. O erro está no fato de sindicalistas aceitarem (!)."

Ao fim dessas contorções, as conclusões de Antunes mais parecem uma versão trabalhista do velho do Restelo (o personagem dos Luisíadas de Camões que espinafra os navegadores portugueses que partem à procura do caminho das Índias):

"O sindicalismo se desorganizou nos últimos vinte anos, aliando-se ao poder e se tornando pelego. A hora de recomeçar é agora e o primeiro passo seria se desvincular do Estado para recuperar autonomia."

"Sindicatos livres": a lição dos anos 30

Ricardo Antunes faria bem em revisitar a história concreta do sindicalismo concreto dos anos 30 no Brasil. Quando Getúlio reconheceu os sindicatos, ao mesmo tempo atrelando-os, uma parcela dos líderes reagiu buscando criar "sindicatos livres"; ainda naquela década, deu-se conta de que seus sindicatos estavam "livres" também da presença das massas trabalhadoras; e tiveram de se obrigar ao trabalho nos sindicatos "atrelados", mesmo nas duras condições do Estado Novo, até lacear e romper as trelas. Nem um só "sindicato livre" deu certo.

Outro exemplo, mais recente, e no qual Antunes é doutor, está nas greves metalúrgicas do ABC e do sindicalismo pós-1978. Não surgiram de um caminho como o indicado pelo sociólogo; despontaram dentro do sindicato que havia, que sofrera uma intervenção e a seguir passara às mãos de Paulo Vidal, amigo do então governador (biônico) Paulo Egydio Martins e por intermédio dele do general Golbery do Couto e Silva. Surgiram porque havia no ABC uma nova classe trabalhadora, numerosa e concentrada, que a ditadura já em seu crepúsculo não teve mais como represar.

O concreto, para Marx

A julgar pela entrevista ao Valor, e outras manifestações no mesmo sentido, o ponto de vista de Antunes é o desdobramento de um erro de método: desprezar o ensinamento de Marx:

"O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso" (Karl Marx, em Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política, 1857).

A concretude do governo Lula, da luta dos trabalhadores, do sindicalismo e das centrais sindicais na atualidade, também sintetiza um sem-número de determinações, objetivas e subjetivas, que precisam ser abarcadas no seu conjunto. Muitas das críticas concretas que Antunes aponta têm o seu grão de verdade, ou bem mais que isto. Mas não será pregando no deserto do Psol, da candidatura Plínio de Arruda e da Conlutas, longe das massas e da sua luta, que Antunes contribuirá para efetivá-las.

Confira a íntegra da entrevista ao Valor:

"Lula levou getulismo ao extremo"

João Villaverde, de São Paulo

O repasse de R$ 146,5 milhões do governo à seis centrais sindicais reconhecidas pelo Ministério do Trabalho, desde 2008, completou o ciclo de sujeição do sindicalismo ao Estado, iniciado por Getúlio Vargas. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que termina em dezembro após oito anos, levou o getulismo ao "limite extremo". Essa é a avaliação de Ricardo Antunes, professor de sociologia do trabalho da Unicamp. Para Antunes, os trabalhadores sindicalizados perderam uma oportunidade "monumental" de elevar ganhos reais e fortalecer sindicatos e representação social.

O pesquisador avalia que não cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) julgar se o repasse é constitucional ou não, por entender que trata-se de uma questão política. "É o Estado transferindo recursos às centrais. O erro está em os sindicalistas aceitarem", diz. Para ele, é simbólico que a ação impetrada no STF contra o repasse do imposto sindical tenha sido feita pelo DEM.

Abaixo, os principais trechos da entrevista de Antunes ao Valor:

Valor: Ascentrais advogam que o repasse do imposto sindical serviu para "reconhecê-las" como integrantes do movimento. Qual o impacto desse repasse?

Ricardo Antunes: O imposto sindical foi criado na primeira fase do governo Getúlio Vargas [em 1934, antes da ditadura do Estado Novo], como instrumento de controle dos sindicatos. Até a chegada de Getúlio ao poder, os sindicatos tinham autonomia, tanto política quanto financeira, dependendo exclusivamente dos associados. O varguismo criou o imposto não para beneficiar os sindicatos, mas para estabelecer uma linha direta com eles. Os sindicatos passam a depender do Estado, perdendo a autonomia e a capacidade de convencer seus associados de que é preciso se manter com recursos próprios. Ao ficar prisioneiro do imposto sindical, o caminho de servidão ao Estado se realizou com sindicatos, federações e confederações. O mais grave dos últimos dois anos é que o repasse foi estendido às centrais.

Valor: As celebrações do 1º de maio das centrais tiveram participação de Lula e de sua candidata. Foi a primeira vez que isso ocorreu. O imposto sindical atrelou as centrais ao Estado?

Antunes: Dos anos 1940 até 2008, nenhuma central dependeu do imposto sindical. Mais que isso: as centrais não pediram alvará do governo para existir, elas simplesmente foram fundadas. As festas do 1º de maio se converteram em pão e circo. Nos anos 80 e parte da década de 1990, a CUT promovia atos majestosos, sem imposto sindical e com massas que participavam e se sentiam reconhecidas pela luta no trabalho. Hoje é tudo festa. Há sorteios de automóveis e apartamentos, shows de cantores populares. As centrais se tornaram protagonistas deste pão e circo, financiadas pelo Estado.

Valor: A votação pelo fim do repasse às centrais está empatada no Supremo. O sr. antevê o resultado?

Antunes: Não cabe ao Supremo dizer se o repasse fere ou não a Constituição, que originalmente não previa a repartição às centrais. Esta é uma questão política. Tanto é que quem entrou com pedido contra o repasse foi o DEM. É o Estado transferindo recursos às centrais. O erro está no fato de sindicalistas aceitarem. Sou contra o imposto sindical, mas não é este o papel do STF. Me parece óbvio se tratar de uma questão política, não constitucional.

Valor: Qual é o balanço do governo de Lula na questão sindical?

Antunes: O lulismo recuperou o getulismo sindical e o levou ao limite extremo. Lula completou o processo de sujeição dos sindicatos ao Estado, iniciado por Getúlio. Faltava as centrais para fechar a estatização. Os trabalhadores perderam uma oportunidade monumental de conseguir ganhos e de ampliarem sua representação social. Os ganhos são de pequena monta, e mesmo assim ocorrem por um preço alto, de servidão ao Estado. Não vejo, nas centrais que recebem dinheiro do governo, nenhuma possibilidade de florescimento do novo. Elas, eventualmente, apoiam greves de sindicatos filiados. Mas não fazem por ideologia ou por luta sindical, mas porque, se não fizerem, alguma outra o fará e, com isso, atrairá aquele sindicato. Como a representação conta para ganhar fatia maior do imposto, as centrais esforçam-se para manter e ampliar a base de filiados. É uma luta por dinheiro, não sindical.

Valor: Esta "servidão" ao Estado vai se perpetuar no pós-Lula?

Antunes: Se Geraldo Alckmin (PSDB) tivesse sido eleito em 2006, o repasse do imposto sindical certamente não teria passado. Seria um governo pior para os trabalhadores, certamente, mas, com isso, provocaria um movimento contrário muito forte no movimento sindical. O sindicalismo se desorganizou nos últimos vinte anos, aliando-se ao poder e se tornando pelego. A hora de recomeçar é agora e o primeiro passo seria se desvincular do Estado para recuperar autonomia.

Fonte: Valor Econômico